A História e a historiografia nos ensinam que, de tempos em tempos, as pandemias que assolam a humanidade provocam não apenas mudanças breves, rápidas e agitadas no seio do tecido social ao corroer pré-concepções firmadas e afirmadas, mas alterações conjunturais e, sobretudo, estruturais de longa duração.
Conquanto a história do tempo presente nos imponha limites de apreensão de fenômenos históricos ainda em curso, porque deles não se pode ter a imediata e adequada percepção sem um mínimo distanciamento, parece ser incontroverso que a pandemia do coronavírus (covid-19) é um daqueles acontecimentos traumáticos que provocam rupturas instantâneas, conjunturais e até mesmo estruturais imperceptíveis a olhos vistos.
Do século XIV, com a devastadora peste bubônica provocada pelo bacilo Yersinia Pestis, ceifadora de milhares de vidas na Eurásia, muitos sugerem o desencadeamento de um período fértil, ao menos em parte da Europa, no campo das artes com o surgimento do renascimento da cultura e sabedoria dos Antigos.
No campo institucional, se é que é possível se falar em instituições na semântica que na contemporaneidade lhe emprestamos o significado, mudanças profundas começaram a ser igualmente sentidas. A fé na graça divina passou, paulatinamente, a ceder espaço ao projeto de homem racional e científico da modernidade secularizada. Foi o tempo da ascensão da vida das novas monarquias na corte.
A propósito, numa notável síntese de erudição histórica, Norbert Elias, em seu clássico A Sociedade de Corte, faz uma análise fecunda da Corte de Luís XIV, o famigerado Rei Sol, e a estrutura sociológica que se desenvolvera na época, pouco tempo após a crise sanitária que flagelou o mundo.
Assim como os muitos conflitos desencadeados entre a sociedade da época impulsionaram mudanças de comportamentos, alteraram modelos econômicos e redesenharam os paradigmas em que se assentavam as ‘instituições’, o fato é que parece se formar um consenso mundial de que a covid-19 provocará uma reconfiguração no lugar de fala das pessoas e notadamente das instituições no mundo pós-moderno, eis que são elas que se configuram como locais privilegiados de vocalização do discurso dialogicamente construído no âmbito da esfera pública.
Afinal, no mundo atual, para o bem e para o mal, são as instituições formalmente desenhadas nas Constituições os veículos receptores dos influxos da esfera pública. Isto é, são seus agentes que buscam traduzir “poder comunicativo” em capacidade regulatória por meio da produção das leis, de sua aplicação ao mundo fático e de sua resolução ante impasses que surgem por ocasião de sua concreção.
No caso especial do Brasil, passados alguns dias do alastramento da pandemia do novo coronavírus, os entes federativos, de forma um tanto descoordenada, não tardaram a adotar políticas sanitárias de segurança e saúde pública, muitas delas, diga-se de passagem, à deriva de liberdades básicas e da nossa intricada engenharia constitucional de alocação de competências formais e materiais, horizontais e verticais.
Essas medidas descompassadas ganharam contornos de dramaticidade com os conflitos federativos interestatais e, sobretudo e em maior dimensão, entre os estados e a União, que não raro se imiscuem e transitam fora da zona de suas respectivas competências constitucionalmente estabelecidas a pretexto de acautelar e mitigar a propagação da pandemia. Medidas como fechamento de fronteiras, limitação da liberdade de tráfego, mitigação da liberdade constitucional de ir e vir e restrições ao livre exercício da atividade econômica são apenas alguns dentre muitos outros exemplos de políticas adotadas tanto pelos estados federados como pela União de modo não coordenado.
A consequência natural dessa “beligerância federativa” na atual quadra histórica e institucional é a judicialização. Neste particular, coube ao STF, no bojo da complexa arquitetura de distribuição dos poderes feita pela CF/88, processar e julgar originariamente “as causas e os conflitos entre a União e os estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta” (art. 102, I, ‘f’, da CF/88).
