“Quando cada homem procura intensamente o que é útil para ele mesmo,
é quando os homens são mais úteis uns para os outros.” Baruch Spinoza. Ética. Ed. Autêntica, 2010.
Vivia-se o tempo (2015) de uma enorme pressão para a transparência nas campanhas eleitorais com uma forte crítica ao financiamento privado baseada nas recentes experiências de casos de corrupção e o uso indevido dos valores, quando pessoas jurídicas podiam “doar” valores aos partidos políticos e candidatos.
No entanto o STF acabou com a referida modalidade, no julgamento da ADIn 4650,¹ e os partidos políticos, então, começaram a buscar alternativas para suprir a perda de investimento.
Para tanto editaram as leis 13.487/17 e 13.488/17 com a criação do denominado Fundo Especial de Financiamento de Campanha, conhecido como Fundo Eleitoral, ou ainda, Fundão, um Financiamento Público das Campanhas.
A título de curiosidade, o Fundo Eleitoral não pode ser confundido com o Fundo Partidário.
Este vem a ser um repasse aos partidos políticos para suas despesas correntes, enquanto que aquele, o FEFC, surge apenas em ano eleitoral, mediante recursos do orçamento anual do exercício (ano) que serão destinados e aplicados nas campanhas eleitorais de acordo com critérios pré-estabelecidos de distribuição.
No tocante a melhor forma de financiamento tenho que ambas são sustentáveis por quem as defende (vide os votos da ADI 4650) cada qual com a sua razão e opinião, todas bem fundamentadas.
No entanto, ambas acabam se tornando falhas em decorrência do nosso sistema de distribuição da verba e da sua efetiva utilização considerando o nosso atual sistema político de votação e escolha do candidato, agregado a falta de efetiva fiscalização desses recursos.
Nesse último ponto, o TSE deveria poderia melhor se servir de um número maior de agentes capacitados, com apoio da Receita Federal em sistema próprio e especial de verificação das contas.
Enquanto mantivermos o sistema atual de votação sem uma fiscalização rígida e com resposta rápida quando da identificação de ilegalidades/fraudes nenhum modelo de financiamento será adequado.
Destaco a posição, sempre de alto grau de reflexão, do exmo. ministro do STF, Dr. Luís Roberto Barroso quando defende a adoção do denominado voto distrital misto (o vídeo é uma aula que precisa ser assistido) ².
Na atual legislatura, como exemplo, dos 517 Deputados eleitos apenas 27 se elegeram com os próprios votos. Será que efetivamente podem se dizer representes do povo? ³
Não obstante, cumpre mencionar que o financiamento de campanha se tornou legal (com previsão em lei), cuja constitucionalidade encontra-se em análise no STF (por isso minha defesa ao controle prévio de algumas leis pelo Poder Judiciário e de algumas mudanças na competência do STF). 4
Fato é que, agora em que o mundo todo apresenta um enfrentamento jamais visto na história decorrente de uma pandemia causada pelo vírus Covid19 manter um contingenciamento de uma verba aproximada de 2 bilhões de reais acaba gerando um sentimento de imoralidade e clara ofensa direta a ao patrimônio (economia) público.
Ainda que se entenda que são apenas números, como costumam dizer alguns, em se tratando de lei orçamentária passarão, tão logo, a números reais e terão que estar disponíveis pouco antes do início da campanha eleitoral.
DO FUNDO ELEITORAL 2020. LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL. PARTIDOS POLÍTICOS / NOBREZA DO GESTO / POVO.
Desde o início do ano o Governo trava uma batalha, ao menos na mídia, sobre a aprovação e a destinação do Fundo Eleitoral.
Primeiro o “Veta Presidente”, tendo o Governo optado por sancionar a lei orçamentária anual de 2020 com a previsão de 2 bilhões de reais para o Fundo.
Alegou-se, na ocasião, segundo informações do Governo, que caso não sancionasse, e, portanto, vetasse o projeto de lei com a referida destinação, poderia incorrer em pedido de impedimento (impeachment), por crime de responsabilidade.
