O enfrentamento da crise de saúde mundial causada pelo coronavírus e o decorrente isolamento social e fechamento temporário de empresas, para desacelerar o contágio, têm provocado uma edição de normas em ritmo frenético.
Em menos de um mês temos, por exemplo, a Lei 13.979, de 6/2/20 (isolamento, quarentena e outras medidas emergenciais), Lei 13.982, de 2/4/20 (auxílio emergencial de R$ 600,00 a trabalhadores informais e autônomos e outras medidas), MP 927, de 22/3/20 (flexibilização dos requisitos e prazos para teletrabalho e banco de horas, antecipação de férias e feriados, etc), MP 936, de 1º/4/20 (suspensão do contrato e redução de jornada e salário, com benefício mergencial pago pela União), a MP 945, de 4/4/20 (medidas emergenciais para o setor portuário), e a MP 946, de 7/4/20 (transferindo os recursos do PIS-PASEP para o FGTS e permitindo a partir de 15/6 o saque de até R$ 1.045,00 da conta vinculada, pelos trabalhadores).
Como uma das principais alternativas para o empregador em apuros em decorrência da perda de faturamento, o governo edita a MP 944, de 3/4/20, cria uma linha de crédito emergencial para cobrir dois meses de folha de pagamento, condicionando tal financiamento à assunção, pelo empregador, de não dispensar imotivadamente durante 60 dias após a liberação da última parcela do crédito (totalizando por volta de 4 meses, assim). A medida provisória prevê 36 meses para pagar, após uma carência de 6 meses, e praticamente sem juros, já que 3,75% a.a. mal cobrem a expectativa inflacionária!
Enfim, trata-se de um alívio importante, para que sejam mantidos empresas e empregos nestes tempos emergenciais, junto com as medidas adotadas recentemente.
Vejamos, com mais detalhe.
ESCOPO E REQUISITOS E GARANTIA DE EMPREGO MITIGADA
A MP 944 cria o chamado “PROGRAMA EMERGENCIAL DE SUPORTE A EMPREGOS”, viabilizando operações de crédito com empresas e cooperativas (salvo as de crédito) para financiar o pagamento de folha salarial (art. 1º), desde que (art. 2º):
· tal pessoa jurídica tenha tido em 2019 receita bruta anual superior a R$ 360 mil e igual ou inferior a R$ 10 milhões (§1º);
· que processe sua folha de pagamento em uma instituição financeira participante do programa (§2º), do qual podem participar todas as instituições financeiras sujeitas à supervisão do Banco Central do Brasil (§3º).
· assumir contratualmente a obrigação de fornecer informações verídicas; (§4º, I), não utilizar os recursos para finalidades distintas do pagamento de seus empregados (§4º, II) e não dispensar empregados sem justa causa até o 60º dia após o recebimento da última parcela do crédito (§4º, III), tudo sob pena de haver o vencimento antecipado da dívida (§5º).
GARANTIA DE EMPREGO MITIGADA OU ESTABILIDADE?
Uma importantíssima que questão decorrente do art. 2º, (§4º, III), é:
Uma vez que o empregador assume contratualmente a obrigação de “não rescindir, sem justa causa, o contrato de trabalho de seus empregados no período compreendido entre a data da contratação da linha de crédito e o sexagésimo dia após o recebimento da última parcela da linha de crédito” (2º, §4º, III, da MP 944), o empregado teria direito à reintegração caso demitido em tal período?
Temos que não. O §5, art. 2º da MP deixa expressa a consequências do inadimplemento de tal obrigação, qual seja, o “vencimento antecipado da dívida”. Ademais, tal é reforçado pela leitura sistemática com o art. 10 da MP, onde também são estipuladas as consequências para a dispensa imotivada – lá, uma indenização escalonada por percentuais dos salários a que o empregado teria direito no período de garantia provisórias, aumentando conforme o percentual de redução de jornada e salário.
Assim, nenhuma das medidas (936 e 944) prevê uma garantia que dê ensejo à reintegração ao emprego – até porque isso talvez fosse difícil de operacionalizar, em um momento de convulsão. Ambas preveem, isto sim um desestímulo pecuniário.
No primeiro caso (MP 936), o trabalhador demitido no período de garantia, após ter sofrido suspensão, terá uma indenização análoga ao que receberia se convertida o período estabilitário em pecúnia, ou proporcionalizada, caso fosse uma redução salarial.
Aqui (MP 944), com o financiamento emergencial da folha de pagamento, o trabalhador estava recebendo sua folha salarial sem reduções, quando dispensado, razão pela qual a MP prevê, para o descumprimento da obrigação de não dispensar, o vencimento antecipado do financiamento. Tal sanção, cancelando um parcelamento extremamente favorável (porque a juros quase nulos) e fazendo-o vencer antecipadamente, tende a produzir inegável efeito dissuasório, afigurando-se como razoável para atingir o objetivo da norma, que é equilibrar a preservação das empresas com a manutenção dos empregos.