Como bem anotaram o ministro Luiz Fux e o Juiz de Direito Abhner Youssif Motta Arabi, “historicamente, a previsão dessa competência ao Supremo Tribunal Federal coincide com o surgimento do federalismo no Brasil, aparecendo pela primeira vez na Constituição de 1891 (art. 59, I, ‘c’) – a primeira republicana – e se mantendo em todas as demais Constituições posteriores. Na interpretação do referido dispositivo, o STF já assentou a restritiva interpretação de que apenas se instaura sua competência originária ali indicada quando a questão posta revele lesividade, ainda que potencial, ao pacto federativo, não se justificando para causas que revelam mero interesse patrimonial, por exemplo.”1
Aportaram no STF, apenas nas últimas duas semanas, uma substancial quantidade de ações a respeito da pandemia. Até o momento, segundo consta do Painel de Ações covid-19, mais de 500 processos foram submetidos à jurisdição constitucional do STF, muitos deles, inclusive, oriundos de disputas e conflitos federativos. É indisputável a existência de uma hiperjudicialização em curso decorrente do flagelo que assola a sociedade e as instituições brasileiras.
O fato é que, na atual crise, a Suprema Corte se encontra exortada a prestar de forma célere, efetiva e adequada uma tutela jurisdicional que promova o reencontro democrático da nação com pacto federativo de feições solidárias e cooperativas que nos estrutura enquanto país e nos constituí enquanto sociedade.
Conquanto as soluções a serem conferidas a tais conflitos federativos aparentem ser bem resolvidas à luz da jurisprudência e do esquema rígido de distribuição de competências há muito sedimentado, o fato é que a complexidade dos problemas que estão postos exigirão dos ministros muito mais do que irreverência e rompimento com tradições e conceitos pré-estabelecidas em determinados paradigmas de linguagem.
Será exigido da Suprema Corte aquilo que o professor Saul Tourinho Leal, em alusão à abertura hermenêutica que os princípios conferem ao intérprete, denominou de Ginga. O constitucionalista explica o que vem a ser esse elemento humano brasileiro da inovação:
“A ginga constitui o conjunto de movimentos que cria a fantasia, a ilusão de que a capoeira é uma dança, quando, na verdade, nasceu como luta, um instrumento de resistência dos escravos africanos que, no Brasil, precisavam pavimentar, com astúcia, suas fugas das mãos de senhores cruéis. Foi a forma criativa e original que os escravos encontraram para enganar seus captores. Enquanto treinavam suas habilidades de lutadores para enfrentar com coragem a perversidade da escravidão, davam a entender que nada faziam de errado, apenas dançavam. É algo disruptivo. Pura inovação nascida diante da escassez de liberdade e da necessidade de triunfo sobre uma realidade hostil. A inovação costuma ser assim, nasce na dificuldade, não no conforto. A ginga é uma matéria-prima preciosa para a inovação.”2
Isto quer dizer que, diante dos complexos problemas federativos que estão postos à jurisdição constitucional do STF, uma tradicional interpretação que meramente replique a jurisprudência construída sob a égide de um modelo rígido de distribuição de competências constitucionais expressas não é capaz de realizar em sua plenitude o pacto federativo e o princípio do federalismo cooperativo previsto pelo Constituinte de 88.
Não bastará análise da questão sob o prisma tradicionalmente feito pela doutrina para solver problemas de competência. Nesse sentido, José Afonso da Silva, em seu clássico Curso de Direito Constitucional Positivo, classifica as espécies de competências segundo a natureza, a vinculação cumulativa a mais de um ente e vínculo à função de governo, agrupando-as em: (1) competência material, subdividindo-a em: (a) exclusiva (art. 21) e (b) comum, cumulativa ou paralela (art. 23); (2) competência legislativa: (a) exclusiva (art. 25, § 1º e § 2º); (b) privativa (art. 22); (c) concorrente (art. 24); (d) suplementar (art. 24, § 2º)3.