Ultrapassado este ponto e com a lei aprovada, surgiu a pandemia e com ela a necessidade urgente de se buscar recursos. Várias hipóteses foram levantadas para conseguir o equilíbrio fiscal diante dos gastos que começavam e estariam por vir.
Ocorre que, com a crise se agravando o Governo foi obtendo apoio para a realização de algumas despesas antes sequer imaginados ou previstos, com a possibilidade de novas destinações, em especial para a área de saúde, sendo a última a aprovação do chamado “Orçamento de Guerra”.
Fato é que, com relação ao Fundo Eleitoral a discussão sempre ficou no mundo das bravatas por parte de alguns parlamentares, embora outros inúmeros apoiem de fato a medida (transferência do Fundo Eleitoral para o Combate a Covid19).
“Todas as pessoas ambiciosas que surgiram até agora no teatro da Revolução tiveram isso em comum: defenderam os direitos do povo somente enquanto parecia necessário. Mencionou Robespierre, o Incorruptível, em uma das Convenções durante a Revolução Francesa. 5
O referido ato parlamentar (transferência do Fundo) passou a servir ao jogo político de interesses, enquanto as necessidades e anseios da população foram deixados em segundo plano.
O Governo chegou a anunciar que seria a favor da medida, caso as eleições fossem prorrogadas.
Alguns parlamentares, por outro lado, achando que o momento é o ideal para a ocorrência das eleições, uma vez que o Governo estaria atravessando um mal momento (baixa popularidade), acabam relutando pela aprovação da medida.
Isso tudo passou a ser visto e acompanhado na mídia por toda a população incrédula na sua ocorrência, especialmente pelo momento delicado.
Não por outro motivo, por ato voluntário e sem qualquer vinculação política, adequei uma tese anteriormente desenvolvida (sobre a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário no orçamento em momentos excepcionais, sobretudo dada a natureza jurídica das leis orçamentárias - norma de efeitos concretos) e ingressei em Juízo, através de uma Ação Popular visando a transferência do fundo eleitoral para o combate a Covid19.
Duas razões: Uma, e por óbvio, ter efetivada a transferência de recursos pela iminente necessidade. Duas, por considerar imoral e lesivo ao patrimônio (economia) “o jogo político” com algo tão grave e de extrema necessidade.
Não à toa a liminar foi concedida em uma decisão que deveria entrar para a história como exemplo de coragem, justiça e comprometimento com a realidade, em clara demonstração que o Magistrado vive, sim, na nossa sociedade.
“Diante de tal panorama, não se pode considerar aceitável que, em se tratando de um país de dimensões continentais, com mais de duzentos milhões de habitantes, já tão castigado, em situação de normalidade, pela ineficiência crônica do sistema de saúde que, em alguns locais mais remotos, sequer pode se considerar como efetivamente existente, porquanto ineficaz, haja recursos de tal monta paralisados, apenas para futura e incerta utilização para patrocínio de campanhas eleitorais.
Isto posto, DEFIRO em parte a liminar, para determinar ao Exmº Sr. Presidente da República, bem como ao Exmº Senhor Presidente do Congresso Nacional que, no prazo de 96 (noventa e seis) horas, portanto até 31 de março f. p., deliberem de forma definitiva, acerca da alocação dos recursos destinados ao Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC para as medidas de combate ao coronavirus, sob pena de, caso expirado o prazo, o Juízo determine diretamente a medida.”
Porém, como praxe da atividade profissional deve-se pedir de forma clara e adequada, cabendo ao Magistrado decidir.
A liminar foi derrubada (suspensa) a pedido da União Federal (Governo) e do Congresso Nacional (parlamentares), poucas horas antes do término do prazo.
Alguns falaram em interferência indevida do Judiciário no Legislativo, Ativismo Judicial (sic) e até em quebra da ordem institucional, dentre outros argumentos, em uma análise simples e superficial.
Pode-se afirmar que não, e que este mesmo “Ativismo” também já serviu e ainda serve para a conquista e concretização de direitos. Depende, no entanto, e infelizmente, muito da ocasião e do assunto.
