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Banimento do amianto no Brasil e o enfrentamento à pandemia

Nesse momento, torna-se ainda mais relevante reafirmar esses importantes paradigmas: que os estados devem atuar de forma protetiva em matéria de saúde e que o aparente conflito entre economia e saúde não se sustenta em situações em que há perigos concretos à vida das pessoas.

16/4/2020

O debate sobre os impactos e responsabilidades decorrentes da exposição de trabalhadores ao amianto - fibra mineral natural extraída de rochas e usada principalmente para fabricar telhas e caixas d'água - mobiliza categorias similares àquelas que temos visto nestes tempos de pandemia. A dicotomia perversa entre empregabilidade e vida, entre economia e saúde que tomou conta de parte das análises sobre a Covid-19 permeia a discussão acerca do banimento do amianto no Brasil já há bastante tempo. Também debates sobre pacto federativo, motivados por indagações referentes à possibilidade de os estados legislarem sobre proibição do produto em seus territórios, assemelham-se ao conflito que hoje se observa entre a União e os estados no que tange à quarentena e às regras que impõem o isolamento social.

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3460, 3470, 3356 e 3357 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 109, entendeu que a Lei Federal 9.055/95, que previa a possibilidade de uso supostamente seguro do amianto, passou por um processo de inconstitucionalização, verificado a partir de consenso científico quanto ao potencial cancerígeno da substância, em todos os seus formatos. Em consequência, as leis estaduais e municipal que proibiam a produção e venda do mineral foram declaradas constitucionais em julgamento no qual se debateram exaustivamente as características do paradigmático federalismo cooperativo.

As normas federais, segundo o STF, constituem-se piso protetivo - e não teto - , a partir do qual os estados, de acordo com suas próprias realidades, podem ampliar os limites fixados pela União. Tal entendimento foi reafirmado, em relação à Covid-19, em recente decisão proferida na ADPF 672, quando se assentou que “Em momentos de acentuada crise, o fortalecimento da união e a ampliação de cooperação entre os três poderes, no âmbito de todos os entes federativos, são instrumentos essenciais e imprescindíveis a serem utilizados pelas diversas lideranças em defesa do interesse público”. O que a decisão assegura, com isso, é que as regras de repartição de competência entre os entes federados devem operar no sentido de reforço na proteção à vida e à saúde dos cidadãos.

A necessidade de preservação da saúde, quando do julgamento do banimento, foi reafirmada como imperativo constitucional, motivo pelo qual o argumento de uso supostamente seguro do amianto como medida de proteção à empregabilidade acabou por ser rechaçado. O que se pode extrair do acertado posicionamento do STF é que o conflito aparente entre os valores jurídico-constitucionais da proteção dos direitos à vida, à saúde e ao meio ambiente hígido, de um lado, e a empregabilidade, de outro, aponta para a prevalência daqueles sobre este último, na medida em que as atividades econômicas desempenhadas pela cadeia produtiva do amianto são reconhecidamente lesivas a todos que possam vir a ter contato com a fibra, trabalhem ou não com isso. A exposição ao amianto, no trabalho ou fora dele, conforme já reconhecido pelo STF, é causa notória de uma série de doenças de prognóstico letal, tais como a asbestose, o câncer de pulmão e o mesotelioma.

Logo após o julgamento das ADIs, contudo, o lobby do amianto começou a buscar meios de possibilitar a continuidade da extração do minério em Minaçu-GO, onde se localiza a maior mina do mineral em atividade no Brasil, de propriedade da empresa SAMA, pertencente ao Grupo Eternit. Após a publicação do acórdão, buscou-se a modulação dos efeitos da decisão,  mediante embargos de declaração pautados para julgamento no Plenário Virtual do STF entre os dias 17 e 24 de abril próximos. 

Paralelamente, menos de dois anos após a decisão do banimento e em clara afronta à decisão e à autoridade do Supremo Tribunal Federal, o governador do Estado de Goiás, Ronaldo Caiado, sancionou lei que permite extração, beneficiamento e exportação de amianto. A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra a referida lei (ADI nº 6200), que também seria julgada na mesma sessão do Plenário Virtual, mas foi retirada ontem de pauta pelo relator, ministro Alexandre de Moraes.

As posturas antagônicas adotadas pelo governador Ronaldo Caiado em tempos de pandemia e no debate do banimento do amianto foram objeto de questionamento no programa de televisão Roda Viva no começo deste mês. Indagado também - já que adotou medidas conservadoras de isolamento social para conter os adoecimentos por Covid-19 - se não seria o momento de seu lado médico falar mais alto para salvar vidas no caso do amianto, Caiado respondeu que não haveria com o que se preocupar já que nenhum caso de adoecimento teria sido notificado em Minaçu.

O contraditório negacionismo do governador quanto aos adoecimentos causados pelo amianto se parece muito com o obscurantismo daqueles para quem a pandemia não passa de um “leve resfriado” ou de uma “gripezinha”. As doenças causadas pelo amianto causam significativa diminuição da capacidade vital dos pulmões, deixando o organismo vulnerável, ou o enrijecimento do tecido pulmonar, por exemplo, o que coloca as vítimas no grupo de alto risco.  

Especificamente sobre adoecimentos em Minaçu, o antropólogo Arthur Pires Amaral, em tese intitulada "Com o peito cheio de pó: uma etnografia sobre a negação do adoecimento de trabalhadores do amianto na cidade de Minaçu", revela o horizonte de relações paternalistas havidas entre trabalhadores e a SAMA que subsidia o silenciamento dos adoecimentos. É nesse cenário de dependência dos trabalhadores e do próprio município em relação a uma grande corporação em que são oferecidos aos trabalhadores acordos extrajudiciais mediante os quais a empresa se obriga a pagar pífio valor de indenização em troca do direito de ação dos trabalhadores. 

A negação dos adoecimentos faz parte da estratégica da indústria do fibrocimento. Não à toa existe verdadeiro silêncio epidemiológico das doenças relacionadas ao amianto derivado da subnotificação de casos, da dificuldade de se mapear os expostos e da ausência de monitoramento de saúde de população submetida aos riscos. A subnotificação, pelo visto, é ferramenta frequente de preservação de interesses empresariais imediatos, como também tem se verificado no caso da Covid-19. 

Todas essas artimanhas discursivas já foram enfrentadas oportunamente pelo STF, que, em casos como o das ADIs 3460, 3470, 3356 e 3357 e da ADPF 109, tem afirmado que a saúde dos trabalhadores e da sociedade em geral importa e deve prevalecer sobre outros valores jurídico-constitucionais. Nesse momento, torna-se ainda mais relevante reafirmar esses importantes paradigmas: que os estados devem atuar de forma protetiva em matéria de saúde e que o aparente conflito entre economia e saúde não se sustenta em situações em que há perigos concretos à vida das pessoas. 

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*Erica Coutinho é mestre em direito e políticas públicas, sócia em Mauro Menezes & Advogados.

*Milena Pinheiro é mestre em direito, sócia em Mauro Menezes & Advogados.

*Camila Gomes é mestre em Direito, sócia em Mauro Menezes & Advogados e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares.

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