Assim, tem-se que não se trata de uma estabilidade típica, sujeita à reintegração no emprego, mas sim de uma medida dissuasória de dispensas imotivadas, ou garantia de emprego mitigada.
MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE MAIOR PORTE FICARAM DE FORA
Chama atenção o escopo acima, limitado às empresas com faturamento anual acima de R$ 360 mil (deixando fora, portanto, as microempresas, que se situam exatamente abaixo de tal patamar) até o faturamento anual de R$ 10 milhões (art. 2º, §1º), abrangendo apenas as empresas de pequeno porte e uma parte das empresas de médio porte (cujo faturamento seria de R$ 4,8 a R$ 300 milhões de faturamento anual, para o BNDES, ver https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/financiamento/guia/porte-de-empresa).
Aparentemente, prevaleceu a visão do presidente do BNDES, para quem a extensão de tal linha de crédito também às microempresas importaria em risco elevado de inadimplência, dada a incapacidade financeira das pessoas nestas condições, risco que também não seria aceito pelos bancos privados, chamados a operacionalizar a linha de crédito e a participar com 15% de recursos próprios (ver https://veja.abril.com.br/economia/subsidio-de-salarios-causa-atrito-entre-guedes-e-presidente-do-bndes/).
Outros ausentes são as grandes empresas e a faixa superior das empresas de médio porte. Dada a limitação de recursos da linha de crédito (R$ 40 milhões, sendo R$ 34 milhões oriundos da União), que não foi priorizada tal gama de empresas, presumivelmente mais aptas a suportar a crise sem o aporte de tal linha emergencial de crédito.
De qualquer forma, veja-se que as empresas excluídas de tal medida não ficam sem alternativas para enfrentar a emergência, sendo possível a suspensão de contratos ou redução de salário e jornada (MP 936), além da adoção do teletrabalho, banco de horas, antecipação de férias e feriados, etc (MP 927).
LIMITES E EXCLUSIVIDADE DE DESTINAÇÃO
O financiamento será da totalidade do valor da totalidade do valor da folha de pagamento por 2 meses, limitado a 2 vezes o salário-mínimo por empregado (art. 2º, §1º, I). O valor será destinado exclusivamente à folha.(art. 2º, §1º, II), ficando a instituição financeira participante incumbida de assegurar que os recursos sejam utilizados exclusivamente para tal finalidade (art. 3º).
PRAZO PARA CONTRATAÇÃO E CONDIÇÕES DO FINANCIAMENTO
As instituições financeiras participantes, que formalizarão os contratos e informarão ao agente financeiro da União, o BNDES, poderão formalizar tais contratações de credito até 30/06/2020. O prazo de pagamento será de 36 meses, iniciado após uma carência de 6 meses, com taxa de “juros” de 3,75% ao ano desde a contratação (art. 5º, caput).
PRATICAMENTE SEM JUROS
Uma observação relevante é que se trata de um financiamento subsidiado, extremamente favorável, que podemos considerar, na prática, com taxa zero quanto a juros remuneratórios, já que não há previsão da incidência de qualquer índice de atualização do saldo devedor, apenas “juros”. Logo, considerando que o percentual de 3,75% ao ano talvez não cubra nem mesmo a expectativa de inflação para os próximos anos, durante os quais se estenderão as amortizações, tem-se que o governo, aqui, optou aqui por injetar recursos na economia com um ônus muito baixo para o empresário, quase abaixo do próprio ritmo de desvalorização da moeda - algo adequado para a dramática situação vivida.
RIGOR NA ANÁLISE DE RISCO – FLEXIBILIZAÇÃO DAS CERTIDÕES NEGATIVAS
Além de disponibilizar recursos quase sem custo, a MP 944 facilita um pouco o processamento dos financiamentos, dispensando algumas certidões negativas de débitos habitualmente exigíveis para a percepção de recursos públicos (art. 6º, §1º).
Quanto a dívidas do INSS, parece um pouco contraditório dispensar as correspondentes negativas (art. 6º, §1º, IV e V, da MP 944), para logo adiante relembrar (no §3º) que isto não dispensa a observância do § 3º do art. 195 da Constituição, ou seja, que “a pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, ...não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”.
Logo, dado o obstáculo constitucional à percepção de benefícios creditício públicos, as instituições financeiras que operacionalizam o crédito podem até concedê-lo à míngua da certidão negativa válida (ou positiva com efeitos de negativa), mas a empresa deverá demonstrar que inexistem débitos previdenciários, e que a certidão anterior expirou ou se encontra positiva em razão de algum entrave burocrático, mas não inadimplemento.
Finalmente, registre-se que a flexibilização da exigência de certidões não significa o afrouxamento da análise de risco de inadimplência. Antes pelo contrário, o art. 6º da MP 944 impõe às instituições financeiras participantes o uso das mesmas políticas crédito usualmente seguidas, inclusive quanto à consideração de:
- restrições em sistemas de proteção ao crédito (na data da contratação);
- histórico de registros de inadimplência constantes do sistema de informações de crédito mantido pelo Banco Central (nos 6 meses anteriores à contratação).
