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A possibilidade de revisão de contratos e a covid-19

O lockdown provocado pela pandemia da covid-19, que impacta diretamente as relações jurídicas e econômicas, pode impor a readequação dos contratos, a fim de equilibrar os encargos e as obrigações das partes contratantes.

15/4/2020

Os contratos e os negócios jurídicos possuem, em si mesmos, um risco inerente, o qual é examinado pelas partes antes do momento de sua celebração. O decreto editado pelo Governo de Estado de São Paulo que determinou o fechamento temporário de estabelecimentos considerados não essenciais, bem como a impossibilidade de se manter o suprimento de produtos em razão da pandemia de covid-19 no mundo, podem trazer a esses contratos situações que não eram previstas, até então.

É a chamada ruptura do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, isto é, a verificação de fato imprevisível e extraordinário que torna excessivamente onerosa a obrigação a uma das partes.

Trata-se do instituto rebus sic stantibus, que significa literalmente: "enquanto as coisas estão assim". Em outras palavras, segundo a Teoria da Imprevisão, em contratos de execução continuada e que não contenham obrigações aleatórias, ocorrendo fato imprevisível que rompa o equilíbrio financeiro do contrato, poderá haver a revisão das obrigações.

As partes podem buscar o reequilíbrio financeiro dos contratos, abalado por onerosidade excessiva, conforme previsto pelo Código Civil, em seus artigos 478, 479 e 480, modificando equitativamente as condições do contrato.

O ideal é que as partes, imbuídas de boa-fé, possam rediscutir a forma de cumprimento das obrigações do contrato e acabem por atingir um novo equilíbrio financeiro, principalmente com o objetivo de evitar o litígio e manter a boa relação no período em que retornar a situação de normalidade. Caso não seja possível, poderá ser proposta ação judicial com o objetivo de se discutir a excessiva onerosidade da obrigação, cabendo ao Judiciário promover o reequilíbrio financeiro do contrato, nos termos do art. 317, do Código Civil, na busca do "valor real da obrigação", à luz daquela nova circunstância.

Exemplos típicos de quebra de equilíbrio financeiro por teoria da imprevisão durante a pandemia de covid-19:

As decisões judiciais proferidas a respeito de questões similares - ou seja, crises macroeconômicas graves e de grandes proporções, que abalaram o equilíbrio de contratos, como a greve dos caminhoneiros havida entre maio e junho de 2018 -, revelam uma tendência de nossos Tribunais de se repartir entre as partes contratantes o ônus excessivo que emergiu e que não pôde ser previsto por nenhuma delas na fase de negociação do contrato. Frise-se, porém, que a variação cambial, aumento brusco da inflação ou oscilações de condições financeiras que podem ocorrer costumeiramente em nosso país, sobretudo no mercado de capitais, não configuram, em tese, fato imprevisível, como tem sido o entendimento da jurisprudência majoritária de nossos Tribunais (STJ: REsp 1689225-SP; REsp 936.741-GO; AgInt-AREsp 646945-SP).

Destaque-se decisão de tutela provisória (liminar) proferida pela 22ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, em 2 de abril de 2020, na qual o MM. juiz determina que o aluguel a ser pago por um restaurante seja temporariamente reduzido em 70% do valor vigente (processo 1026645-41.2020.8.26.0100). Restou demonstrado nos autos que o referido estabelecimento encontra-se "fechado" em razão do estado de calamidade pública, tendo que se adaptar ao serviço de delivery.

O pedido inicial formulado pela sociedade, que opera o restaurante, postulava pela redução em 90% do valor do aluguel. No entanto, o entendimento do magistrado foi no sentido de dividir o ônus entre as partes, mesmo porque os locadores, no caso, são pessoas físicas, que supostamente dependem da renda de locação para a subsistência.

Outra decisão que deve ser realçada é a decisão monocrática proferida pelo desembargador relator, dr. César Ciampolini da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo em agravo de instrumento 2061905-74.2020.8.26.0000. Foi concedida antecipação parcial da tutela recursal, aplicando-se a teoria da imprevisão, com o intuito de que, em contrato de cessão de quotas societárias, três parcelas com vencimento para abril, maio e junho deste ano fossem fracionadas em 10 (dez) parcelas.

