No último dia 3, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 1.179/2020 (“Projeto de Lei”), que propõe regras transitórias aplicáveis às relações civis, em decorrência da pandemia do Covid-19. O texto final aprovado constou do substitutivo apresentado pela Senadora Simone Tebet1, que agregou e consolidou parcialmente 85 emendas apresentadas ao projeto original.
Embora o texto ainda dependa de análise pela Câmara dos Deputados e de sanção presidencial, achamos conveniente traçarmos algumas considerações sobre os pontos que nos parecem mais sensíveis, com o propósito de fomentar o debate para aperfeiçoamento de medida de tamanha importância.
O Projeto de Lei tem como pressupostos declarados a solidariedade e a busca por segurança jurídica2. Em nossa opinião, embora a iniciativa vá bem em alguns pontos, em outros acaba por gerar o efeito inverso, configurando-se potencialmente em mais um vetor legal de insegurança jurídica nas relações privadas.
Fazemos abaixo algumas considerações sobre os temas do Projeto de Lei que, em nosso entendimento, merecem maior atenção:
1 Capítulo VI – Locações de Imóveis Urbanos.
Iniciamos nossa análise pelo capítulo VI, que trata da locação de imóveis urbanos. Em nosso entendimento, trata-se do ponto mais polêmico do Projeto de Lei, e que merece importantes ressalvas.
Em resumo, neste capítulo, o Projeto de Lei sugere uma profunda subversão do standard legal aplicável aos efeitos da ocorrência de caso fortuito e força maior. Em resumo, o artigo 9º estabelece o seguinte:
“Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020.
Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.”
Ou seja, indiscriminadamente, inobstante os efeitos que o locatário venha a efetivamente sofrer em virtude da pandemia de Covid-19, desautoriza-se o Poder Judiciário a determinar liminarmente o despejo para desocupação de imóvel urbano, nas hipóteses listadas.
Não pode ser ignorado o fato de que a Lei nº 8.245/1991, em seu artigo 59, §1º e §9º, concede ao locatário inadimplente o prazo de 15 (quinze) dias para realizar o depósito judicial dos valores devidos e, assim, evitar a rescisão da locação e elidir a liminar de desocupação. Dessa forma, ao locatário inadimplente é garantido um prazo bastante razoável para que possa comprovar que foi impossibilitado de cumprir com as suas obrigações em virtude dos efeitos do Covid-19.
Vale dizer, o afastamento dos efeitos da mora por ocorrência de caso fortuito ou força maior condiciona-se, obviamente, à comprovação de impossibilidade de cumprimento da obrigação. Daí o caráter extraordinário e inovador da redação transcrita acima. Aqui, mencionamos a lição clássica de Planiol3 acerca do ônus da prova no afastamento de obrigações em decorrência de caso fortuito:
“Le débiteur que se prétend liberé par la perte fortuit de la chose ou par toute autre cause fortuite qui rend impossible l’exécution est tenu d’en faire la preuve (art. 1302, al.3). Cette décision n’est qu’une application très correcte des principes generaux sur les preuves.”
Ressalta-se que o relatório aprovado pelo Senado aponta que o Projeto de Lei teria como inspiração a Lei Failliot, editada na França em 1918, tida como um paradigma fundamental das teorias de revisão contratual e relativização do princípio pacta sunt servanda. Tal legislação, editada na França em janeiro de 1918, buscou tratar da revisão de contratos firmados antes da eclosão da Grande Guerra, evento que vitimou aproximadamente 17 milhões de pessoas, entre os quais aproximadamente 1,7 milhão de franceses.
Para se ter dimensão do radicalismo da medida sugerida pelo artigo 9º do Projeto de Lei, basta notarmos que a Lei Failliot (repita-se, editada no contexto da Grande Guerra), limitou seu escopo especificamente “aos mercados e contratos que tenham caráter comercial às partes ou a apenas uma delas, (...) e que comportem entregas de mercadorias ou de bens, de outras prestações, sucessivas ou simplesmente diferidas”4, impondo-se ainda que a resolução ou revisão judicial do contrato, restariam condicionadas “ao requerimento de qualquer das partes, desde que fosse estabelecido que por razão do estado de guerra, a execução das obrigações de um dos contratantes implicaria em encargos ou prejuízos em importância em muito superiores às previsões que poderiam ser razoavelmente feitas à época da convenção”5.
Em resumo, da Lei francesa de 1918 simplesmente se assemelhava às disposições atuais de nosso Código Civil em matéria de revisão por onerosidade excessiva, feita a ressalva de que aquela legislação possuía caráter excepcional, temporário e não se estendia à totalidade das transações.
