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Pandemia de covid-19, toque de recolher, suspensão de atividades privadas e restrição ao exercício de direitos fundamentais

Com todas as vênias, mas uma emergência em saúde decorrente de epidemia, ainda que em situação de calamidade pública, não é suficiente para impor um toque de recolher aos cidadãos, até porque esta medida sequer é prevista nos estados de defesa e de sítio.

8/4/2020

Faço a chamada acima apenas para conduzir brevíssima reflexão sobre os decretos baixados pelo Governador de Santa Catarina para enfrentamento da pandemia de Covid19, em especial o decreto 525, de 23/3/20, que “dispõe sobre novas medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”. 

Estes atos administrativos, quando analisados sob o prisma jurídico, devem ser conhecidos nos planos da existência, validade e eficácia. 

No plano da existência é inequívoco que o decreto 525/20 existe, pois foi assinado pelo Governador do Estado e publicado no Diário Oficial do Estado ainda na data de ontem, 23/3/20 (DOE/SC n. 21.227-A, fl. 02). 

O fato de um decreto existir não quer dizer necessariamente que ele seja válido, pois isto depende de sua adequação formal e material às normas legais e constitucionais que lhe são superiores, até porque os decretos são atos privativos do chefe do Poder Executivo, emitidos para dar fiel execução à lei criada pelos parlamentos (CF/88, art. 84, IV), não podendo contrariar as normas superiores e nem invadir a competência reservada às normas legais. 

Quanto à eficácia, um ato administrativo pode ser inválido e mesmo assim eficaz, caso os destinatários do ato decidam obedecer ao seu conteúdo coercitivo sem questionar a sua validade. No tocante aos decretos publicados para enfrentamento da pandemia, apesar das evidentes invalidades, como comentadas abaixo, é certo que eles tem sido eficazes, tanto assim que a economia do Estado de Santa Catarina foi paralisada em grande medida, o que de fato tem redundado no vitorioso achatamento da curva de contaminação da covid-19 no âmbito do Estado, sendo este esforço dos catarinenses um exemplo para a União e para os demais estados da Federação.

Quanto à validade deste decreto, no entanto, sem adentrar às minúcias do mesmo, mas mantendo-se no tema da suspensão das atividades privadas, vemos que o art. 7º buscou invalidamente suspender por 7 dias, em todo o território catarinense, as atividades e os serviços privados não essenciais, a exemplo de academias, shopping centers, bares, restaurantes e comércio em geral. 

Foram suspensos, também, os serviços públicos considerados não essenciais em âmbito municipal, estadual e federal, além da entrada de novos hóspedes no setor hoteleiro, a circulação de veículos de transporte coletivo urbano municipal e intermunicipal de passageiros e a circulação e o ingresso de veículos de transporte interestadual e internacional de passageiros em território catarinense. 

Esta medida decretada pelo Governador do Estado, sabidamente existente, é inválida por variadas razões, em especial porque os direitos fundamentais de reunião, de locomoção e de exercício do trabalho e da atividade econômica não podem ser suspensos, salvo temporariamente no estado de sítio ou – em sua forma abrandada – no estado de defesa, e isso se ocorrem as específicas hipóteses definidas na Constituição da República que autorizam a decretação destes estados de exceção constitucional. 

A calamidade pública ou a emergência em saúde pública, como ora estamos vivendo com a pandemia de covid-19, certamente são situações gravíssimas e que demandam pronta atuação do Estado, todavia, se vivemos sob o império da lei, não podemos concordar com restrições típicas de estados de exceção sem que, para tanto, concorram as situações que estão previstas no Texto Constitucional. 

Com todas as vênias, mas uma emergência em saúde decorrente de epidemia, ainda que em situação de calamidade pública, não é suficiente para impor um toque de recolher aos cidadãos, até porque esta medida sequer é prevista nos estados de defesa e de sítio, que só autorizam a suspensão da liberdade de reunião e a imposição de “obrigação de permanência em localidade determinada” (CF/88, art. 139), o que não se confunde com a ordem de permanecer recolhido em casa. 

O direito brasileiro não tem norma legal em sentido estrito, emanada do Poder Legislativo, que regule a situação epidemiológica emergencial, tanto é assim que em 2011 foi editado um decreto Federal, o 7.616, de 17/11/11, que dispôs sobre a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional - ESPIN e instituiu a Força Nacional do Sistema Único de Saúde - FN-SUS, como programa de cooperação voltado à execução de medidas de prevenção, assistência e repressão a situações epidemiológicas, de desastres ou de desassistência à população. 

Este decreto contém, em seu preâmbulo, a remissão à legislação que ele deveria estar regulamentando, considerando que decretos não são leis em sentido estrito e se prestam apenas a dar fiel execução a lei que pretendam regulamentar. No caso, o decreto 7.616/11 busca regulamentar o art. 16 da lei 8.080/90 e o §4º do art. 2º da lei 8.745/93. 

O primeiro prevê a competência da União, através da direção nacional do SUS, para “executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional” (lei 8.080/90, art. 16, parágrafo único). 

