Nos últimos dias, inúmeros estão sendo os debates acerca da possibilidade de encerramento antecipado de determinado contrato, ou alteração unilateral de seu escopo, sem que haja imputação de multa que tenha sido legitimamente convencionada entre as partes contratantes, em razão dos reflexos econômicos causados pela decretação do estado de calamidade pública em decorrência da pandemia da covid-19 (novo coronavírus).
Ao passo que o tema não é de simples análise como parece ser, entretanto, a matemática financeira é de fácil conclusão! Uma vez que pequenos comerciantes ou grandes empresas tenham perda significativa de faturamento, o cumprimento das obrigações pactuadas em momento anterior ao presente pode ficar prejudicado. Dessa maneira, há que se colocar em análise a ocorrência de caso fortuito e força maior, de modo a verificar se o cumprimento de determinada obrigação possa ter se tornado excessiva ou impossível de cumprimento a uma das partes contratantes.
Outrossim, importante analisar tal matéria não só a partir de conceitos jurídicos, mas também por meio de uma perspectiva macro da atual situação, sendo certo que, o reajustamento indiscriminado de contratos afeta as relações sociais e econômicas como um todo. O fim de uma relação contratual entre determinadas partes, de certo, impacta em diversas outras relações comerciais, seja do mesmo setor ou não. A economia se desenvolve e se orienta não só por questões jurídicas e políticas, mas também por critérios de ordem social e neste ponto, não podemos deixar de lembrar-nos do princípio basilar de toda e qualquer relação contratual, a função social dos contratos.
Mas partimos à análise do que de fato interessa à intenção do presente texto! Com o reconhecimento do estado de calamidade pública pela União, via decreto legislativo 6/20, publicado no dia 20 de março de 2020, acompanhado de decretos municipais e Estaduais Brasil afora determinando pelo fechamento de diferentes tipos de estabelecimentos comerciais, em grande escala, surgem questionamentos acerca da validade de contratos privados que estejam em vigência, como por exemplo, contratos que regulam a relação de locação de determinado bem.
Seria possível, em razão da crise socioeconômica anunciada, haver redução ou isenção no valor do aluguel a ser pago pelo locatário ao locador? É juridicamente válido, por exemplo, determinada empresa que tenha efetuado locação de frota requeira, junto à locadora, a devolução antecipada dos veículos, sem que lhe seja imputada multa contratual por resolução antecipada? Tais possibilidades estão eminentemente sendo suscitadas com fulcro em dois institutos do direito civil, caso fortuito e força maior, buscando os potenciais devedores amparo, principalmente, no artigo 393 do CC1.
Assim sendo, importante destacar que, partindo dos exemplos citados anteriormente, em regra, negócio jurídico que envolva relação de locação como objeto será, a depender de sua natureza específica, regulada pela lei 8.245/91 ou pelo CC, sendo este aplicado aos casos omissos daquela (Art. 79 da lei 8.245/91). Ou seja, independentemente do objeto, temos então que os reflexos advindos de caso fortuito e força maior podem estar presentes nos diversos tipos de negócio jurídico firmado para regular locação, seja de bem móvel ou imóvel.
Como parênteses cabe rasa explanação acerca dos conceitos jurídicos de caso fortuito e força maior. Para a ocorrência de ambos, é necessário que: 1) o fato, interno ou externo, não tenha ocorrido por culpa do devedor; 2) o fato deve ser, necessariamente, superveniente e inevitável; e 3) é necessário que tal fato ocorrido esteja fora do alcance da vontade própria do devedor.
Ademais, ainda que ambas as definições estejam, por maioria das vezes, presentes de modo conjunto nos diplomas legais que dispõem sobre o tema, temos que a ocorrência de caso fortuito se dará como reflexo de acontecimentos internos e inerentes à singularidade de determinada pessoa que componha a relação contratual. Ou seja, caso fortuito está relacionado a um impedimento inerente à pessoa do devedor, seja esta pessoa física ou jurídica. Exemplificando, no caso de determinado prestador de serviço se ver impossibilitado de cumprir com sua obrigação contratual em razão de acidente automobilístico causado por terceiro durante seu deslocamento.
Por sua vez, para a caracterização jurídica de força maior é necessário que ocorra fato externo à individualidade do contratante que seja capaz de tornar inexequível as condições anteriormente estipuladas em um contrato. Como por exemplo, caso o cumprimento de determinada condição contratual seja impossível de ocorrer como razão da decretação de guerra, ou mesmo em razão da ocorrência de determinado fenômeno natural.
Contudo, assim como entende o i. Doutrinador Arnaldo Rizzardo2, a nós pouco é importante a distinção individualizada de caso fortuito e força maior para aplicação jurídica em cada caso concreto, posto que ambas as tipificações possuem força de exoneração, parcial ou total, de determinada obrigação, seja em razão de incapacidade de cumprimento por elementos próprios ou externos à pessoa do devedor.