Neste sentido, importante destacar que a Lei Failliot (suposta inspiração do Projeto de Lei), consoante disposto em seu artigo 7, não se aplicaria às “operações efetuadas nas bolsas de valores, que restam sujeitas às leis decretos e regulamentos que as concernem, tampouco aos contratos de arrendamento e locação”6.
Destarte, o Projeto de Lei inova e ultrapassa seu intuito declarado de trazer segurança na aplicação da lei civil durante a crise. A regra sugerida pelo artigo 9º, caso aprovada, (i) representaria pura e simplesmente uma prerrogativa legal de quebra de contrato, porquanto retire do locatário o ônus da prova de que restaria impossibilitado de cumprir com suas obrigações; e (ii) faria recair exclusivamente sobre o locador a totalidade do ônus oriundo da situação excepcional causada pela pandemia de Covid-19, por ter este que suportar a ocupação do imóvel em determinado período, ainda que sem o recebimento de alugueres.
2 Capítulo II – Prescrição e Decadência e Capítulo VII - Usucapião:
Os artigos 3 e 10 do Projeto de Lei tratam da suspensão de prazos prescricionais, decadenciais e de prescrição aquisitiva (usucapião) de 30 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020. Tais disposições buscam cobrir uma suposta lacuna de nosso Código Civil, que não prevê hipótese de suspensão de prazo prescricional ou decadencial em virtude de caso fortuito ou força maior.
A iniciativa tem aparência razoável, mas se torna questionável diante das hipóteses de interrupção de prazo prescricional previstas no artigo 202 do Código Civil. Vale a transcrição:
“Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:
I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;
II - por protesto, nas condições do inciso antecedente;
III - por protesto cambial;
IV - pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores;
V - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.
Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper.”
Note-se que a pandemia de Covid-19 não parece, até o momento, ser fator impeditivo ao exercício dos atos que interrompem a prescrição.
Com efeito, a distribuição de ações judiciais e a manutenção de serviços destinados à publicação de atos judiciais foram classificadas como atividades essenciais pelo artigo 2º, § 1º da Resolução n.º 313/2020 do Conselho Nacional de Justiça. Da mesma forma, a continuidade dos serviços postais e das atividades de representação judicial foram garantidas, respectivamente, pelos incisos XXI e XXXVIII do artigo 2º do Decreto 10.282/2020.
Ainda, destaca-se que foi permitida a continuação, mesmo que de forma reduzida, dos serviços notariais e de registro, considerados essenciais para o exercício da cidadania, nos termos da Recomendação nº 45 e dos Provimento 91, 94 e 95, todos emitidos em 2020 pela Corregedoria Nacional de Justiça.
Nesse sentido, em tempos de processo eletrônico, teletrabalho e documentação digital, temos que, de maneira geral, não há óbice para a efetivação dos atos interruptivos da prescrição.
Portanto, neste ponto, o Projeto de Lei novamente ultrapassa o intuito declarado de conferir “segurança jurídica, estabilidade, previsibilidade às regras de Direito Privado, no curso desta fase excepcional”, implicando em verdadeira inovação à lei Civil.
Seria melhor e mais adequado tecnicamente que se reconhecesse temporariamente a aplicação do artigo 393 do Código Civil7, na hipótese em que se torne impossível o exercício dos atos de interrupção de prazos prescricionais (por exemplo, impossibilidade de acesso à Justiça, o que não se verifica atualmente) durante o período que o projeto propõe. Tal sugestão, inclusive, estaria em linha com o disposto no artigo 223 do Código de Processo Civil, que prevê a possibilidade de o juiz deferir a dilação de um prazo legal, caso a realização do ato se torne impossível em virtude de evento alheio à vontade da parte.
Portanto, em nosso entendimento, caso aprovado em tais termos, o Projeto de Lei tende a gerar insegurança jurídica, visto que todos os prazos prescricionais e decadenciais em curso seriam afetados por essa medida.
3 Capítulo IV - Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos:
Esse capítulo é composto pelos artigos 6º e 7º e, basicamente, dispõe que:
(i) as consequências da pandemia do Covid-19 à execução dos contratos, inclusive a aplicação do artigo 393 do Código Civil, não terão efeitos retroativos; e
(ii) ficam afastadas a variação cambial, a inflação, a desvalorização e a substituição do padrão monetário como causas para reequilíbrio econômico do contrato (art. 317 do Código Civil), revisão ou resolução por onerosidade excessiva (art. 478, 479 e 480 do Código Civil).
