A atual pandemia gerada pela Covid-19 é a maior crise global enfrentada desde a 2ª Guerra Mundial. Tal assertiva foi destacada, há poucos dias, pelo secretário geral da ONU, António Guterres1, e o seu conteúdo também é verificado em âmbito nacional por meio de decisões judiciais2. Estima-se que ocorrerá um recuo entre 13% e 32% no comércio mundial neste ano, de modo a atingir um cenário pior do que o já visto na crise financeira de 20083.
Teoria da imprevisão, teoria da onerosidade excessiva, teoria da base objetiva do contrato. Trata-se de distintos fundamentos jurídicos invocados em um cenário comum: o de impactos negativos sobre as relações contratuais empresariais. A ocorrência de uma dessas teorias deve ser analisada à luz do caso concreto4 e nenhuma delas se confunde com o conceito de caso fortuito ou força maior. Essa disciplina é estabelecida no art. 393 do Código Civil e, em que pese a existência de controvérsia doutrinária acerca dos conceitos das expressões – “caso fortuito” e “força maior” –, que não se mostra relevante, é majoritário o entendimento segundo o qual os termos são sinônimos e possuem o mesmo efeito,5 qual seja a liberação do devedor de arcar com os prejuízos que o seu descumprimento vier a ocasionar na esfera jurídica do credor6.
Nesse cenário, a pandemia da Covid-19 já vem sendo considerada em decisões judiciais brasileiras como caso fortuito ou força maior.7 Isso demonstra o reconhecimento da gravidade da atual conjuntura pelo Poder Judiciário. Todavia, não se pode perder de vista que, apesar da pandemia ser considerada um evento de caso fortuito ou força maior, em razão da necessariedade e irresistibilidade que gera em relação ao contratante8, é imprescindível que seja comprovado o nexo de causalidade entre esse evento e a impossibilidade de execução da prestação obrigacional por parte do devedor.9
Os efeitos do novo coronavírus são manifestos em diversos setores da sociedade, como a área empresarial, tendo em vista que toda a cadeia econômica está sendo afetada, desde a produção até o consumo. Estudos atuais demonstram que 50% das maiores empresas do Brasil possuem caixa para se manter, sem faturamento, pelo período de três meses.10 Disso, decorrem duas reflexões: (a) A tendência é que ocorra uma elevação, a curto prazo, no ajuizamento de recuperações judiciais e na implementação de recuperações extrajudiciais;11 (b) Se esse é o cenário das maiores empresas do Brasil, certamente, a situação se mostra ainda mais grave para empresas em recuperação judicial.
Mostra-se de extrema importância, então, nesse momento, a promoção de medidas específicas voltadas para empresas em recuperação judicial pelo Poder Público, fato que já vem ocorrendo em outros países afetados pela pandemia, tais como Austrália, França, Espanha e Itália.12 Sob essa perspectiva, merece destaque o Projeto de Lei 1397/2020 apresentado pelo Deputado Hugo Leal (PSD/RJ), que institui medidas de caráter emergencial por meio de alterações, de caráter transitório, de dispositivos da Lei de Recuperação Judicial, as quais só possuiriam vigência até 31 de dezembro de 2020 ou enquanto perdurar o estado de calamidade pública decretado em âmbito nacional.
Dois dispositivos instigantes do supramencionado Projeto são os artigos 11 e 13, inciso II. O primeiro estabelece que não serão exigíveis do devedor o cumprimento das obrigações previstas nos planos de recuperação judicial e extrajudicial já homologados pelo prazo de 120 dias. Suspendendo-se, então, durante esse período, os efeitos do art. 73, IV, da Lei nº 11.101/2005, o qual prevê a decretação de falência em caso de inadimplemento de qualquer obrigação definida no plano de recuperação. Em outros termos, o Projeto afasta a possibilidade de decretação de falência, em razão de descumprimentos do devedor de obrigações previstas em planos já homologados, pelo prazo de 120 dias.
O art. 13, II, por sua vez, estabelece um limite mínimo para a decretação de falência prevista no art. 94, I, da lei 11.101/2005. Por essa razão, não bastaria a inércia do devedor perante uma execução por “qualquer quantia líquida” para a decretação de sua falência, mas sim pelo valor mínimo de R$ 100.000,00. Percebe-se, assim, um esforço em preservar a saúde financeira da empresa, flexibilizando-se as hipóteses de decretação de falência, uma vez que essa não é a melhor opção, nesse cenário, seja pela perspectiva jurídica, seja pela econômica.
