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Contratos de ensino em tempos de crise: temos que reduzir todas as mensalidades?

Seria, de fato, temerário pensar na possibilidade de generalizações, ou tentativas de imposições de percentuais fixos para a redução de valores em mensalidades. Exatamente porque tal medida, por sua generalidade, deixaria de manter relação com a “base objetiva” de cada contrato de ensino, especificamente considerado.

16/4/2020

Os contratos são fundamentais para a sociedade, para a circulação de bens, para a prestação de serviços. Representam o ápice da autonomia e da liberdade do cidadão, que passa a poder criar regras mediante a manifestação de sua vontade.

É exatamente porque acreditamos que o contrato vai valer e que as pessoas vão cumprir aquilo que se estipulou no contrato, que podemos planejar nossos negócios e tornar mais eficientes e produtivas nossas atividades.

Essa premissa é verdadeira, vale para os contratos de ensino, mas não é absoluta. Isto significa dizer que as obrigações estipuladas em contrato como regra geral são inalteráveis e devem vincular – forçosamente – os contratantes. Até o fim da vigência contratual. Todavia, em casos absolutamente excepcionais, aquilo que se estabeleceu em contrato pode sofrer alterações.

A experiência humana demonstrou que a manutenção da rigidez do vínculo contratual, em casos excepcionais, principalmente quando tratamos de relações continuadas, que se renovam mês a mês, ano a ano, pode acabar por gerar grandes distorções e injustiças. A lei, portanto, instituiu os chamados mecanismos de renegociação e revisão contratual.

A ideia é a seguinte. Todo contrato é firmado mediante uma dada “base objetiva”. São as circunstâncias sociais e econômicas, que permeiam a vidas das pessoas que assinam o contrato, que fazem a estipulação ter sentido. Firmamos um contrato de ensino porque existe escola, com portas abertas e com estrutura física, que acolherá o aluno e será capaz de lhe prestar serviços de ensino. Todavia, quando ocorre uma mudança brusca e inesperada nessas circunstâncias, a “base objetiva” do contrato se altera, justificando, também, a alteração daquilo que foi contratado.

A pergunta que se coloca, então, é a seguinte: a situação provocada pelo covid-19 e a suspensão das aulas pode se enquadrar como fato extraordinário apto a alterar a base objetiva das relações contratuais de ensino?

Os contratos firmados entre pais, alunos e instituições de ensino parte da base objetiva de que o centro de ensino funcionará e que que os alunos poderão frequentar sua estrutura física, usufruindo das diferentes metodologias de ensino disponibilizadas. Suspensas as aulas, e fechadas as portas da instituição, surge abertura para a renegociação e revisão contratual. Que existe, não apenas para atender aos interesses dos pais e alunos, mas também das instituições de ensino.

É importante ressaltar: os contratos com escolas e universidades estipulam regras quanto à prestação de serviço, as quais, na maioria, pressupõem que o ensino, ou que sua grande parte, será viabilizado mediante utilização da estrutura física da instituição, com mesas, cadeiras, bibliotecas, salas limpas e organizadas, material didático, acesso a apoio pedagógico e psicológico, e muitas outras obrigações --- assumidas pelas escolas e universidade – e que diante da alteração das circunstâncias de fato (leia-se, pandemia) não mais poderão serem cumpridas.

A renegociação e revisão dos contratos surge, portanto, neste momento de crise, como uma proteção das próprias instituições de ensino, que passam a justificar a alteração daquilo que originariamente foi contratado, permitindo que os serviços de ensino sejam prestados de modo diferente, por meio de ensino a distância ou outras metodologias disponíveis.

E quanto ao outro lado da relação, a alteração da base contratual tem impactos para o contratante dos serviços de ensino? Deve haver redução de mensalidade?

Não há dúvidas de que as circunstâncias fáticas relacionadas ao contrato se alteraram consideravelmente, provocando alteração significativa no modo de prestação dos serviços. Isso tem o potencial de justificar a renegociação e mudança na contraprestação devida por pais e alunos, destinatários do serviço. Também com possibilidade de alterar valor de mensalidades.

Todavia, a identificação de tais circunstâncias não pode, e não deve ocorrer mediante a intervenção direta, forçosa, litigiosa do Estado, Ministério Público ou liminares deferidas pelo Poder Judiciário.[1]  As relações de ensino são complexas, cada escola, universidade, curso, com suas peculiaridades. Tudo isso envolve uma quantidade enorme de variáveis, impassíveis de serem adequadamente conhecidas por mera instauração de procedimentos perante o Ministério Público ou mesmo na estrutura judicial das tutelas de urgência, na qual magistrados decidem sem conhecimento profundo das relações (cognição sumária).

A eventual redução de mensalidades deve ser obtida, fundamentalmente, mediante diálogo e boa-fé. Com base na relação de confiança entre instituição e aluno e, especialmente, levando em consideração cada caso concreto, (I) como os serviços passaram a serem prestados, (II) a adequação desses serviços, (III) quais são os instrumentos usados para reduzir as consequências negativas para os alunos, e assim por diante.

Além disso, a renegociação contratual deve levar em consideração aspectos econômicos. Não há dúvida que se pode pensar na redução de custos da instituição com energia elétrica, água, luz, limpeza, todavia, não se pode ignorar o surgimento de novos custos para as instituições, com a implementação de softwares de ensino à distância, treinamento de pessoal, disponibilização de equipamentos de informática para a equipe, além do previsível aumento do inadimplemento, a surgir diante da crise, e com impactos financeiros para toda e qualquer instituição.

Seria, de fato, temerário pensar na possibilidade de generalizações, ou tentativas de imposições de percentuais fixos para a redução de valores em mensalidades. Exatamente porque tal medida, por sua generalidade, deixaria de manter relação com a “base objetiva” de cada contrato de ensino, especificamente considerado.

Do mesmo modo, seria temerário exigir a exibição de informações financeiras da empresa, de modo a buscar – como muitos temerariamente buscam – descontos que visam a redução do “lucro das empresas”. Lucro não é e não pode ser tratado como um mal na sociedade. Invadir o sigilo fiscal e financeiro das empresas não é medida proporcional nem adequada à luz do Estado de Direito.

A perseguição ao lucro seria medida desproporcional. Acabaria por representar, no fim das contas, uma sanção para as instituições bem administradas, capazes de gerar os maiores lucros, em detrimento daquelas que, mesmo antes da crise, apresentavam problemas financeiros e eram deficitárias.

Pior ainda. O uso do critério lucro, para tentar mensurar redução em mensalidades, geraria o absurdo de não trazer impacto nenhum às escolas e universidades que operam no negativo, mesmo diante de todos os outros motivos que justificariam a redução das mensalidades.

O fato é que o nosso tempo exige cooperação e diálogo. A prioridade é construir soluções dialogadas entre as partes envolvidas, reconhecendo as especificidades de cada caso e evitando generalizações. Respeito ao aluno e aos destinatários dos serviços de ensino, e respeito também às instituições, que lutarão para sobreviver nos tempos difíceis que temos a frente.

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1 Foi essa a diretriz da Secretaria Nacional do Consumidor, conforme nota técnica 14/20.

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*Marcelo Pacheco Machado é doutor em direito pela USP.

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