Neste ponto, entendemos que o artigo 6º estende e torna explicita a regra contida no artigo 399 do Código Civil, no sentido de que a ocorrência de caso fortuito e força maior não afastaria a responsabilidade por obrigações que já fossem exigíveis ao tempo do acontecimento dos fatos extraordinários.
Aqui, acreditamos que foi bem o Projeto de Lei, porquanto tenha realmente cumprido com seu propósito declarado de gerar segurança jurídica e, ao contrário de determinados pontos analisados acima, não criou inovações à lei civil.
Quanto ao afastamento de determinadas causas que dariam fundamento à revisão do contrato por onerosidade excessiva, entendemos que o Projeto de Lei traz segurança jurídica às relações civis e revaloriza o princípio pacta sunt servanda, que possui excessivas janelas de relativização em nossa legislação. O enrijecimento objetivo do escopo dos artigos 317, 478, 479 e 480 provavelmente desencorajará a profusão de demandas revisionais decorrentes da pandemia de COVID-19.
Curioso notarmos que, neste capítulo, o Projeto de Lei adota abordagem diametralmente oposta àquela do artigo 9º. Naquele, abre-se uma ampla margem em benefício dos locatários de imóveis inadimplentes, que teriam a prerrogativa de manutenção da posse do imóvel inobstante os efeitos que a crise venha a lhes causar. Neste capítulo, em sentido oposto, evidencia-se um endurecimento das hipóteses de revisão contratual, limitando-se o escopo de atuação do Judiciário.
4 Conclusão:
Entendemos que o Projeto de Lei se trata de iniciativa oportuna. Entretanto, diante das inconsistências apontadas acima, espera-se que seu texto seja aprimorado no curso do processo legislativo.
Em resumo, restam aqui consignadas as seguintes sugestões:
(i) Que o artigo 9º seja suprimido, uma vez que configuraria mera prerrogativa legal de quebra de contrato e transferência ao locador da totalidade dos ônus decorrentes da pandemia de Covid-19; e
(ii) Que sejam alterados os artigos 3º e 10 do Projeto de Lei, visto que a suspensão pura e simples dos prazos de prescrição, decadência e usucapião tendem a gerar mais insegurança do que segurança. Melhor seria que simplesmente fosse prevista a aplicação casuística do artigo 393 do Código Civil, no período sugerido pelo Projeto de Lei e especificamente aos prazos que venham a se encerrar neste interregno.
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2 Vide item II - Análise, do substitutivo apresentado pela Senadora Simone Tebet.
3 PLANIOL, Marcel. Traité Elementaire de Droit Civil, Tome Deuxiéme, Neuvième Édition, Paris: Librarie Generale de Droit & de Jurisprudence, 1923, p. 205. Em tradução livre: “O devedor que pretenda se liberar por perda fortuita da coisa ou por qualquer outra causa fortuita que torne impossível o cumprimento da obrigação, é obrigado a provar isso (art. 1302, al. 3). Esta decisão é apenas uma aplicação muito correta dos princípios gerais sobre provas”.
4 Tradução livre de: “(...) aux marchés et contrats ayant un caractère comercial pour les parties ou pour l'une d'elles seulement, (...), et qui comportent soit des livraisons de marchandises ou de denrées, soit d'autres prestations, successives ou seulement différées.”
5 Tradução livre de: “sur la demande de l'une quelconque des parties, s'il est établi qu'à raison de l'état de guerre l'exécution des obligations de l'un des contractants entraînera des charges ou lui causera un préjudice dont l'importance dépasserait de beaucoup les prévisions qui pouvaient être raisonnablement faites à l'époque de la convention.”
6 Tradução livre de: “La présente loi n'est pas applicable aux opérations effectuées dans les bourses de valeurs, lesquelles restent soumises aux lois, décrets et règlements qui les concernent, non plus qu'aux contrats de louage d'ouvrage, aux baux à loyer ou à ferme”
7 Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
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*Ben-Hur Cabrera Filho é advogado e sócio do PCPM Advogados, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), com formação parcial pela Universidade Lyon II (França). Especialista (LL.M) em Direito Tributário pelo INSPER. Autor do livro "Tributação da Atividade Rural", publicado pela Editora Almedina.
*Henrique Petribu Faria é advogado e sócio do PCPM Advogados, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Pós-graduado (especialização) em Direito Civil pela USP. LL.M - International Sports Law pelo ISDE (Instituto Superior de Derecho y Economia) de Madrid.
*Rodrigo Pires de Mello é advogado e sócio do PCPM Advogados, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Pós-graduado (LL.M) em Direito Societário pelo INSPER.