Migalhas de Peso

O formalismo desproporcional na contratação de profissionais de saúde pública e a pandemia da COVID-19

O rigor excessivo e desproporcional na contratação desses profissionais de saúde deve ser combida pelo Poder Judiciário, que pode remediar a ilegalidade, frente a ausência de razoabilidade no certame.

14/4/2020

Por conta da expansão da pandemia do COVID-19, causada pelo novo coronavírus, com pico e provável colapso do sistema de saúde do Brasil até o final de abril de 2020, de acordo com as projeções do Ministério da Saúde, há uma corrida contra o relógio para contratar novos profissionais de saúde a tempo de suprir o aumento da demanda de pacientes.

No entanto, antes mesmo de chegar ao Brasil a Pandemia da COVID-19, o Poder Judiciário já enfrentava demandas de profissionais da área da saúde que tiveram sua contratação negada em decorrência de um formalismo desproporcional.

A bem da verdade, a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH, a maior rede de hospitais públicos do Brasil, possui diversos processos judiciais de candidatos que tiveram sua contratação negada sob o fundamento que determinadas especializações e experiências profissionais não atendiam a nomenclatura e/ou uma declaração com descrição detalhada nos moldes da exigência do edital de contratação.

Um desses casos é o de uma enfermeira teve sua contratação obstada em razão de exigência editalícia de que os documentos de certificação que forem apresentados por diplomas ou certificados/certidões de conclusão de curso sejam acompanhados do respectivo histórico escolar.

Desse modo, no caso supracitado, o e. TRF5 assinalou que “a recusa, fundada no excesso de formalismo e apego à literalidade do vernáculo ‘diploma e/ou certificado’, e consequente desconsideração da declaração emitida, além de desarrazoada, mostra-se flagrantemente contrária à finalidade pretendida na fase de apresentação de títulos nos concursos públicos, qual seja, a atribuição de pontuação diferenciada àqueles candidatos mais qualificados a ocuparem a função pública em disputa (...) Mostra-se desprovida de razoabilidade a exigência editalícia de que os documentos de certificação que forem apresentados por diplomas ou certificados/certidões de conclusão de curso sejam acompanhados do respectivo histórico escolar (...) não resta qualquer dúvida que o referido curso se insere na área do emprego público pleiteado (oncologia)1.

Já no âmbito do TRF da 1ª Região, uma candidata aprovada para o cargo público de técnica de farmácia teve sua contratação negada sob o fundamento que a experiência profissional que ela possuía não atendia a nomenclatura exigida no edital de contratação.

Desse modo, após o ingresso de demanda judicial, o e. TRF1 decidiu que “a comprovação de experiência profissional visa recompensar o candidato que já exercia na práxis laboral as funções do cargo pleiteado. É indiferente a nomenclatura utilizada pelo empregador, sob pena de desproporcional formalismo, se a sua declaração das atribuições exercidas pela candidata são iguais às do cargo pretendido. (…) Embora seja assente na jurisprudência pátria a estrita vinculação ao instrumento convocatório e que o edital gera lei entre as partes, também é cediço que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, conforme o art. 5º, inciso XXXV da CF/88. No caso a não concessão da pontuação constante no edital seria ferir os princípio citado antes de violá-los, pois devidos. A questão é do campo da legalidade do ato administrativo analisado, que também viola a razoabilidade, permitindo o controle pelo judiciário. Não há violação ao princípio da isonomia, pois a concessão é consectário do cumprimento das disposições editalícias a todos impostas e violadas pela impetrada ao não computar a experiência profissional da impetrante.2

Em apertada síntese, o e. TRF1 manteve a r. sentença do tribunal de origem, e assinalou que há legalidade no controle pelo judiciário da desproporcionalidade de formalismo no preenchimento de requisitos editalicios para fins de contratação para cargo público. Ou seja, o entendimento no caso é de que o apego excessivo a nomenclatura viola a razoabilidade.

Ademais, em outro caso, uma médica cardiologista teve sua contratação obstada em razão de suposta ausência em declaração de descrição pormenorizada das atividades desenvolvidas em determinada experiência profissional anterior.

