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Medidas estatais na crise do covid-19: repercussões sobre serviços públicos

Nem sempre serão possíveis melhores opções frente àquelas já pensadas pelo ente que pretende impor as medidas que repercutirão sobre os serviços públicos no cenário de urgência atual.

15/4/2020

Como se tem visto, após o advento da emergência de saúde pública relacionada ao coronavírus, foram editados diversos atos normativos por parte do Poder Público para permitir a adaptação do Estado às necessidades imediatas de enfrentamento à pandemia.

De forma preliminar, foram previstas na lei 13.979/20 quais medidas poderiam vir a ser adotadas pela União e pelos demais entes da federação nesse contexto, inserindo-se a de restrição à locomoção interestadual e intermunicipal (art. 3°, IV), que para ser implementada depende de ato posterior conjunto dos Ministros de Estado da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura, sendo possível, no entanto, a sua adoção pelas autoridades locais competentes (no âmbito da sua competência e apenas nele). 

Trata-se de uma das medidas mais polêmicas apresentadas pela lei porque a sua inclusão dentro de rol de possibilidades da lei 13.979/20 levou a que diversos estados, após a instalação do momento crítico no país, editassem normas impedindo a circulação de pessoas entre os seus municípios e nas fronteiras estaduais ou ainda suspendendo a circulação de transporte de cargas e de passageiros.

A questão tornou-se tema de debate nacional. O Supremo Tribunal Federal foi instado a decidir pelo afastamento das restrições de locomoção impostas, sob o argumento de que a competência para a imposição de tais restrições seria exclusivamente da União1. Um dos fundamentos sustentados, justamente o que nos remete à provocação deste artigo, é o de que a lei 13.979/20, ao prever quais medidas poderiam ser adotadas em decorrência da pandemia de coronavírus, conquanto tivesse permitido fosse restringida a locomoção interestadual e intermunicipal, deixou também expressamente consignado que (1) a sua implementação não poderia prejudicar o funcionamento dos serviços públicos e atividades essenciais, e que, (2) acaso os afetassem de alguma forma, dependeria de articulação prévia com o órgão regulador ou o poder concedente ou autorizador.

Uma vez que as restrições impostas não teriam sido objeto de referida articulação prévia, conforme exigido, embora tivessem direta ou indiretamente interferido na prestação de serviços públicos, seria necessária a suspensão da sua eficácia logo de forma cautelar, porque em desacordo à lei.

Em razão do impedimento à circulação, alguns serviços públicos não restaram apenas impactados ou prejudicados, mas impedidos, e isso, ao menos com relação àqueles que extravasam as fronteiras do Estado, como o de transporte de passageiros por ônibus e avião, sem que tenha havido qualquer manifestação prévia por parte dos órgãos reguladores ou do poder concedente – ambos, nessa hipótese específica, de status federal.

Esse fato, para além de suscitar o confronto já hoje instaurado no STF acerca da (in)competência para a imposição da referida medida restritiva com repercussões para os serviços públicos, permite ainda que se ponha luz sobre a intenção e o cuidado da lei no trato de questão que pode acarretar impacto sobre serviços cuja prestação é objeto de contratos públicos, em específico os contratos de concessão ou permissão.

Deixadas de lado as regras de competência para a adoção das medidas consideradas necessárias ao enfrentamento da pandemia e atentando-se para o que dispôs a lei 13.979/2020 em seu art. 3°, § 10, é de se perceber que a norma não estabeleceu que caberia aos órgãos reguladores ou ao poder concedente decidir pela imposição ou não das providências ali previstas. Também não foi estabelecido impedimento integral à interferência das medidas sobre os serviços públicos. Exigiu-se apenas que, para que essa interferência ocorra, deva haver antes a indispensável articulação com aquele que é senão o próprio contratante do serviço público, mas ao menos quem realiza a sua fiscalização, supervisão e regulação, e a quem cabe garantir que a prestação, além de mantida, seja feita de forma a harmonizar os objetivos dos usuários aos das empresas prestadoras, preservado o interesse público.

Essa exigência de articulação prévia, muito ao contrário de visar a imposição de obstáculos à implementação de medidas extremas no atual cenário, parece encontrar justificativa na necessidade de que as interferências sobre os serviços públicos decorrentes da adoção dessas medidas, assim como as suas eventuais consequências, possam ser adequadamente consideradas e planejadas, e não deixadas à própria sorte.

São, afinal, em momentos como o vivenciado hoje, de inquestionável sensibilidade, que surgem pressões por intervenções políticas de urgência, que arriscam impactar fortemente os prestadores de serviços públicos e a própria sociedade. Assim, como anota SÉRGIO GUERRA, faz-se necessário privilegiar a função de regulação, "que deve perseguir o equilíbrio sistêmico dos setores regulados, [se valendo de] uma visão prospectiva, de modo a se afastar das decisões de momento e sem sustentabilidade"2.

