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A calamidade pública em decorrência da covid-19 e a vedação à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública em ano eleitoral

Quando a crise sanitária decorrente da covid-19 se manifesta justamente em ano eleitoral: além dos freios fiscais impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal para o aumento de gastos, o gestor depara-se com as vedações estampadas na lei 9.504/97 – destacando-se, dentre outras, a proibição de distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública.

9/4/2020

A ocorrência de uma pandemia, por si só, já traz inúmeros desafios de cunho orçamentário e financeiro ao administrador, que se vê compelido a realizar gastos extraordinários e imprevistos para conter a propagação do vírus, enquanto, paralelamente, a paralisação das atividades econômicas implica vertiginosa queda das receitas arrecadadas. A conta não fecha.

A situação se agrava, ainda, quando a crise sanitária decorrente da covid-19 se manifesta justamente em ano eleitoral: além dos freios fiscais impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal para o aumento de gastos, o gestor depara-se com as vedações estampadas no art. 73 da lei 9.504/97 – destacando-se, dentre outras, a proibição de distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública.

Quanto às amarras fiscais para ações que acarretam aumento de despesas, cumpre trazer à baila o deferimento de medida cautelar na ADI 6.357/DF em histórica decisão que, dando interpretação conforme à Constituição aos artigos 13, 16, 17 e 24 da LRF, afastou a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento da situação de calamidade pública1.

Já no que concerne às condutas vedadas em ano eleitoral, faz-se necessária a análise do art. 73, §10, da lei 9.504/97, assim redigido:

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

Como se depreende do texto legal, um dos casos em que a vedação à distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pela Administração Pública é excetuada consiste na hipótese de calamidade pública, o que se amolda, com perfeição, à conjuntura vivenciada atualmente, com a decretação de calamidade pública pelo Congresso Nacional (decreto legislativo 6/20), replicada posteriormente por diversos estados e municípios (em Pernambuco, através do decreto 48.833).

Trata-se, a todas as luzes, de importante fôlego aos agentes políticos, que encontram amparo legal para instituir benefícios assistenciais nesse período de crise econômica e social, com vistas a auxiliar as pessoas em situação de vulnerabilidade, assomando-se o dever de proteção da coletividade e preservação da dignidade da pessoa humana.

Não se pode perder de vista, no entanto, que a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios deve adotar critérios objetivos que visem a garantir a impessoalidade, sob pena de o permissivo legal degenerar-se em favorecimento de candidato, partido ou coligação, incidindo-se na vedação encartada no art. 73, IV, da lei 9.504/972. Caso isso ocorra, o agente político incidirá em abuso de poder, estando sujeito às sanções de cassação de registro, de diploma e multa, bem como à inelegibilidade, nos termos do art. 1º, I, “j”, da LC 64/903.

Dessa forma, para que não haja desvio de finalidade, a distribuição deve ocorrer desvinculada de qualquer uso político-promocional, atentando-se à previsão de critérios objetivos para a identificação dos beneficiários (quantidade de pessoas a serem beneficiadas, renda familiar de referência para a obtenção do benefício, condições pessoais ou familiares para a concessão, entre outros). Ademais, impõe-se a observância ao princípio da proporcionalidade, de modo que o valor do benefício não deve exceder ao estritamente necessário para o atendimento das necessidades básicas dos destinatários.

Advirta-se que as exceções contempladas no art. 73, §10 são alternativas, ou seja, caso esteja configurada a situação de calamidade pública, é despiciendo que exista programa social autorizado em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. É certo, contudo, que a exigência de autorização legislativa para a implementação de programas sociais não pode ser relevada, por força do princípio da legalidade.

Portanto, a conjuntura emergencial ora vivenciada exige uma atuação mais contundente do Estado através de medidas assistenciais, com vistas a garantir a dignidade dos que se encontram privados de meios para a subsistência. Paralelamente, por tratar-se de ano eleitoral, a cautela na implementação de programas sociais deve ser redobrada, a fim de evitar futuros problemas com a candidatura.

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1 Medida Cautelar na ADI 6.357/DF. Relator: Min. Alexandre de Moraes. DJe: 31.03.20.

2 Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público

3 Art. 1º São inelegíveis: I – para qualquer cargo: j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição; 

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*Bárbara S. A. Santana é advogada do escritório Luis Gallindo Advocacia.

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