Desse modo, no caso supracitado, o e. TRF1 firmou que “comprovado que a impetrante integra o quadro de cooperativa especializada em procedimentos cardiológicos, atuando no exercício da profissão de médico e, portanto, desempenhando as atividades disciplinadas pela Lei n. 12.842, de 10.07.2013, é desarrazoada a exigência de descrição pormenorizada das atividades desenvolvidas3.

Em mais um caso, inclusive de profissional da saúde especializada em área extremamente relevante para o tratamento de pacientes convalescentes da COVID-19, uma enfermeira logrou aprovação em concurso promovido pela EBSERH, na especialidade terapia intensiva (enfermeira em unidades de terapia intensiva).

Contudo, sua posse lhe foi negada sob o fundamento de que não preencheu os requisitos necessários à assunção do cargo, uma vez que deveria ter apresentado a Carteira de Trabalho e declaração informando que exerce o cargo de “Enfermeira em Terapia Intensiva”.

Dessa forma, no caso supracitado, o e. TRF1 decidiu que “na situação em análise, constata-se que a apelada exerceu o cargo de ‘Enfermeira Assistencial’, com lotação em ‘UTI GERAL’, atendendo, desse modo, a comprovação de experiência profissional mínima necessária ao exercício do emprego público. Assim, não se mostra razoável a desconsideração da pontuação obtida pela candidata, ora apelada, quanto à exigência de comprovação de experiência profissional, uma vez cumprido o objetivo primordial do Edital, qual seja, o de contratação de profissionais mais qualificados ao exercício das atribuições atinentes ao cargo. Portanto, foi preenchido o requisito para permitir a posse e exercício do apelante no cargo pretendido, razão pela qual deve ser mantida a sentença4.

Em outro caso, também de profissional da saúde especializado em área extremamente relevante para o tratamento de pacientes convalescentes da COVID-19, um fisioterapeuta logrou aprovação em concurso promovido pela EBSERH, na especialidade fisioterapia intensiva (fisioterapia em unidades de terapia intensiva).

Contudo, sua posse lhe foi negada sob o fundamento de que não preencheu os requisitos necessários à assunção do cargo, uma vez que ele era portador de diploma de especialista em Fisioterapia Cardiorrespiratória e não de Fisioterapia Intensiva.

Desse modo, no caso supracitado, o e. TRF1 decidiu que “não obstante a similaridade das matérias ministradas no curso de especialização do Recorrente com aquelas apontadas no edital do concurso em discussão, outros dois fatos devem ser destacados como ensejadores do deferimento do pedido de antecipação dos efeitos da tutela, quais sejam, a mudança do nome do curso realizado pelo requerente e entendimento do COFITO sobre a identidade das atribuições (...) Conclui-se, assim, que o “Curso de Especialização em Fisioterapia Cardiorrespiratória” realizado pelo Recorrente, o qual deve sua nomenclatura modificada para “Curso de Especialização em Fisioterapia Cardiorrespiratória nas Unidades de Internação Geral e Terapia Intensiva” é título equiparado à fisioterapia intensiva, razão pela qual deve ser deferido o pedido5.

Em outras palavras, no caso supracitado, foi decidido pelo e. TRF1 que o candidato possui o direito de ser nomeado e empossado no pretendido cargo público, pois o título de especialização que o ele detém é idêntico ao título de especialização de Fisioterapia Intensiva, exigido no edital de contratação, sendo a diferença apenas de nomenclatura, que inclusive foi alterada posteriormente para “fisioterapia cardiorrespiratória nas Unidades de Internação Geral e Terapia Intensiva”.

A bem da verdade, o Poder Judiciário tem buscado combater o rigor extremado em seleções públicas, como já firmou o TRF1 em casos semelhantes, “configura-se desproporcional formalismo o desprezo da efetiva qualificação do candidato perante a nomenclatura dos requisitos constantes no edital, sem atentar-se à compatibilidade material da formação em análise, aceitando-se a documentação apresentada como válida. Não se trata de desprezar o princípio da vinculação ao edital, mas de garantir o princípio da eficiência, aproveitando ao máximo as qualificações do candidato.6

Além disso, “a exigência de nível de formação escolar para fins de preenchimento de cargo ou emprego público objetiva assegurar a adequação de conhecimentos técnicos dos candidatos às atribuições que serão exercidas pelo vencedor do certame. Mostra-se desarrazoado obstaculizar o acesso ao serviço público de um candidato que possui grau de escolaridade em curso análogo, com conteúdo adequado ao que restou exigido para o cargo para o qual concorreu”.7 

Frise-se que a nomenclatura do diploma apresentado pelo candidato não pode ser reputada como motivo suficiente que enseje sua desclassificação do certame, quando é devidamente comprovada no processo de contratação sua capacidade e qualificação técnicas compatíveis com as exigidas para o cargo que pleiteia.