De modo complementar, sem muito adentrar no tema, importante também destacarmos a tipificação de caso fortuito e força maior na esfera consumerista. Ainda que tais institutos não estejam de modo expresso no CDC, a ocorrência de fato externo imprevisível e estranho ao risco do negócio (elementos que ensejam a caracterização de força maior) é fato possível de afastar a responsabilidade civil objetiva imputada ao fornecedor de produtos ou serviços.
Por outro lado, em relações contratuais prejudicadas por ocorrência de força maior, do mesmo modo deve se estender a exoneração de cumprimento da obrigação também ao consumidor. Há corrente jurisprudencial e doutrinária que equipara locatário a consumidor em contrato de locação que tenha imóvel residencial como objeto, podendo, casuisticamente, a depender dos reflexos advindos do evento de força maior ou caso fortuito, haver resolução antecipada do contrato ou diminuição do valor do aluguel anteriormente estipulado entre as partes.
Pois bem, voltamos então ao que nos parece ser o grande ponto de divergência e discussão entre aqueles que se debruçam sobre o presente tema, a simples ocorrência em sentido amplo de força maior, como de fato estamos vivenciando em nosso país em razão da pandemia causada pela covid-19, é suficiente para exonerar determinado devedor de sua obrigação contratual? Entendemos que não, posto que, as relações contratuais, por serem compostas de aspectos objetivos e subjetivos inerentes às partes e às condições de celebração, devem ser analisadas de modo individual, caso a caso, para que somente assim, uma vez presentes no caso concreto as tipificações jurídicas de caso fortuito ou força maior possam se fazer valer entre as partes que anteriormente ao fato tenham estabelecido relação contratual.
A tipificação de caso fortuito e força maior, seja em caráter relativo ou absoluto, deve sempre caminhar em conjunto com as especificidades de cada caso, posto que, para reconhecimento de tal instituto jurídico, a lei sequer impõe a necessidade do devedor arruinar-se para desincumbi-lo do cumprimento de determinada obrigação, sendo necessária a apreciação particular para determinação da possibilidade de exoneração ou não.
Necessário refletirmos que, por estarmos vivenciando a decretação de calamidade pública, há necessariamente a tipificação de força maior em determinada relação contratual em que ambas as partes não tenham sofrido diminuição de faturamento, por exemplo, ou qualquer outra alteração significativa de seu cotidiano? O ponto principal desta reflexão diz respeito ao fato que, em garantia da segurança jurídica das relações contratuais, determinado fator externo que se imponha de modo generalizado não pode, de modo algum, se fazer valer para devedores que ardilosamente buscam se desvincular de suas obrigações contratuais.
Ainda, necessário também considerarmos se tal fato como o que estamos vivenciando, cujo tempo de duração nem sequer ainda sabemos, é por si suficiente para causar impacto negativo na esfera privada de determinada parte contratante para haver exoneração de suas obrigações perante a parte contrária, devendo ser considerados aspectos de ordem objetiva e subjetiva em de modo casuístico.
Certamente, não há como cravar categoricamente que, no atual momento, os contratos de um modo em geral estão em risco em razão da ocorrência de caso fortuito e força maior. A segurança jurídica das relações contratuais deve prevalecer de modo a impedir que partes mal intencionadas busquem exoneração indevida de suas obrigações, tendo como falso amparo instituto jurídico cuja aplicabilidade e reconhecimento prescinde, necessariamente, da análise técnica e individualizada por parte do Poder Judiciário.
Não restam dúvidas que, por enquanto, a livre negociação entre as partes, norteada pelos princípios basilares de toda relação contratual, é, ao nosso ver, o melhor caminho para recomposição justa de obrigações que foram pactuadas anteriormente ao presente momento. Seja por meio de diferimento, compensação, abatimento, parcelamento, ou qualquer outro meio viável, necessário que haja justa composição, quando possível, para manutenção das relações contratuais. Há que se fazer valer a função social dos contratos como princípio basilar da matéria.
Outrossim, também não merece prosperar obrigação contratual que, também diante do atual cenário, é de difícil ou impossível cumprimento pelo devedor, havendo que legitimamente se fazer valer da tipificação de força maior para busca de sua sobrevivência.
Por tais razões e considerações, entendemos que a tipificação de caso fortuito e força maior não deva ser de aplicabilidade generalizada e abstrata, devendo cada caso ser individualizado de modo que as partes contratuais priorizem sempre, em um primeiro momento, a gestão inteligente da crise por meio de negociação e ajustamento de obrigações recíprocas.
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1 “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.” – ipisis literis.
2 In “Contratos”, Arnaldo Rizzardo, 18ª edição, Editora Forense, 2019, pg. 26.
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*Bruno Crepaldi Esteves faz parte da equipe de direito Cível do escritório Amaranto Crepaldi Viegas.