Essa função é inerente aos órgãos reguladores da administração, mais especificamente as agências reguladoras, a quem cumpre o controle técnico-especializado sobre a prestação dos serviços e a definição sobre a forma como esses serão prestados, qual seu alcance, o preço cobrado, os investimentos necessários para a sua manutenção e adequação, etc. São esses órgãos ou o poder concedente que conhecem os serviços em detalhes, sabendo como a sua falta ou a sua alteração podem afetar o interesse público e em que medida eventuais interferências podem acabar sendo prejudiciais à própria manutenção da atividade dos prestadores.

A prévia consulta ou articulação, tal como exigido pela lei 13.979/20, teria, por isso, não o objetivo de obter autorização ou espécie de parecer do regulador ou do poder concedente para a implementação de medidas que repercutam sobre os serviços públicos; mas de obter dele, ou permitir que se conceba junto a ele, a definição sobre a melhor forma dessas interferências ocorrerem. Acaso não seja mesmo possível qualquer mitigação de efeitos ou adaptação das interferências, se fará possível ao menos antever as suas consequências, permitindo-se ao ente competente, seja quem for, que decida de forma devidamente informada.

Em verdade, a deliberação prévia acerca da imposição de medidas que podem interferir na prestação dos serviços muitas vezes implicará em que essa imposição se dê na exata medida do necessário, sem que se abra espaços para exagero e desproporcionalidade.

Se terá em consideração que, nessas situações, é o órgão regulador quem detém melhor conhecimento acerca das condições de prestação do serviço público, embora continue na esfera de discricionariedade do Estado a definição pela solução a ser adotada.

Em linha com o que aqui se expõe, vale discorrer sobre exemplo concreto, também inserido no contexto da covid-19 e verificado no estado do Rio de Janeiro.

Em decreto publicado no diário oficial desse estado, em 19 de março de 20203, o Governo fez recomendação para que as concessionárias de serviço público prorrogassem em 60 dias o vencimento de suas faturas de cobrança e permitissem o posterior parcelamento pelos usuários. Cinco dias depois, foi publicada lei estadual (lei 8.769/20) que foi ainda mais além e, dispondo sobre medidas de proteção à população fluminense, (1) estabeleceu vedação à interrupção de serviços essenciais por falta de pagamento; (2) determinou que as concessionárias deverão permitir o parcelamento do débito pelo consumidor; e (3) impediu que sobre os débitos consolidados incidisse a cobrança de juros e multa.

Dentre os serviços essenciais considerados por aquela lei foi incluído, expressamente, o fornecimento de energia elétrica, cuja exploração é de competência da União, que é o seu Poder Concedente, cabendo à Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) regulá-lo, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.

Desconsiderada a própria inconstitucionalidade da lei estadual, que adentrou em campo reservado à União, o que se verificou logo em seguida no cenário nacional é que a agência reguladora, exercendo suas atribuições, editou norma4 com determinação, em essência, muito assemelhada àquela do Estado do Rio de Janeiro, mas com efeitos menos perversos para as concessionárias.

Embora a ANEEL também tenha considerado necessária a imposição de vedação à suspensão do fornecimento de energia por inadimplemento dos usuários durante o estado de emergência de saúde, ela não impediu que as concessionárias adotassem as demais medidas para cobrança dos débitos a partir do vencimento, incluindo, na forma da regulamentação da própria agência, a incidência de correção monetária, juros e multa.

Ou seja, embora tratando-se de medidas muito semelhantes e que, na prática, atendem aos mesmos objetivos imediatos de evitar a suspensão no fornecimento de energia em razão de eventual inadimplemento desencadeado pela crise atual, a solução apresentada pela agência reguladora levou em consideração outras variáveis relacionadas à prestação do serviço, dentre elas a necessidade de adequada remuneração do prestador para a sua manutenção, tendo, por isso, optado por manter o seu direito à devida compensação pelo atraso no recebimento dos créditos.

Também no Rio de Janeiro, mas em âmbito municipal, viu-se o poder concedente, em contrapeso à determinação para que os ônibus circulassem apenas com passageiros sentados para evitar aglomerações dentro dos coletivos, tentar encontrar, ainda que sem sucesso, alternativa à redução dos impactos para os concessionários. Após a ordem proveniente da Prefeitura, a Secretaria Municipal de Transportes, que é a responsável pela regulamentação e fiscalização do serviço, editou portaria5 permitindo que fossem reduzidas em até 40% as frotas regulares.

