Diante do avanço da pandemia mundial do novo coronavírus, governadores e prefeitos de diversas unidades federativas do Brasil ameaçam de prisão banhistas que frequentam as praias, pedestres que perambulam pelas ruas, praças e avenidas, circunstantes que se reúnem em espaço público ou privado sob a forma de aglomerações e até mesmo comerciantes que ousam abrir as portas de seus estabelecimentos, em afronta às diretrizes sanitárias que impõe restrições de comércio e de circulação de pessoas.
Contudo, à luz do ordenamento jurídico-penal e constitucional pátrio, questiona-se quanto a possibilidade da expedição de decreto prisional em face de pessoas que venham a se insurgir diante das normas administrativas de feição sanitária.
Inicialmente, convém compulsar o arcabouço penal para verificar, aprioristicamente, sobre a existência de norma apta a fazer com que possa ocorrer possível subsunção da conduta daquele que ousa desrespeitar as normas de saúde pública impostas por força da difusão da doença contagiosa intitulada Covid 19.
Nesse sentido, o Código Penal Brasileiro, em seu art. 268 assim dispõe: “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. A pena é detenção, de um mês a um ano, e multa”; em seu reforço, o art. 330, do mesmo diploma legal, assim preceitua: “desobedecer a ordem legal de funcionário público. A pena é detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Inicialmente, temos a ponderar que o crime que pode abstratamente abranger a conduta típica da pessoa que venha a se insurgir, dolosa e frontalmente, perante as normas de índole sanitária, mesmo o previsto no âmbito da redação constante do art. 268 do Código Penal, exige, para efeito de eficácia dessa mesma norma, de um complemento, assim identificado com outra lei, decreto, portaria ou resolução que possa lhe conferir efetiva aplicabilidade, posto se tratar de “norma penal em branco”.
Essa norma de caráter complementar já existe, uma vez que foi editada pelo Governo Federal na data de 06 de fevereiro do presente ano, cuidando-se da Lei n° 13.979 de 2020, a qual, em sua ementa, afirma dispor sobre “as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”.
O art. 2° da referida lei conceitua tanto o isolamento, apresentando-o como sendo a separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus, como a quarentena, a qual se descortina como sendo a restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus.
Por sua vez, o art. 8º, dispondo sobre a vigência da lei, assevera que a norma haverá de vigorar enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus. Essa mesma lei afirma que outros atos administrativos deverão ser editados, especialmente para o fim de disciplinar as condições e os prazos relativos ao isolamento e à quarentena.
Em evidência ao elevado estado crítico da grave crise de saúde pública em menção, o Ministério da Saúde houve declarar "Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional", tornando, desta forma possível a realização de prisões de pessoas que tenham por finalidade obstaculizar a efetiva aplicação da norma sanitária que tem por escopo impedir, sobretudo, a propagação e a disseminação da Covid 19, enfermidade de natureza evidentemente contagiosa.
Contudo, entendemos que não devem as autoridades policiais, constatando em concreto atos de desobediência às normas sanitárias, aplicar medidas restritivas de liberdade ato contínuo e de imediato, posto que, para o fim de exercer as potencialidades próprias e peculiares do exercício da “medida do poder de polícia”, devem estes, sempre que possível, preceder a imposição das medidas de maior rigor, da aplicação de outras de caráter profilático e preventivo, tais como a orientação e a coordenação da entrada ou da saída de pessoas de locais públicos de conhecida e notória potencialidade de aglomeração ou de aglutinação de pessoas ou de veículos, como é o caso das praias, praças ou logradouros que tenham esse característica peculiar e intrínseca.
Ademais, cuidando-se de confronto e de possível colisão de direitos fundamentais, saúde pública e liberdade individual, há o Estado, por meio de seus agentes, buscar empregar mecanismos eficazes de sopesamento de interesses, de forma a evitar ao máximo o cerceamento da liberdade pessoal, vez que, nesta hipótese, estaremos posicionados diante da aplicação da força coercitiva da norma em seu grau máximo, o que pode representar, casuisticamente, até mesmo um patente desrespeito aos princípios regentes do direito penal, tais como o da intervenção mínima e o da proporcionalidade.
De outro norte, não há como deixar de reconhecer a possibilidade de uma ação policial remota e diferida em sua graduação, que é o encaminhamento à autoridade policial daquele que, instado a se reposicionar diante da lei, ouse afrontá-la e desrespeitá-la, e nesse caso, deve o direito penal cumprir a sua função de “ultima ratio”, aplicando a medida ainda que temporária, de restrição da liberdade.
Outrossim, temos para nós que não é o caso de se aplicar essa medida mais gravosa em face dos comerciantes que entendam necessário desobedecer as regras de restrição de abertura de lojas, bares, lanchonetes, restaurantes, academias ou estabelecimentos análogos; para esse fim, o direito administrativo sancionador possui penalidades mais adequadas ao modelo deste particular ato de desobediência, seja a partir da possibilidade da imposição de multas de médio ou de elevado valor, seja a partir da imposição de atos administrativos de suspensão ou encerramento das atividades comerciais.
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*Vander Ferreira de Andrade é advogado. Especialista, Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Universitário e de Pós-Graduação. Autor de diversas obras jurídicas. Exerce a função de Pró-Reitor de Administração e Planeamento (PROAP) do Centro Universitário Fundação Santo André.