PREDOMINÂNCIA DE VERBAS PÚBLICAS - RISCO PROPORCIONAL PELO INADIMPLEMENTO – COBRANÇA PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA
Tendo em vista o gigantismo da operação, é natural que a União não poderia concentrar apenas em si ou nas instituições financeiras federais as centenas de milhares de contratações, que ocorrerão quase simultaneamente. Delegou às respectivas instituições financeiras responsáveis pelo processamento da folha de pagamento de cada empresa a contratação dos financiamentos, e ao BNDES o repasse das verbas da União a tais instituições, impondo a estas a contribuição de 15 % de recursos próprios. Uma sábia estratégia para encorajar as mesmas a agir com diligência e cautela na análise de risco de cada operação, e em eventual cobrança de débitos inadimplidos.
Do valor de cada financiamento, 15% serão custeados com recursos próprios das instituições financeiras participantes e 85% com recursos da União, incumbindo o respectivo risco do inadimplemento na mesma proporção (art. 4º).
Em caso de inadimplemento, serão as instituições financeiras contratantes que farão a cobrança da dívida - em nome próprio - em conformidade com as suas políticas de crédito habituais, recolhendo a parcela atinente à União (85% dos créditos recuperados) ao BNDES, o qual fará a restituição à União (art. 7º, caput e §5º).
As instituições financeiras contratantes arcarão com as despesas de cobrança (art. 7º, §2º) e não poderão utilizar procedimentos menos rigorosos do que os de suas próprias operações de crédito, não podendo interromper ou negligenciar o acompanhamento (§§ 1º e 3º).
A fim de, presumivelmente, ganhar em economia de escala e não eternizar tais cobranças, é concedido um prazo relativamente curto para que tais instituições financeiras às promovam - de 42 meses após a contratação - após o qual estas deverão leiloar os créditos eventualmente ainda não recuperados, recolhendo o saldo final à União por intermédio do BNDES (art. 7º, §6º). Não fica claro se estariam obrigados a leiloar o crédito como um todo, incluindo os 15% correspondentes a seus recursos próprios, ou se apenas a parte da União. De qualquer forma, o § 7º é explicito no sentido de que apenas a parcela do crédito lastreado em recursos públicos será considerada extinta, caso não se logre sua alienação em tais leilões.
As instituições financeiras contratantes não serão responsabilizadas nem remuneradas pelo risco quanto à parcela lastreada pela União, a qual assume integralmente tal risco (art. 10). Por outro lado, o BNDES não se responsabiliza pela solvabilidade e atuação de tais instituições financeiras, especialmente quanto ao cumprimento da finalidade e requisitos das operações, ou diligência na recuperação dos créditos lastreados em recursos públicos (art. 11). Finalmente, nas hipóteses de falência, liquidação extrajudicial ou intervenção nas instituições financeiras contratantes, a União ficará sub-rogada, na proporção de seus repasses, nos créditos e garantias constituídos em favor de tais instituições, devendo o BNDES informar à União os respectivos dados, para encaminhamento ao liquidante, interventor ou juízo responsável ou, ainda, para a cobrança judicial (art. 12).
TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS FEDERAIS VIA BNDES
Para viabilizar o programa, a União transfere ao BNDES R$ 34 bilhões, recurso que continuará como sendo de titularidade da União e serão remunerados, pro rata die: pela SELIC, enquanto mantidos nas disponibilidades do BNDES; pela taxa de juros de 3,75% ao ano, enquanto aplicados nas operações de crédito do programa (art. 8º).
O BNDES será o agente financeiro da União, a título gratuito, devendo operacionalizar os repasses dos recursos da União às instituições financeiras que protocolarem no BNDES operações de crédito contratadas pelo programa, bem como receber os reembolsos de tais recursos oriundos de tais instituições financeiras, repassa-los à União em 30 dias, e prestar as informações solicitadas pela Secretaria do Tesouro Nacional, Secretaria Especial de Fazenda e Banco Central. Eventuais recursos aportados no BNDES pela União e não utilizados até o prazo de contração (repassados às instituições financeiras participantes para o Programa Emergencial de Suporte a Empregos até o término do prazo para formalização dos contratos (30/06/2020) serão também devolvidos à União em 30 dias (art. 9º). Os recursos retornados serão integralmente utilizados para pagamento da dívida pública federal (art. 13).
REGULAÇÃO E SUPERVISÃO
Cabe ao Banco Central fiscalizar o cumprimento das condições para tais operações de crédito (art. 14), podendo o Conselho Monetário Nacional e o Banco Central, em suas respectivas competências, poderão disciplinar os aspectos necessários para operacionalizar e fiscalizar as instituições financeiras participantes (art. 15), observadas a regras do respectivo processo administrativo sancionatório (Lei 13.506/17).
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*Cesar Zucatti Pritsch é juris doctor (JD) pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), juiz do Trabalho pelo TRT da 4ª Região. Conselheiro da Escola Judicial e Membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região.