No Brasil o protagonismo faz parte e deve ser da política. Imagine se a verba fosse transferida por ordem de um Magistrado levando alguns parlamentares ao papel de meros coadjuvantes e cumpridores do mandamento judicial?
No tocante a Ação Popular devemos considerar a liminar deferida como uma grande vitória, por inúmeros motivos que muitos saberão posteriormente, mas que acabou reveladora das pretensões do povo.
Assim, o que se poderia esperar de um Congresso Nacional efetivamente comprometido com o povo e seus eleitores seria um ato voluntário e de respeito em observar o momento delicado e “dizer”, através de um único ato/gesto, que, por conta da crise, e em nome dos óbitos e da fome que já toca o povo estariam todos “abrindo mão” do Fundo Eleitoral em prol da luta travada com o vírus.
Seria, sem dúvida um gesto digno dos Grandes Parlamentos, o qual nos traria orgulho e gratidão.
Não obstante deva ser ressaltado que temos, ainda, um Congresso Nacional com muito parlamentar bem intencionado (maioria) e a serviço pleno do povo (sem prejuízo da forma de ingresso), assim como pode-se dizer o mesmo ao Poder Judiciário no comprometimento, também de sua enorme maioria, com a efetivação da Justiça.
Permitir a manutenção do Fundo Eleitoral, nesse momento, causa revolta e tristeza (muito mais essa pela ausência de gesto).
Não somente os valores, que por óbvio revelam o desejo e a necessidade da população, mas também, e talvez “no mesmo patamar”, por poder ser um gesto de nobreza aguardado por todos.
- DA NECESSÁRIA AVALIAÇÃO DE ADIAMENTO DAS ELEIÇÕES 2020:
Além da manutenção do Fundo Eleitoral com a finalidade de gasto posterior em campanha política chama a atenção o momento atual se aproximar das eleições.
Ao permitir a eleição esse ano podemos estar desvirtuando sua natureza, como a liberdade PLENA de voto e escolha.
Os pretensos candidatos e os já pré-candidatos, como se sabe, desde o início do ano já se preparam para as campanhas eleitorais.
Muitos buscam a reeleição e com isso utilizam, sem qualquer juízo de valor a respeito, de seus cargos e possibilidades para ajudá-los a obter o resultado positivo na eleição.
Em assim sendo corre-se o risco dos interesses e possíveis desvios de finalidade no trato da verba pública, ocasionado pela liberdade que muitos passaram a ter com os orçamentos flexibilizados.
E isso também em uma “via de mão dupla”, pois aquele que se encontra no Poder poderá a vir sofrer um desgaste maior em decorrência da atual conjuntura.
Alguns, como os das grandes cidades, acabam sofrendo pelo problema da pandemia e a ausência de solução imediata, o que, sem dúvida, interferirá na escolha.
Não que em um momento de crise deva também servir para análise de boa gestão (lembre-se de Churchill!), mas fato é que ainda temos uma população carente de boas informações e livre de escolha independente.
Ademais, nada mais justo a todos se aguardar ultrapassar o momento para permitir uma rígida fiscalização nas contas do período, o que também traria motivo de adiamento, sem qualquer prejuízo á democracia ou alternância de Poder, em decorrência do momento excepcional.
Assim, com a mais devida venia, espera-se que o Congresso Nacional se reúna, ou a Justiça assim determine em uma decisão final e irrevogável, pois em ambos os casos quem sairá beneficiado será o sofrido povo brasileiro.
Esse ano de 2020, sem a menor dúvida, não é ano de eleição, e por consequência de Fundo Eleitoral, mas um ano que nos exige MUITA SABEDORIA E NOBREZA.
Espero, pois, que este pequeno arrazoado possa servir de reflexão ao eleitor e aos que podem garantir a nobreza do Parlamento.
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5 “Pureza Fatal - Robespierre e a Revolução Francesa”, Ruth Scurr, Editora Record, 2009, pág 286.
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*Sérgio Antunes Lima Junior é advogado e mestre emDireito