Por essas razões, principalmente em decorrência da premente necessidade de contratação de profissionais da saúde para atuação no tratamento de convalescentes da COVID-19, é imperioso registrar quenão viola o princípio da separação de Poderes o exame, pelo Poder Judiciário, de ato administrativo tido por ilegal ou abusivo8.

Indubitavelmente, “malgrado independentes, os poderes estatais imprescindem, na busca do equilíbrio necessário à realização do bem comum e de modo a evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais dos administrados, do estabelecimento de mecanismos de controle recíprocos do exercício das respectivas funções (o chamado sistema de freios e contrapesos)9.

Em outras palavras, “a Constituição previu que os Poderes são independentes e harmônicos entre si, dessa forma, a harmonia, significa o privilégio à cooperação e a lealdade institucional, consagrando mecanismos de controle recíprocos entre os três poderes, de forma que, ao mesmo tempo, um Poder controle os demais e por eles seja controlado (teoria dos freios e contrapesos)10.

Outrossim, “não há que se falar em ingerência do Judiciário na esfera dos outros Poderes, visto que lhe cabe a prerrogativa jurídico-constitucional do monopólio da jurisdição e, nessa qualidade, ostenta a atribuição de exercer o controle judicial da legalidade dos atos emanados dos entes públicos. Com efeito, é certo que cabe ao Judiciário assegurar, ao que lhe busca socorro, os direitos previstos em Lei, mormente na Constituição da República11.

O exame de legalidade e abusividade dos atos administrativos pelo Poder Judiciário não implica violação ao princípio da separacão dos poderes, porquanto não se trata de análise das circunstâncias que circunscrevem ao mérito administrativo12.

Ou seja, o rigor excessivo e desproporcional na contratação desses profissionais de saúde deve ser combida pelo Poder Judiciário, que pode remediar a ilegalidade, frente a ausência de razoabilidade no certame.

A bem da verdade, a burocracia na administração muitas vezes resulta no formalismo exagerado. De outro lado, destaque-se que “o Estado marcado com uma administração gerencial é aquele que tem como objetivos principais atender a duas exigências do mundo atual: adaptar-se à revisão das formas de atuação do Estado, que são empreendidas nos cenários de cada país; e atender às exigências das democracias de massa contemporâneas. (...) A administração gerencial repousa em  descentralizações política e administrativa, a instituição de formatos organizacionais com poucos níveis hierárquicos, flexibilidade organizacional, controle de resultados, ao invés de controle, passo a passo, de processos administrativos, adoção de confiança limitada, no lugar de desconfiança total, em relação aos funcionários e dirigentes e, por último, uma administração voltada para o atendimento do cidadão e aberta ao controle social. O Estado gerencial tem uma administração baseada em concepção democrática e plural. A administração gerencial empreende adequar as organizações públicas aos seus objetivos prioritários, que são os resultados. Busca identificação com os usuários e incrementar sua eficiência com mecanismos de quase-mercado ou concorrência administrada13.

Durante a atual pandemia do COVID-19 no mundo, de todos os serviços afetados e com dispensa, o de saúde se mantém com a atuação de todos os profissionais nas Unidades Básicas de Saúde, Hospitais, clínicas e serviços de emergência.

Por mais que órgãos e entidades tenham se manifestado sobre a busca dos serviços médicos apenas em casos graves e realmente necessários, o fluxo de pacientes aumenta cada vez mais.

Urge salientar que a situação entre os profissionais de Saúde já é crítica. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde – OMS, o percentual de trabalhadores da saúde afetados pela Covid-19 varia entre 8% e 10%14.

Destaque-se que recentemente, “três hospitais de São Paulo anunciaram o afastamento de pelo menos 530 funcionários por suspeita ou confirmação de Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus15.

Desse modo, com o crescente número de profissionais da saúde já infectados pelo COVID-19 e afastados do trabalho, a demanda de profissionais da saúde ascende cada vez mais.

