A pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV2) atingiu nossa sociedade de maneira inédita e, dentre inúmeros setores afetados, destaca-se a notável dificuldade que as medidas restritivas, adotadas pelos governos (federal e locais), impõem ao cumprimento dos contratos empresariais celebrados, seja por pessoas físicas ou jurídicas.
Com efeito, o DECRETO ESTADUAL PAULISTA 64.881, com vigência a partir de 24/3/2020, institui a quarentena em todo o Estado (artigo 1º) e prevê a suspensão das seguintes atividades (artigo 2º):
I - o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas, "shopping centers", galerias e estabelecimentos congêneres, academias e centros de ginástica, ressalvadas as atividades internas;
II – o consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados, sem prejuízo dos serviços de entrega ("delivery") e "drive thru".
Este mesmo artigo 2º também determina quais atividades essenciais podem ser praticadas durante a quarentena (artigo 2º, § 1º, do decreto paulista 64.881):
1. saúde: hospitais, clínicas, farmácias, lavanderias e serviços de limpeza e hotéis;
2. alimentação: supermercados e congêneres, bem como os serviços de entrega ("delivery") e "drive thru" de bares, restaurantes e padarias;
3. abastecimento: transportadoras, postos de combustíveis e derivados, armazéns, oficinas de veículos automotores e bancas de jornal;
4. segurança: serviços de segurança privada;
5. demais atividades relacionadas no § 1º do artigo 3º do decreto federal 10.282, de 20 de março de 2020".
Importante enfatizar, inclusive, a disposição do artigo 4º, do citado decreto:
Artigo 4º - Fica recomendado que a circulação de pessoas no âmbito do Estado de São Paulo se limite às necessidades imediatas de alimentação, cuidados de saúde e exercícios de atividades essenciais.
A despeito do tema, emerge a necessidade de análise criteriosa sobre a nova realidade que as pessoas físicas ou jurídicas (fornecedores, consumidores, locadores e locatários, por exemplo) enfrentarão, notadamente, quanto à dificuldade de cumprir os contratos celebrados.
Inicialmente, é preciso destacar que ainda não existem decisões judiciais a respeito dos efeitos do novo coronavírus (SARS-CoV2) nos contratos firmados, (antes de março de 2020), dado a embrionária problemática que ainda não alcançou os tribunais.
De qualquer modo, não se pode perder de vista que a regra geral dos contratos, pacta sunt servanda (o contrato faz lei entre as partes), pode ser relativizada, em situações excepcionais, especialmente diante da superveniência de fatos que alterem o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Em outras palavras, o contrato, a princípio celebrado, pode ser readequado posteriormente, desde que a superveniência de fatos, não previstos originalmente pelas partes, desequilibre, economicamente, a avença.
Isso porque o Direito pátrio prevê saídas para que o prejudicado na relação contratual possa buscar sua readequação econômica. São as teorias da onerosidade excessiva; da imprevisão; do caso fortuito e força maior.
Todas essas teorias possuem irrefutável premissa: a superveniência de uma situação que, além de imprevisível e extraordinária, desequilibre, econômica e financeiramente, o contrato.
Pela teoria da imprevisão, prevista no artigo 317 do Código Civil, o juiz poderá corrigir o valor pago pelo devedor quando, por motivos imprevisíveis, a quantia paga torna-se notoriamente desproporcional à inicialmente prevista no contrato.
Note-se que diante da extrema dificuldade em cumprir o contrato, pela superveniência de um evento imprevisível (pandemia), é que se admite a revisão contratual. Veja: a discussão, aqui, é sobre o valor já pago, durante o período de situação excepcional (jamais será sobre evento futuro).
Para ilustrar o acima exposto, destaca-se que a jurisprudência já reconheceu que não são fatos imprevisíveis: mudança de moeda, inflação e variação cambial, por exemplo.
A teoria da onerosidade excessiva, por sua vez, é bastante próxima à da imprevisão e está prevista no artigo 478, do Código Civil. Aqui, em razão de fato superveniente e imprevisível, a prestação torna-se excessivamente onerosa, impedindo tanto a execução do contrato, quanto admitindo-se sua rescisão.
Como exemplo, cita-se a impossibilidade do pagamento do aluguel empresarial, diante da ocorrência de uma pandemia que restringe a circulação de pessoas. A fim de melhor adequar o instituto, a doutrina é pacífica no sentido de, preliminarmente, legitimar o dever de revisão das cláusulas contratuais, para, somente após, diante da persistente impossibilidade de continuidade deste, rescindi-lo.
Em que pese semelhantes, as duas teorias acima não se confundem. A teoria da imprevisão diz respeito aos valores já pagos pelo devedor; sendo que o valor pago, na data do pagamento, mostrou-se, claramente, desproporcional ao valor determinado na data da contratação. Já a teoria da onerosidade excessiva, por seu turno, prevê que, na data do pagamento, o valor devido afigurou-se demasiadamente oneroso para o devedor, impossibilitando o pagamento, fato que demandará a revisão contratual ou sua rescisão.