Nesse contexto, enquanto não há a vigência de um regime jurídico emergencial voltado para as empresas em recuperação judicial, torna-se necessária uma atuação do Poder Judiciário voltada à segurança jurídica, em detrimento de uma eventual insegurança legislativa, com a utilização dos instrumentos jurídicos disponíveis, que se consubstanciam na legislação em vigor. Desse modo, à mingua de uma legislação emergencial específica, diversos temas de insolvência estão sendo decididos, à luz da conjuntura gerada pela pandemia da Covid-19, como a prorrogação do stay period13, a suspensão das obrigações do plano de recuperação judicial14 e a realização de assembleia geral de credores em meio virtual.15
Diante desse cenário, foi aprovada recentemente uma Recomendação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)16, com a finalidade de mitigar os impactos decorrentes das medidas de combate à contaminação pelo novo coronavírus, uma vez que o fechamento de empresas que desempenham atividades consideradas não essenciais reflete diretamente na sobrevivência dos negócios e na preservação de empregos.
A Recomendação do CNJ abarca seis orientações aos Juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação judicial e falência, tais como (i) a prioridade na análise e decisão sobre questões relativas ao levantamento de valores em favor de credores ou recuperandas (art. 1º); (ii) a autorização de realização de assembleia geral de credores virtual, quando verificada sua urgência para manutenção das atividades da recuperanda e para o início dos pagamentos aos credores (art. 2º, parágrafo único); (iii) a prorrogação do prazo do stay period, se houver necessidade do adiamento da realização de assembleia geral de credores (art. 3º) e (iv) a autorização de apresentação de plano modificativo pela recuperanda, a ser submetido aos credores, desde que reste comprovado que a diminuição de sua capacidade de cumprimento do plano, anteriormente aprovado, ocorreu em razão da pandemia da Covid-19. Recomenda-se, ainda, a consideração de ocorrência de força maior ou caso fortuito para a relativização da decretação de falência, prevista no art. 73, IV, da Lei nº 11.101/2005 (art. 4º).
Diante do exposto, pode-se afirmar que a pandemia da Covid-19 implica em repercussões negativas tanto para os credores, quanto para as empresas em recuperação judicial, sendo necessária a devida alocação desses prejuízos, uma vez que a decretação de falência da empresa não se mostra a melhor solução do problema. A atividade empresarial possibilita a circulação de bens, produtos e serviços essenciais à sociedade, gera tributos que repercutem na manutenção de serviços públicos e mantém a renda dos trabalhadores, razão pela qual a relativização da decretação de falência deve ser implementada em um cenário com ou sem a existência de uma legislação emergencial voltada para empresas em recuperação judicial.
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1 “Pandemia de coronavírus é maior desafio desde a 2ª Guerra Mundial, diz ONU”. Exame. Disponível em: clique aqui.
2 “Em tempo de guerra, que é, mutatis mutandis, aquele que vivemos em face da pandemia do coronavírus, assim deve realmente ser” (TJSP. AI nº 2061905-74.2020.8.26.0000. Relator: Des. Cesar Ciampolini. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Julgamento monocrático em 05.04.2020).
3 “OMC projeta queda comercial ‘feia’, provavelmente pior do que na crise financeira”. Reuters. Disponível em: clique aqui.
4 Sobre a matéria, v. SCHREIBER, Anderson. “Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional”. Migalhas. Disponível em: clique aqui.
5 FONSECA, Arnoldo Medeiros. Caso fortuito e teoria da imprevisão. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 129. Sobre a matéria, destaca Anderson Schreiber: “O caso fortuito ou força maior ‘verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir’ (art. 393, parágrafo único). Apesar das tentativas de apartar conceitualmente as noções, por meio de diferentes critérios, concluiu a melhor doutrina pela efetiva sinonímia entre o caso fortuito e a força maior. A referência à ‘culpa’ exclusiva da vítima, por sua vez, se revela imprópria, pois, a rigor, a excludente não importa verificação da culpa da vítima, mas sim da sua contribuição causal para o dano” (SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 639-640).
6 Sobre o tema, destaca Gustavo Tepedino: “Fato é que, se existe distinção, ela é inteiramente indiferente ao direito, já que as consequências coincidem. Tanto o caso fortuito quanto o de força maior desincumbem o devedor de responder pelas perdas e danos a que a sua inexecução deu causa” (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. (Coords.). Código Civil Interpretado: conforme a Constituição da República. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, v. 2, 2007, p. 709).