Em alentado voto proferido na ADIn 5.356, o ministro Edson Fachin, remontando-se às linhas-mestras do histórico voto do ministro Luiz Fux proferido na ADIn 4.060 anotou que:
(...) é possível afirmar que o compartimento estanque de competências, técnica que, por excelência, era empregada pelas constituições anteriores, não é capaz de arrostar as dificuldades apresentadas por uma sociedade plural, adjetivo que, no limite, impossibilita que se sustente haver unidade no sistema jurídico (TEUBNER, Gunther; FISCHER-LESCANO, Andreas. Regime-Collisions: The Vain Search for Legal Unity in the Fragmentations of Global Law. Michigan Journal of International Law, v. 25, n. 4, 2004, p. 999-1046). Pense-se, por exemplo, no conflito entre o exercício da competência comum (proteção à saúde) e o da competência privativa (regulação de proteção mineral). O município, em nome do atendimento à saúde, adota procedimentos que impõe restrições à extração de determinado minério. Em tais casos, é nítida a legitimidade para impor restrições em nome da proteção à saúde, mas os efeitos da regulação impõem consequências adversas aos que, sob a égide da legislação federal, já haviam adotado todas as cautelas necessárias. (...)”4
A competência de um ente para legislar ou regrar administrativamente determinada matéria, por mais privativa ou exclusiva que seja, não raro resvala na competência de outros entes federativos. Essa circunstância é inevitável e de quase impossível controle jurisdicional pelos esquemas corretivos atualmente existentes, porquanto decorrentes da complexidade e, sobretudo, da pluralidade característica das sociedades pós-modernas.
Nem sempre o exercício de uma competência constitucional concorrente dos entes federativos para regular questões de saúde pública e conter os avanços da covid-19, por exemplo, são de singela resolução. Isso porque, a pretexto de exercer uma competência concorrente se pode esbarrar em competências privativas de outros entes. Aliás, muitas vezes essa circunstância é consequência natural do regular exercício regulatório de uma determinada competência constitucional.
O fato é que há uma linha tênue que reclama equilíbrio para, de um lado, não se descambar a um modelo histórico de centralização de poder político e administrativo perante a União que advém desde os tempos do Império e, por outro, ter-se temperança para não se incorrer em uma “guerra federativa” em que os estados da federação atuem como verdadeiras “ilhas” dissolúveis da união que o art.1º da CF tanto enaltece como essencial à República Federativa do Brasil.
Daí que é preciso ginga, disrupção e criatividade hermenêutica para se resolver a intricada problemática “pluralidade de regimentos normativos [que] não consegue se harmonizar apenas com as regras de competência expressa”5, sobretudo no atual contexto de crise pandêmica em que se exigem soluções céleres e juridicamente acertadas.
Parece, então, chegada a hora do STF aprofundar cada vez mais os profícuos debates travados nas sessões plenárias da última semana e, valendo-se do momento histórico de crise que assola o mundo, promover avanços interpretativos capazes de acolher as perplexidades postas pela pluralidade da sociedade contemporânea. Mais do que isso, deve a Suprema Corte se amparar em seu espaço de experiência sedimentado no passado para, no momento presente, abrir-se a um horizonte de expectativa futuro que acomode adequadamente os múltiplos interesses federativos em conflito que a todo instante se descortinam no curso da história.
Ao fim e ao cabo, trata-se de adotar aquilo que o ministro Gilmar Mendes, em alusão ao pensamento jusfilosófico de Peter Häberle, denomina de “pensamento de possibilidades” (Möglichkeitsdenken), cujo traço distintivo se caracteriza por ser uma “expressão, consequência, pressuposto e limite para uma interpretação constitucional aberta. Trata-se de pensar a partir e em novas perspectivas, questionando-se: “que outra solução seria viável para uma determinada situação?”6.
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1 https://www.conjur.com.br/2019-jun-14/fux-abhner-arabi-funcao-conciliatoria-tribunal-federacao
2 TOURINHO LEAL, Saul. Direito à Inovação: a vida nas cidades inteligentes. Ribeirão Preto, SP: Migalhas, 2019, fl. 47.
3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
4 ADI 5356, Min. Edson Fachin, Relator(a) p/ Acórdão: Min.Marco Aurélio, Tribunal Pleno, 03/08/2016.
5 ADI 5356, Min. Edson Fachin, Relator(a) p/ Acórdão: Min.Marco Aurélio, Tribunal Pleno, 03/08/2016.
6 FERREIRA MENDES, Gilmar. Interpretação Constitucional e “Pensamento de Possibilidades”. Revista do MPPR, dez.2015. Veja aqui.
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*Leonardo P. Santos Costa é advogado associado em Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.