Não há mais carestia, não mais guerras, não, Senhor, não mais carestias ou guerras, a fim de que mais ainda nos empenhemos naquilo que somos; a fim de que sempre, para sempre, nos tornemos humanos”
(Raoul Follereau)1
I – CONHECENDO FRANCISCO PARA SABER O QUE O FAZ REFORMADOR
O mundo conectado assistiu perplexo (?), em noite chuvosa na Praça do Vaticano, o alquebrado ancião, Papa Francisco, subir as escadas para, numa área coberta, pronunciar veemente apelo à uniformidade de todos ao combate à pandemia: claro, incisivo, ponderado e adequado ao ambiente!
Palavras diretas que causaram emoção (e até comoção) mesmo em muitas das mentes não abertas ao necessário e indispensável diálogo para livrar o mundo de uma catástrofe hiperbólica: sua autodestruição; que homem!
Não suficiente o apelo verbal, como Pontífice de sua igreja, à intrigante Roma e ao mundo, antes passando pela Madona e pelo Cristo crucificado, após as orações tradicionais, com o ostensório nas mãos, deu a benção urbi et orbi!
Para quem assistiu aos filmes “biográficos” de Francisco, rodados na Argentina e na Europa (Netflix), sem desprezar os relatos do roteiro da película que busca interpretar a sua ascensão à Cátedra, como os instigantes diálogos com Bento XVI, sem ser católico, sem ser religioso, mas quem for honesto consigo mesmo, ainda há de se perguntar: que homem é esse, o que pretende e por que fala contra tudo, recorrendo a apelos que parecem demagógicos?
E eu, modestamente, com ousadia, me debruço e esboço estas linhas:
a) Antes de tudo, Francisco é jesuíta. Mas o que significa ser jesuíta?
Sintetizando, com o saudoso Silvano Fausti, entendo que ser jesuíta, hoje, é ter “Deus presente na sua aparente ausência”2, num mundo em que a injustiça é estrutural, a exigência de verdadeira justiça exige “testemunhar a justiça” (Pe. Arupe)3, e, já em 1974, Arupe, numa decisiva assembleia de todos os padres provinciais e delegados, orienta e o Decreto IV foi promulgado pela Congregação, no qual, dentre outros, se afirmou que “a missão da Companhia de Jesus hoje é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência”4. E Arupe, na mesma oportunidade, já previa, solicitando, que os jesuítas deveriam aceitar, antecipadamente, que o empenho com os pobres os levaria, sempre, a sofrer com eles e como eles”5.
E, em acordo com os preceitos congregacionais, pautando sempre sua vida, Silvano Fausti, inspirado no Evangelho “missionário”, viveu e participou, até sua morte (2015), na periferia de Milão, na Comunidade de Villapizzone, entre os pobres e marginalizados.
b) Para lembrar a sintonia entre Francisco e Bento XVI, este, como habitualmente ocorria, dá sinais de inquietação sobre o mundo contemporâneo e seus mitos e fala de progressiva desertificação, que entra no coração do homem como uma espécie de ateísmo invasor, prático e difuso, entre a solidão e a avidez do espírito humano.6
c) Vendo a realidade e respondendo com amor, a poesia de Manuel Bandeira resume a perplexidade do que a sociedade líquida exibe com indiferença:
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Rio, 27 de dezembro de 1947)7
Arrematando, Francisco, enquanto Pontífice, une suas decisões à missão da Igreja, nas pegadas de Paulo VI, que, até com a vocação dos laicos, a Igreja deveria se preocupar da política, das ciências, das artes, das mass-medias e outras realidades, focando a família, a educação das crianças e adolescentes...
II – AS REFORMAS ESTRUTURAIS DE FRANCISCO
1. O Vaticano é um Estado Soberano dentro do território italiano, como o é a República de San Marino, mutatis mutandis.
Sendo aceito e reconhecido (inclusive pela ONU), desde 1929, com o Tratado de Latrão, coube-lhe estruturar-se, regrando os preceitos religiosos que embasam a crença que o emoldura: o Vaticano é a expressão temporal da Igreja Católica, quando, desde a fundação com a entrega das chaves a Pedro. E são vinte séculos!
Tem o Vaticano a sua ordenação jurídica própria, porém, inspirado pelo Direito Canônico (codificado) (Lei LVV, de 01/10/2008, como fonte de direito).8
2. Detenho-me, agora, um pouco sobre a Reforma da Magistratura, promulgada por Francisco no dia 29 de março passado.
2.1. Lembro que o Estado da Cidade do Vaticano, que tem o L’Osservatore Romano como sua publicação oficial, vem acompanhando as normas internas, ocorrentes a partir de 2000, sobretudo com mais empenho a partir de 2013, seja porque o momento histórico de globalização acelerada está a pedir adequação rigorosa em matéria econômico-financeira, como a adesão às inúmeras convenções internacionais.