Nesse caso, contudo, em que pese a tentativa, o efeito liberatório para parte das frotas não representou qualquer alívio aos concessionários, já que impossibilitada a sua implementação diante da necessidade de se cumprir a determinação principal do Município, que, de um lado, reduz a capacidade de atendimento por cada ônibus (somente passageiros sentados), e, de outro, exige, como consequência, que a frota continue a todo vapor (só que agora menos eficiente).

Ainda assim, o exemplo converge para o que ora se sustenta. Quando a adoção das medidas excepcionais atualmente necessárias perpassa pelas análises dos órgãos reguladores ou do poder concedente dos serviços públicos sobre os quais recairão alterações, há (ou espera-se que haja), no mínimo, a tentativa de minimização dos efeitos negativos a serem desencadeados. Isso porque são esses que têm as melhores condições para dimensioná-los, sendo também quem, por fim, direta ou indiretamente, terá de lidar com a suas implicações sobre os contratos, sejam elas decorrentes de determinações próprias do contratante ou em razão de determinações vindas de ente diverso, uma vez que passíveis de configurar o denominado fato do príncipe6

Nem sempre serão possíveis melhores opções frente àquelas já pensadas pelo ente que pretende impor as medidas que repercutirão sobre os serviços públicos no cenário de urgência atual -- o que o próprio exemplo do Município do Rio de Janeiro demonstra --, mas o fato de se privilegiar a busca de solução menos impactante, com apoio na especialidade e tecnicidade dos órgãos reguladores, em específico as agências reguladoras, pode ser o caminho justamente para tornar o contexto atual menos conturbado por mudanças impostas de supetão, que poderão acarretar prejuízos que, no fim das contas, mostrar-se-iam evitáveis.

__________

1 Destaque vai para a ADPF 665, proposta pela Confederação Nacional dos Transportes (CNT).

2 Vale destaque para as palavras do administrativista: "[...]Essas pressões, legítimas em sua grande maioria, acabam por merecer intervenções políticas de urgência em ambientes altamente sensíveis e que podem ser, em curto espaço de tempo e a depender da intensidade de intervenção estatal indevida, fortemente impactados, prejudicando não apenas os operadores mas, sobretudo, a própria sociedade [...] [...]Para alcançar seus objetivos, a função de regulação deve perseguir o equilíbrio sistêmico dos setores regulados, e, para tanto, deve se valer de uma visão prospectiva, de modo a se afastar das decisões de momento e sem sustentabilidade. A base de suas escolhas deve ser a preponderância técnica (não política), de modo a reduzir-se a pura discricionariedade", in GUERRA, Sérgio. Tecnicidade e regulação estatal no setor de infraestrutura. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 198, p. 61-71, ago. 2017.

3 O decreto 46.979/20 foi voltado especificamente para a  CEDAE (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, a quem o Estado, como controlador, autorizava a prorrogação do vencimento e o parcelamento, tendo havido apenas a recomendação para que as demais concessionárias adotassem medidas semelhantes: "Art. 3°. Recomendo que as concessionárias de serviços públicos, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, adotem medidas semelhantes em atenção ao princípio da solidariedade".

4 Resolução normativa 878/20: [...] Art. 2º Fica vedada a suspensão de fornecimento por inadimplemento de unidades consumidoras: [...] § 4º A vedação à suspensão do fornecimento não impede demais medidas admitidas pela legislação para a cobranças dos débitos, a partir do vencimento.

5 Pela PORTARIA TR/SUBT 02 DE 16 DE MARÇO DE 2020, a Secretaria Municipal de Transportes. "CONSIDERANDO a redução da demanda de passageiros, tendo em vista a suspensão das atividades escolares do município, do estado, da união e da iniciativa privada; CONSIDERANDO a redução da demanda de passageiros, tendo em vista as alterações dos horários de pico, e as orientações oficiais para a população no sentido de evitar deslocamentos desnecessários, das três esferas da administração pública", permitiu que a operação das linhas regulares do Serviço de Transportes Público por Ônibus - SPPO/RJ, se desse com a redução em até 40 % (quarenta por cento), das suas frotas determinadas.

6 Cf. lei 8.666/93, art. 65, II, d. Essa possibilidade foi vista como consenso pelos participantes do segundo encontro do grupo de estudos O Direito em Tempos de COVID-19, do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, realizado em 30.03.2020 – Flávio Jardim, Giuseppe Giamundo Neto, Cristiano Castilhos e Renato Cirne.

__________

*Raphael Marcelino é sócio no Mudrovitsch Advogados, professor no IDP, doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre e graduado em Direito pela Universidade de Brasília.

*Rafaela Rocha é advogada no Mudrovitsch Advogados, especialista em infraestrutura e regulação. Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília ("Uniceub").

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