Finalmente, a teoria do caso fortuito e da força maior encontra-se no artigo 393, do Código Civil e dispõe que diante da impossibilidade do cumprimento da obrigação (em razão de fato superveniente), a parte "impossibilitada" não será responsabilizada pela inadimplência.
Em outras palavras, o surgimento de um fato posterior impossibilita o pagamento (veja: o pagamento não se tornou excessivamente oneroso; ele simplesmente não poderá ser efetuado) e, em razão disso, a parte devedora não poderá responder pelo descumprimento contratual.
Existe grande divergência, na doutrina, sobre a necessidade da imprevisibilidade do evento superveniente, mas há consenso de que é preciso verificar a duração e o impacto do caso fortuito ou da força maior, bem como as previsões do contrato sobre estas circunstâncias (como exemplo, temos a recente "greve dos caminhoneiros", que impactou profundamente no adimplemento das obrigações contratuais).
Portanto, para a teoria do caso fortuito e da força maior, o devedor pode buscar, em primeiro lugar, o afastamento da responsabilidade por descumprimento contratual.
Em segundo lugar, poderá o devedor perquirir:
a) a suspensão do cumprimento da obrigação (caso o evento superveniente não seja de prolongada duração, de modo que as partes ainda tenham interesse no cumprimento desta, após o término do evento) ou;
b) a rescisão contratual, caso os efeitos perdurem por um prazo que inviabilize a continuidade da contratação.
Em apertada síntese, essas são as teorias que regem a possibilidade de revisão contratual, no âmbito civil.
Todavia, existe um ramo do direito das obrigações que, pela praxe, regulamenta as disposições contratuais sobre eventos pandêmicos: o direito securitário.
Com efeito, as seguradoras excluem, usualmente, da cobertura do seguro, os eventos decorrentes de pandemia, justamente sob o argumento do desequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Sendo assim, uma vez assinado, pelas partes, o contrato de seguro com cláusula expressa de exclusão da cobertura contratual em caso de pandemia formalmente reconhecida, a regra geral do direito das obrigações será aplicada: pacta sunt servanda.
De qualquer modo, destaca-se que, em razão da gravidade da pandemia do novo coronavírus, algumas seguradoras irão indenizar, por mera liberalidade, os danos decorrentes da pandemia de coronavírus, o que é salutar.
Por último, não se pode esquecer, ainda, a existência dos contratos administrativos, regulados pelo artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal e artigo 65, da lei 8.666/93.
Como regra geral, diante de evento futuro e imprevisível, a Administração Pública será a responsável pelo reequilíbrio econômico-financeiro destes contratos: ou seja, a Administração é quem assume os danos pelo desequilíbrio, não se aplicando, em regra, as teorias do Código Civil, acima elencadas.
Como embaraço, sabe-se que a prestação dos serviços públicos, sobretudo quanto aos essenciais, sofrerá consequências drásticas, mormente com os permissivos de contratação emergencial, previstos na lei de licitações, o que ensejará análise pormenorizada e individualizada dos contratos celebrados.
Nesse compasso, diante da novidade que se apresenta ao Direito brasileiro, sem precedentes doutrinários e jurisprudenciais, caberá ao operador do direito a análise criteriosa da aplicação das teorias acima descritas, aos contratos submetidos a sua análise e em relação aos decretos de quarentena que restringiram, em muito, as práticas comerciais no Brasil.
Não há regra geral, tampouco paradigma matemático: "cada caso é um caso"! E o grande desafio será concluir se o novo coronavírus (SARS-CoV2) será considerado evento extraordinário e imprevisível, de modo a ensejar as revisões contratuais.
Despontar-se-á como fundamental o estudo de cada contrato, pois se houver previsão específica quanto à incidência de fatos supervenientes e extraordinários, não haverá como aplicar, em regra, as teorias acima estudadas, prevalecendo-se as disposições contratuais (salvo relevante desequilíbrio).
Não obstante, caso a relação comercial das partes envolvidas enquadre-se nas teorias supra descritas, é indubitável que estas pactuem acordo acerca da suspensão de pagamento das parcelas do contrato (aluguéis comerciais, por exemplo) até o término da quarentena, como também sobre a forma como estas serão pagas, posteriormente.
Conclui-se, à vista do relatado, que cabe aos contratantes a procura de um profissional habilitado, para que seu contrato possa ser devidamente analisado e, assim, revisto (se o caso), readequando-se as prestações pecuniárias em consonância com a nova realidade de quarentena: seja diferindo-as no tempo, seja reduzindo seu valor.
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*Antonelli Antonio Moreira Baracat Secanho é advogado do escritório EQ - Eudes Quintino - Sociedade de Advogados.
*Rejane Isley Corrêa Hugatt é advogada do escritório EQ - Eudes Quintino - Sociedade de Advogados.