2.2. Como a sede da Igreja Católica está neste Estado, como a sua regência está, como sempre, incumbida ao Papa, como aconteceu ao redor do mundo um enfrentamento entre o antigo e o moderno (caracterizado pela revolução digital), como o Direito Canônico evolui lentamente e se mantém incólume “às novidades”, como pautar a conduta dos magistrados em empenhar-se nas suas funções, exigir esta tarefa de Francisco. Está, portanto, configurada a reforma da magistratura, porém, assentada na sempre desejada eficiência e tempestividade.
2.3. O texto completo foi publicado no L’Osservatore Romano em 17 de março, quando Francisco promulgou a lei nº CCCLI (de 13 de março de 2020) e dela extraiu algumas peculiaridades que nos parecem importantes.
2.3.1. Como ocorre, mas agora, no Brasil, isso foi sepultado, a lei nº CCCLI tem longa introdução, da qual destaco a firme disposição de Francisco com a independência da magistratura, sempre pré-condicionada à capacidade profissional. Independência e capacidade profissional: indispensáveis e indissociáveis.
2.3.2. Embora dependendo hierarquicamente de Francisco, que nomeia os juízes, estes, no exercício da prestação jurisdicional, estão sujeitos e devem obedecer à lei e, sempre com rigor técnico, exceder seus poderes funcionais com absoluta imparcialidade.
2.3.3. A profissionalidade dos juízes de 1ª e 2ª instâncias e da Corte de Cassazione (intérprete da Constituição, seguindo o modelo da República italiana) é inegociável, como o dos promotores
Os juízes são nomeados por sua experiência na arte do direito em ação ser aplicado; os da Cassazione, somente professores universitários de respeitada e reputada forma. Em suma, indo a todos os pormenores da nomeação, admitindo-se até profissionais convocados para questões complexas, a reforma prevê meios e formas, para que, administrativamente, existam recursos financeiros, porém, tendo em conta autonomia das despesas e exista sempre um juiz de 1ª grau, em tempo integral.
2.3.4. O Promotor de Justiça não se enquadra como magistrado judicante, mas, como aquelas, tem independência no exercício de suas funções.
2.3.5. Francisco deu realce que não nos permite deixar de trazer a lume: a inegociabilidade do direito de defesa, que foi assim definido: “... é inviolável em qualquer estado e grau do processo”. Mas a que se refere? Nada mais que o justo processo legal (due process of law) e absoluta presunção de inocência do imputado, dispositivo que, em 2013, previa o artigo 2013 do Código de Processo Penal.
2.3.6. Todos os requisitos da prática da advocacia no Estado Cidade do Vaticano, reportando-se às exigências usuais, v.g., a inscrição na Ordem dos Advogados e as normas deontológicas, que Affonso Maria di Liguori já havia cuidado no século XVIII, quando ainda exercia a profissão em Nápoles, antes de abandoná-la e ser um dos fundadores dos padres Redentoristas (sigla: CSsR), foram inscritos na Reforme da Magistratura.
III – CONCLUSÃO
Francisco, neste seu glorioso Prontificado, conduzindo sua vida segundo o Espírito, serve à liberdade, para, com misericórdia, reger a complexa, árdua, inexplicável Cátedra de Roma. Com um apostolado que não tem precedente, neste último séculos: a injustiça estrutural é o seu mote: ele enfatiza como abraçar o cristianismo, o “desejar um mundo livre da lei e do pecado, na lógica do Evangelho!”9
E, o jesuíta Silvano Fausti motiva-nos a insistir, como Francisco o faz, sempre, desde quando eleito Papa, “rezem por mim”, pois “nós com facilidade falamos de Deus, mas com dificuldade falamos a Deus” (ib., p. 100).
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1 É escritor e jornalista francês, dedicou sua vida no combate a lepra e outras “lepras”, a indiferença, a fome, a falta de liberdade, a desigualdade.
2 FAUSTI, S. ZANTELLI, A. Servire è libertà. Bolonha, 2016, p. 94.
3 Id., p. 22.
4 Id., p. 23.
5 Id., p. 23.
6 Benedito XVI, Ubicumque et Semper, nota própria de 10/03/2010.
7 Manuel Bandeira, O Bicho. Antologia publicada reservadamente pela professora Vera Lúcia de Oliveira, que traduziu os textos de Bandeira para o italiano. Fonema Edizioni, 2000, retirado do livro de Fausti e Zanotelli, p. 36 e 119.
8 Jean Gouverneur. Mener as vie selon L’Esprit, p. 71. Paris: Vie chrétienne, 2010. Esse autor recorda que os cristãos, conhecendo os Mandamentos, devem saber o que a sua consciência lhes exige, mesmo porque não há nada a se inventar. A justiça, a verdade e os respeitos aos outros na sua personalidade e necessidades próprias, é o que lhes orienta. É o discernimento que Francisco utiliza como Reformador.
9 A especificidade do direito do Vaticano, sem retoques, reconhece que, na interpretação e aplicação de qualquer lei, sempre, deve ser respeitado o seu direito que o Direito Canônico é fonte do de direito, sendo fonte normativa – a primeira – e, ao ser interpretando qualquer ordenamento, o direito canônico há de ser respeitado.
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