No começo do mês, o presidente da República disse que poderia determinar a abertura do comércio com uma “canetada”. Referia-se, provavelmente, à edição de um decreto para tal finalidade. O contexto da fala deu-se no já conhecido embate travado com governadores e prefeitos; como se sabe, o presidente é contrário às medidas de isolamento que vêm sendo adotadas no país, enquanto os governantes de outras esferas federativas adotam os critérios e as orientações de profissionais da medicina sobre a questão.
Poderia Jair Bolsonaro, de fato, expedir um decreto para determinar a abertura do comércio ou demais estabelecimentos afetados por determinações do Poder Executivo local? A pergunta tem pertinência não só em razão do embate político que vimos assistindo, mas, sobretudo, diante da previsão do artigo 3º, § 9º, da lei 13.979/20, a qual dispõe sobre medidas para o enfrentamento da pandemia.O dispositivo foi incluído pela medida provisória 926/20 e determina que “o Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se refere o § 8º.”
Numa primeira leitura, pode-se inferir que a medida provisória teria dado poderes ilimitados ao presidente para decidir sobre a questão. Não é como se deve concluir, no entanto. E a solução para uma correta interpretação passa, a nosso ver, pelo que dispõe a Constituição Federal e pela aplicação do princípio da razoabilidade.
Não parece haver dúvidas de que o fechamento do comércio e de demais estabelecimentos que acarretem aglomeração de pessoas, no atual contexto, tem como objetivo evitar a propagação do coronavírus. As medidas adotadas pelo Poder Executivo visam, portanto, ao atendimento da saúde pública, bem cuja proteção deverá ser exercida, de maneira concorrente, pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. É o que determina o artigo 23, inciso II, da Constituição Federal.
Do ponto de vista legal, a lei editada para combater a pandemia realmente confere ao presidente poderes para definir o que é atividade essencial; entretanto, verifica-se que ele não poderia determinar o que fica ou não aberto em cada local, dado que esse poder implica eliminação dos poderes que prefeitos e governadores têm e que podem, do mesmo modo, legitimamente exercer.
Em outras palavras, um decreto presidencial com esse conteúdo significaria o próprio e completo esvaziamento dessa competência concorrente de Estados e municípios. E, nesse sentido, vale lembrar que a lei 13.979/20 também deu a esses entes federados poderes para determinar medidas de isolamento.
É aí que entra o critério de razoabilidade acima referido neste texto.
De relevo anotar ainda que essa questão foi recentemente levada ao Supremo na ação direta de inconstitucionalidade 6.341, ajuizada pelo PDT e relatada pelo ministro Marco Aurélio.
Em tal ação, o citado partido questiona a disciplina de tal matéria por meio da medida provisória 926/20, argumentando que ela é inconstitucional tanto sob o ponto de vista formal, uma vez que os temas por ela tratados deveriam sê-lo por meio de lei complementar, quanto sob o ponto de vista material, dado que os dispositivos incluídos na medida provisória teriam esvaziado a competência de Estados, Distrito Federal e municípios.
A medida liminar foi em parte deferida para, nos dizeres do próprio relator, “tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente.” Prossegue o ministro para concluir que a atribuição de competências exclusivas ao Chefe do Poder Executivo federal “não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.”
Igual posicionamento foi adotado pelo ministro Alexandre de Moraes na Arguição de descumprimento de preceito fundamental 672, ajuizada pela OAB também com o propósito de evitar as possíveis interferências do governo federal sobre as políticas de governos locais. Segundo o relator, “não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos.”
Em conclusão, parece-nos que, em matéria de saúde pública, como em tantos outros campos, o presidente pode muito, mas não pode tudo. Infere-se, portanto, que eventual decreto que determinasse a abertura do comércio afrontaria a Constituição Federal, abrindo espaço para a provocação do Poder Judiciário por meio de mandado de segurança ou pela via das ações civis públicas ou populares; no campo político, teria ainda o Congresso Nacional a prerrogativa de sustar esse decreto, nos termos do artigo 49, V, da Constituição Federal.
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