Já o segundo prevê a competência da União para declarar emergência em saúde pública, todavia, unicamente para o fim de contratação de pessoal por tempo determinado, em caso de necessidade temporária de excepcional interesse público. 

Tanto é verdade que ao aproximar-se a crise da pandemia da covid19, foi enviado ao Congresso Nacional, apressadamente, o projeto de lei n. 23/2020 que redundou na lei 13.979, de 6/2/20, que “dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Na mensagem que acompanha o projeto de lei é dito que: 

(...) “embora se possa afirmar que o Brasil evoluiu muito na proteção jurídica dada à população para a garantia do direito à saúde, é necessário reconhecer que, no que se refere à legislação que regula a atuação estatal na área de emergência em saúde pública, o atual ordenamento jurídico carece de regulamentação frente aos avanços trazidos pelo Sistema único de Saúde”. 

A legislação atual está, também, defasada no que respeita à definição de medidas e instrumentos jurídicos e sanitários adequados para que o Estado e a sociedade brasileira possam organizar-se para o combate às novas ameaças à saúde pública que vêm recorrentemente colocando em risco as pessoas em diversos países do mundo. 

Todavia, pra além do que consta na mensagem transcrita acima, não é só o caso de estar a legislação defasada, mas de as cláusulas pétreas constitucionais vedarem medidas governamentais que imponham toque de recolher e a suspensão de atividades privadas, mesmo com gravíssima situação que recomende tal medida do ponto de vista sanitário. 

Então eu estou a dizer que vidas humanas não podem ser poupadas através da imposição de ato policial restritivo à reunião, locomoção e ao trabalho porque isso não está previsto na Constituição? Isso mesmo, pois se estamos sob o império da lei, cabe ao agente público agir somente sob a previsão legal e nunca contra direitos ou garantias fundamentais, salvo no exercício do regular poder de polícia e nos limites negativos impostos ao Estado quanto às suspensões ocasionais e temporárias das liberdades individuais. 

Isto não quer dizer que o Estado deva ficar inerte diante da emergência epidemiológica, pois quando o toque de recolher, a suspensão de atividades, reuniões ou locomoção forem medidas necessárias à contenção de uma epidemia, tem o gestor público o dever de esclarecer à população quanto à imprescindibilidade das medidas, bem como o dever de pedir a colaboração coletiva e de lembrar reiteradas vezes a todos, e a cada um, que o sacrifício das prerrogativas individuais é conduta que, não obstante não possa ser imposta, é esperada como expressão de cidadania, altruísmo e medida hábil à salvaguarda da saúde de todos os cidadãos. 

Não se diga que isto é totalmente ineficaz, pois já são inúmeros os casos de calamidades públicas decorrentes de secas ou enchentes em que os governos arrecadam recursos a sobejar, e isto sem qualquer força coercitiva, apenas pedindo contribuições espontâneas aos cidadãos. 

Aliás, neste sentido, não se pode mesmo reclamar da lei Federal 13.979/20, pois mesmo quando já se sabia que o isolamento social era imprescindível à contenção da epidemia, o Estado Brasileiro não editou norma com restrição superior ao isolamento e a quarentena, ou seja, não se impôs medida genérica nacional de suspensão de atividades privadas ou o toque de recolher. 

O isolamento, como previsto na Lei Federal de enfrentamento a epidemia do coronavírus, prevê a separação de pessoas de maneira a evitar a contaminação ou a propagação epidêmica, porém, só se aplica àquelas que estejam "doentes ou contaminadas", do mesmo modo, a quarentena prevê a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes”, ou seja, nenhuma das medidas é geral e irrestrita, aplicada a todo um conjunto da sociedade, nem mesmo a um bairro ou a uma pequena cidade. 

Já o decreto Catarinense anda na contramão deste respeito constitucional, pois busca a (necessária) paralisação de atividades econômicas dos setores industrial, comercial e de serviços por ordem estatal do Governador do Estado. Portanto, o governo manda quando em verdade só poderia pedir, instruir ou recomendar. 

Acredita-se que o Estado de Santa Catarina, com sua valorosa Procuradoria-Geral, tem ciência da inconstitucionalidade da medida, tanto que o ato impõe a violação em período curto de 7 dias, isso certamente para desmotivar as vítimas do arbítrio quanto à busca do remédio constitucional do mandado de segurança, pois diante da evidente necessidade sanitária da medida e da demora normal para pleitear e para ver avaliado um pedido judicial liminar – considerando que o Poder Judiciário Catarinense também restringiu suas atividades em razão da epidemia – as pessoas, empresas e instituições preferem, em sua maioria, render-se ao arbítrio do que buscar afastar o ato coator, especialmente temendo nadar contra a maré sendo mal compreendidas, como quem não deseja fazer sua cota de sacrifício diante de tão calamitosa situação. 

O que nos preocupa, certamente, é que esta trilha autoritária do Governo Catarinense acabe por autorizar, em novas crises, a abertura de uma larga avenida de violações de direitos e garantias individuais do cidadão catarinense. 

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*Manolo Del Olmo é advogado, especialista em Administração Pública e professor de Direito Administrativo.

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