No referido caso, as partes eram sócias de uma sociedade que tem por objeto a comercialização de açaí, na cidade de Assis/SP. A agravante adquiriu as quotas de titularidade da agravada, em 18/2/2020, antes da confirmação do primeiro caso de covid-19 no Brasil. Com a declaração de pandemia, a Prefeitura de Assis determinou o fechamento do comércio não essencial, de sorte que a loja da agravante teve de suspender sua atividade.

Sem atividade, a agravante alegou estar sem faturamento decorrente de sua atividade empresarial, não podendo honrar com o contrato de cessão onerosa de quotas da sociedade, razão pela qual postulou pela suspensão dos vencimentos das parcelas vincendas em abril, maio e junho de 2020.

Invocando os arts. 478 a 480 do Código Civil, por se tratar de contrato de execução continuada, que não é de natureza aleatória e verificada a ocorrência de fato imprevisível, a referida decisão levou em consideração a busca por uma solução equitativa. Assim, optou por não suspender o vencimento das obrigações dos três aludidos meses, mas sim parcelar esses valores em 10 vezes.

É fundamental que tais pedidos judiciais sejam embasados em provas concretas que demonstrem a situação atual do autor da ação. Ou seja, documentos que permitam ao magistrado compreender que aquela pessoa física ou jurídica está, de fato, experimentando grandes dificuldades com a quarentena imposta pelo decreto do Governo do Estado de São Paulo, sem que se viabilize uma irrestrita e indiscriminada moratória a todos, o que abalaria seriamente a economia do país, em efeito cascata.

A par disso, a prova da boa-fé do devedor é essencial (art. 422, Código Civil), a fim de se impedir abuso de direito ou fraude.

Observe-se, ainda, o PL 1.179/20 que propõe a instituição do Regime Jurídico Emergencial e Transitório – RJET para as relações privadas, de lavra originalmente do Senador Antonio Anastasia e com projeto substitutivo da senadora Simone Tebet. Aprovado no Senado, encontra-se em trâmite perante a Câmara dos Deputados atualmente.

Referido PL trata a respeito das locações de imóveis urbanos, propondo que, até 30 de outubro de 2020, não se concedam decisões liminares em ações de despejo a que se refere o art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX, da lei 8.245/91 (Lei de Locações), até 30 de outubro de 2020. Ficariam mantidas, portanto, as hipóteses de: (i) locação por temporada; (ii) invasão do imóvel por terceiros quando falecido o locatário; e (iii) necessidade de reparos urgentes (incisos III, IV e VI do parágrafo 1º do art. 59, da lei 8.245/91). Sem prejuízo, as ações de despejo poderiam ter seu curso regular, tão logo os prazos processuais voltem a fluir.

No tocante à revisão dos contratos em razão de fatos imprevisíveis, o referido PL, estabelece que:

Art. 7º Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.

Ou seja, o art. 7º do projeto de RJET caminha na linha do que já vem sendo traçado pela jurisprudência. Além disso, o art. 6º, destaca que a revisão de contratos em razão de caso fortuito ou força maior (art. 393, CC) não poderá ter efeitos retroativos.

Caso aprovado o PL tal como se encontra, a nosso ver, as alterações acima comentadas, que vigorariam durante a pandemia, são positivas na medida em que confirmam o posicionamento da jurisprudência majoritária e têm o condão de coibir ações judiciais descabidas, trazendo alguma segurança jurídica e previsibilidade ao atual momento.

Esses apontamentos dão conta de que o lockdown provocado pela pandemia da covid-19, que impacta diretamente as relações jurídicas e econômicas, pode impor a readequação dos contratos, a fim de equilibrar os encargos e as obrigações das partes contratantes.

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*Cristiano Padial Fogaça é sócio do Fogaça, Moreti Advogados.

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