O que o amigo leitor diria se, de uma hora para outra, médicos, enfermeiros ou técnicos de enfermagem do Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ, ou de qualquer hospital público do Estado do Rio de Janeiro, em plena luta contra a covid-19, peleja onde colocam suas vidas em risco para salvar a população fluminense, tivessem a redução de 10% a 60% da sua remuneração, sendo maior a redução para os mais idosos? Ou policiais e bombeiros, que também se arriscam por não terem direito ao isolamento social, em razão de sua missão de garantir a segurança das pessoas e do seu patrimônio em meio ao desarranjo social que se anuncia? Ou ainda professores da rede estadual, que se reinventam para oferecer a educação à distância aos filhos de todos, tendo ainda que cuidar dos seus próprios trancados dentro de casa? Ou pesquisadores que investigam a criação de vacinas e medicamentos nas universidades estaduais ou produzem equipamentos de proteção individual, álcool em gel e respiradores para o enfrentamento da pandemia? Certamente diria que poucas vezes tivemos uma situação de injustiça mais aguda. Afinal, são servidores públicos estaduais, cada um com a sua missão, que mais vêm oferecendo o duro combate ao novo coronavírus em nosso Estado, o que revela a essencialidade dos servidores públicos para a vida da população.
Porém, este absurdo poderá ocorrer se o Supremo Tribunal Federal julgar procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.782, que o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, ajuizou contra a previsão na Constituição do Estado do adicional de tempo de serviço do servidor público estadual, que entrará em julgamento no plenário virtual da Corte no próximo dia 24 de abril.
O sentimento de injustiça aumenta quando se sabe que, durante a pandemia, em todo mundo, os governos de todos os matizes ideológicos adotam medidas para garantir emprego e renda aos trabalhadores, recompondo o Estado Social fragilizado pela adesão cega à austeridade seletiva que aperta mais alguns cintos do que outros. No Brasil, parece que estamos na contramão, com a retórica, que mais do que nunca parece tão surreal, de que, durante a pandemia, os servidores públicos devem fazer o sacrifício para pagar a conta da crise, como se já não estivessem fazendo isso há tanto tempo sem reajustes salariais. No caso do Estado do Rio de Janeiro, o sacrifício é maior, pois lá se vão quase vinte anos sem correção pela inflação, sem falar dos tempos recentes, de 2016 e 2017, em que ficaram cinco meses sem receber qualquer remuneração. Neste contexto, o adicional por tempo de serviço é o único mecanismo de aumento nominal da remuneração que a legislação garante a todos os servidores. Assim, fica claro que o sacrifício não pode ser imposto aos que estão há tanto tempo vendo a corrosão da sua retribuição e que agora são chamados a salvar a população.
Como fundamento para o afastamento do adicional por tempo de serviço utiliza-se um argumento formal na ADI 4782: que a remuneração dos servidores públicos deve ser definida em lei de iniciativa do poder executivo, o que, mesmo antes da Constituição do Estado de 1989 já era previsto, em quadro que se mantém até os dias atuais. Assim, a Carta Estadual não definiu qualquer contorno ao instituto, deixando que lei de iniciativa do poder executivo estadual definisse suas molduras. Apenas exigiu, no exercício da autonomia estadual, como reconheceu a Procuradoria-Geral da República em parecer na referida ação, que o tempo de serviço sirva de referência para um adicional, deixando seus percentuais, base de cálculo e limites a cargo do legislador ordinário, que assim procedeu.
Por outro lado, é preciso abandonar o dogma centralizador, inventado no tempo da ditadura militar, de simetria entre as regras constitucionais federais e estaduais, viabilizando que o experimentalismo federativo abra caminho para o surgimento de outras soluções para os problemas regionais que não aquelas impostas pelo ente central. Assim, a autonomia dos Estados e Municípios, que, neste momento de enfrentamento da pandemia, tem sido o sustentáculo da defesa de toda a população brasileira diante do negacionismo federal, deve ser prestigiado, como recentemente reconheceu o próprio STF, admitindo-se que as constituições estaduais estabeleçam normas que, sem violar a Carta Magna, confiram maiores garantias normativas a seus servidores, a partir de direitos que há muito já eram previstos em lei estadual.
Poder-se-ia alegar que a retirada do dispositivo constitucional não teria o condão de revogar a lei ordinária, mas é forçoso reconhecer que a desconstitucionalização de um direito que é mais antigo que o próprio Estado do Rio de Janeiro é o primeiro passo para a sua extinção pelo legislador, notadamente em tempos de crise econômica.
No entanto, não dá mais para admitir, no contexto em que estamos vivendo, que a conta da crise econômica e financeira decorrente do enfrentamento ao coronavírus seja paga por aqueles que mais sacrifícios vêm fazendo ao longo dos últimos anos e continuam perfilando a linha de frente na luta contra a covid-19.
Desta maneira, o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal, lhe dará maior efetividade se prestigiar a autonomia federativa, o papel das constituições estaduais e os direitos há muito consagrados aos servidores públicos que constantemente vêm pagando a conta de todas as crises, em especial no Estado do Rio de Janeiro. Para tanto, a Corte Maior precisa julgar improcedente a ADI 4782 ou, na pior das hipóteses, retirá-la de pauta, permitindo que o julgamento se dê em condições normais, após a regularização das rotinas do país e do próprio Tribunal, a fim de que a questão possa ser debatida com a profundidade que a sua relevância social exige.
Se quisermos seguir unidos no combate à covid-19, não podemos impor tamanho prejuízo aos que, com risco pessoal incalculável, estão lutando pela vida e pela saúde de todos.
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*Ricardo Lodi Ribeiro é reitor da UERJ. Professor Associado de Direito Financeiro da UERJ, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário e advogado.