Além do sonho e empenho frustrado do candidato de ser aprovado em concurso público, urge salientar que durante o enfrentamento da pandemia do COVID-19 não há como se apegar ao formalismo exagerado em detrimento de vidas que poderiam ser salvas por profissionais da saúde que estão aptos e capacitados para o exercício do cargo.

Portanto, como a pandemia do COVID-19 enfrentada pelo Brasil já indica um colapso no Sistema de Saúde brasileiro, não há como continuar prosperando o formalismo exagerado na contratação de profissionais da saúde, tão essenciais e preciosos no presente momento.

O ideal seria que a adoção do modelo gerencial pela administração pública para afastar o formalismo exagerado. Não ocorrendo isso, o Poder Judiciário pode e deve ser acionado para remediar situações de rigor excessivo e desproporcional na contratação de profissionais de saúde pública, frente a ausência de razoabilidade no certame.

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1 TRF5. PROCESSO: 08034448820144058100, AC - Apelação Civel, DES. FEDERAL EMILIANO ZAPATA LEITÃO (CONVOCADO), Primeira Turma, JULGAMENTO: 21.5.2015.

2 TRF1. AMS 0041681-76.2014.4.01.3400/DF, Rel. Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian, Rel. Conv. Juiz Federal Reginaldo Márcio Pereira (Conv.), Sexta Turma, e-DJF1 p.191 de 3.8.2015.

3 TRF1. AMS 0047207-24.2014.4.01.3400, DES. FEDERAL DANIEL PAES RIBEIRO - SEXTA TURMA, e-DJF1 12.9.2017.

4 TRF1. AMS 0075351-08.2014.4.01.3400, JUIZ FEDERAL CAIO CASTAGINE MARINHO (CONV.) - SEXTA TURMA, e-DJF1 4.12.2019 PAG.

5 TRF1. AG 0054085-43.2015.4.01.0000, DES. FEDERAL KASSIO NUNES MARQUES, SEXTA TURMA, e-DJF1 27.6.2016.

6 TRF1. AC 0004393-36.2006.4.01.3801/MG, Rel. Des. Federal Jirair Aram Meguerian, Sexta Turma, e-DJF1 de 11.03.2016.

7 TRF. AMS 0019519-67.2013.4.01.4000 / PI, Rel. Des. Federal Kassio Nunes Marques, Sexta Turma, e-DJF1 p.726 de 11.02.2015.

8 STF. RE 956521 AgR, Relator(a): Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em 28.10.2016, publicado em 17.11.2016.

9 TRF1. REO 0033261-97.2005.4.01.3400 / DF, Rel. Des. Federal João Batista Moreira, Rel.Acor. Des. Federal Selene Maria De Almeida, Quinta Turma, publicado em 19.9.2013.

10 TRF1. AC 0014312-29.2008.4.01.3300 / BA, Rel. Des. Federal Selene Maria De Almeida, Quinta Turma, e-DJF1 p.23 de 15.4.2013.

11 TRF1. AG 0005166-62.2011.4.01.0000 / DF, Rel. Des. Federal Fagundes De Deus, Quinta Turma, e-DJF1 p.705 de 9.9.2011.

12 STF. ARE 702933 AgR, Relator(a):  Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 11/09/2012, publicado em  24.9.2012.

13 MAFRA, Francisco. Administração pública burocrática e gerencial. Disponível em < https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-administrativo/administracao-publica-burocratica-e-gerencial/ >. Acesso em 6.4.2020.

14 Até 10% dos profissionais da saúde são atingidos por Covid-19. Disponível em < https://www.fundacentro.gov.br/noticias/detalhe-da-noticia/2020/3/ate-10-dos-profissionais-da-saude-sao-atingidos-por-covid-19 >. Acesso em 6.4.2020.

15 Profissionais de saúde e agentes de segurança devem ter prioridade em testes para Covid-19. Disponível em < https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/31/profissionais-de-saude-e-agentes-de-seguranca-devem-ter-prioridade-em-testes-para-covid-19-entenda.ghtml >. Acesso em 6.4.2020.

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*Camila Carolina Damasceno Santana é advogada do núcleo de tribunais superiores do escritório Barbosa e Dias advogados associados, atualmente é aluna do Cours de civilisation française de La Sorbonne, em Paris, França.

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