7 Nesse sentido: “Como se denota acima, a questão sub judice centra-se no cancelamento da reserva de passagens aéreas feita pelos autores perante as rés em virtude da pandemia de ‘Covid-19’ (‘Coronavírus’), situação que se caracteriza como caso fortuito (evento de forças da natureza que impactam a sociedade ou parte dela, impedindo que se pratiquem e cumpram obrigações). Na espécie, a pandemia mencionada se configura como fortuito externo, cuja ocorrência era imprevisível por parte das fornecedoras, ora rés, e também dos próprios autores, os quais ostentam a posição de consumidores” (TJSP. Processo n. 1009030-93.2020.8.26.0114. Juiz: Renato Siqueira de Preito. 1ª Vara Cível da Comarca de Campinas. Julgamento em 06.04.2020).
8 Acerca dos requisitos do caso fortuito e da força maior, afirma Caio Mário da Silva Pereira: “Desta noção, decorrem os seus requisitos: 1) Necessariedade, pois não é qualquer acontecimento, por mais grave e ponderável, que libera o devedor, porém aquele que leva obrigatoriamente ao ato danoso. 2) Inevitabilidade. Para que se exima o agente, é mister que o evento não possa ser impedido nos seus efeitos” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 395).
9 Nesse sentido: “Quem alega o evento inevitável deve prová-lo, bem como demonstrar que o fato material (fortuito) guarda relação de causa e efeito com a impossibilidade de prestar” (MARTINS-COSTA, Judith. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo código civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 5, t. 2, p. 220-221).
10 “Nesse cenário, 23,3% das companhias já ficariam com o caixa negativo nos primeiros 30 dias. Esse número sobe para 37,1% após dois meses e para 48,6% em 90 dias. A outra metade das empresas chegaria ao final de três meses ainda com o caixa positivo, podendo arcar com as despesas por um tempo maior” (“Metade das grandes empresas tem caixa para suportar até três meses sem receita”. Estadão. Disponível em: clique aqui).
11 “‘Sem resolver o problema da liquidez, empresas vão começar a quebrar’, diz presidente da GM”. Estadão. Disponível em: clique aqui.
12 Sobre o tema, v. FARIA, Mauro Teixeira de. “Impactos do novo coronavírus (covid-19): o que ocorrerá com as empresas que estão sob regime de recuperação judicial, em pleno cumprimento de seus planos?”. Migalhas. Disponível em: clique aqui.
13 “Reputo, no mais, inevitável a prorrogação do stay period pelo período de suspensão da AGC, valendo o registro, uma vez mais, de que a recuperanda não deu causa ao retardamento da marcha processual e de que se está diante de um evento externo e imprevisível” (TJSP. Processo n. 1026155-53.2019.8.26.0100. Juiz: Tiago Henriques Papaterra Limongi. 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais. Julgamento em 16.03.2020).
14 “Em suma, é evidente a ocorrência de força maior (pandemia COVID-19), que exige relativização episódica do plano de recuperação judicial, para viabilizar a superação da crise econômica-financeira decorrente da COVID-19, mantendo-se, a um só tempo, a fonte produtora, os emprego de trabalhadores e os interesse de credores. Suspendo, portanto, o pagamento dos créditos, todos eles (isonomia), e não apenas os inscritos nas classes III e IV, até o dia 10 de julho de 2020. Preserva-se a empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, reequilibrando-se à relação obrigacional constituída no plano de recuperação judicial, que mantenho hígido” (TJSP. Processo n. 1024091-12.2014.8.26.0564. Juiz: Gustavo Dall’Olio. 8ª Vara Cível. Julgamento em 06.04.2020).
15 “Desse modo, a realização da AGC em ambiente virtual é medida que se coaduna com o respeito às medidas de distanciamento social promulgadas pelos órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, sem prejuízo da busca pelo soerguimento da atividade por meio da continuidade da discussão e votação do PRJ apresentado pelas recuperandas” (TJSP. Processo n. 1057756-77.2019.8.26.0100. Juiz: Joao de Oliveira Rodrigues Filho. 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais. Julgamento em 23.03.2020).
16 “Recomendação trata de ações de falência durante pandemia”. CNJ. Disponível em: clique aqui.
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*Jeniffer Gomes da Silva é mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ. Pesquisadora do escritório Galdino & Coelho Advogados.