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Notas sobre a competência para determinar medidas sanitárias para a contenção da covid-19

Estados e municípios não podem impor medidas sanitárias que não estejam previstas, de antemão, na lei Federal 13.979/20.

7/4/2020

Em janeiro de 2020, a China reportou os primeiros casos de pessoas que contraíram problemas respiratórios, causadas por um novo vírus. A doença, denominada de covid-19, rapidamente se espalhou pelo mundo, o que levou a Organização Mundial da Saúde a declarar, em 11 de março de 2020, uma pandemia global.

No Brasil, já são milhares de pessoas infectadas. A situação de emergência exige medidas excepcionais da União, dos Estados e dos Municípios, que deverão utilizar os instrumentos do direito público, seja para impor medidas de contenção sanitária, seja para evitar uma crise econômica.

Em 6 de fevereiro de 2020, a União editou a lei 13.979 que definiu as medidas sanitárias (muitas delas restritivas de direitos), que poderão ser adotadas pelo ministro da Saúde e pelas autoridades administrativas dos Estados e municípios, para o enfrentamento da pandemia.

A lei foi alterada em 20 de março, pela medida provisória 926/20, salientando que as medidas administrativas mais severas, como o isolamento, a quarentena e a restrição de circulação, não poderão paralisar as atividades e serviços essenciais, definidas em decreto pelo Presidente da República.

Também ressaltou que as medidas que possam afetar atividades reguladas, concedidas ou autorizadas (tais como instituições financeiras, telecomunicações, energia e transportes), dependem de prévia articulação com o órgão regulador ou o poder concedente ou autorizador.

O regime estabelecido pela lei Federal 13.979/20, no entanto, tem gerado controvérsias, especialmente no que diz respeito à possibilidade de os Estados e municípios imporem, de forma autônoma, restrições às atividades econômicas e à circulação de pessoas dentro do seu território, inclusive desconsiderando as normas editadas pela União ou as recomendações dos órgãos reguladores.

Em 23 de março de 2020, o Partido Democrático Trabalhista – PDT ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADIn 6.341), com pedido de tutela cautelar, sustentando que a lei Federal 13.979/20 violaria a competência administrativa comum dos Estados e municípios, pois teria concedido à União o poder de coordenar os atos de execução das medidas necessárias nesse período de calamidade, estabelecendo uma “hierarquia” sobre os Estados e os municípios. 

A ação foi distribuída ao ministro Marco Aurélio, que reconheceu, liminarmente, a constitucionalidade da lei Federal:

Há de ter-se a visão voltada ao coletivo, ou seja, à saúde pública, mostrando-se interessados todos os cidadãos. O artigo 3º, cabeça, remete às atribuições, das autoridades, quanto às medidas a serem implementadas. Não se pode ver transgressão a preceito da Constituição Federal. As providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior. (ADI 6.341, Min. Marco Aurélio, 24/3/20). 

Todavia, deferiu, em parte, a medida cautelar, para tornar explícita, “no campo pedagógico”, a existência de competência comum, entre os diversos entes Federados, a respeito da proteção da saúde: 

O que nela se contém – repita-se à exaustão – não afasta a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios. Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios. (ADI 6.341, Min. Marco Aurélio, 24/3/20). 

Alguns aspectos, no entanto, merecem destaque.

As providências administrativas adotadas pelos Estados e municípios com fundamento na competência comum prevista art. 23, II, da CF, devem estar autorizadas, previamente, em lei. Os atos de “polícia sanitária” não podem ser praticados de forma autônoma pelo Executivo, que está vinculado ao princípio da legalidade estrita, de fundamental importância no direito administrativo (arts. 5º, II, e 37 da CF). 

Em outras palavras, os Estados e municípios não podem impor medidas sanitárias que não estejam previstas, de antemão, na lei Federal 13.979/20 (ou em outro diploma legislativo), especialmente aquelas que restringem o exercício de direitos fundamentais, como a liberdade, a propriedade e o exercício de atividade profissional. 

Mas poderiam os Estados e municípios editar leis prevendo medidas mais restritivas que aqueles fixadas na lei Federal 13.979/20, ou ainda restringir o exercício de atividades consideras essenciais pela União?

A Constituição Federal dispõe que compete à União editar as normas gerais a respeito da proteção da saúde, podendo os Estados, o Distrito Federal e os Municípios editar normas suplementares (art. 24, XII, e art. 30, II, da CF). 

Seguindo a regra constitucional, uma vez editada “norma geral” pela União (no caso, a lei Federal 13.979/20), o exercício da competência legislativa pelos Estados e Distrito Federal (no que diz respeito aos interesses regionais), e pelos Municípios (quanto aos interesses locais), tem natureza suplementar e, necessariamente, deve respeitar a harmonia do sistema normativo.

 Significa dizer que, em matéria de proteção e defesa da saúde, os Estados, o Distrito Federal e os municípios, em seus âmbitos de competência, podem editar normas que suplementem a regra geral editada pela União Federal (na extensão dos seus interesses regionais e locais), desde que não a contrariem. 

E quando o conflito normativo ocorrer entre Estado e município? Considerando que ambas são “normas suplementares”, a pergunta que fica é: qual deve prevalecer? 

De acordo com o art. 30, II, da CF, os municípios podem suplementar a legislação Federal e a estadual, quando assim exigir o seu interesse local. Contudo, tratando-se de competência suplementar, devem respeitar as normas já editadas pela União e pelos Estados. 

Quanto a este último aspecto relativo ao possível conflito entre normas estaduais e municipais, vale registrar que o STF, ao julgar o RE 586.224 (Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJ 8/5/15), decidiu, por unanimidade de votos, que “...o Município é competente para legislar sobre o meio ambiente com a União e Estado, no limite do seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados”, tendo sido declarada inconstitucional lei do Município de Paulínia/SP que contrariava disposição de lei do Estado de SP que, por sua vez, disciplinava idêntica matéria inserida no âmbito da chamada “competência comum suplementar”.

Ou seja, quanto aos municípios, além da observarem a legislação federal, devem seguir também as diretrizes definidas pelo seu Estado. 

Em suma, os Estados e Municípios podem determinar medidas sanitárias para conter a propagação da pandemia, de acordo com os instrumentos e limites previstos na lei Federal 13.979/20. Também podem editar normas suplementares, nos seus âmbitos de competência, desde que não violem as regras gerais fixadas pela União.

______________

*Priscila Kei Sato é doutora em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professora do Curso de Especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP. Membro da AASP - Associação dos Advogados de São Paulo. Advogada do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

*David Pereira Cardoso é mestre pela UFPR. Graduado em direito pela UFPR. Advogado do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

*Smith Barreni é doutorando pela PUC/SP. Mestre pela UFPR. Graduado em direito pelo UNICURITIBA. Professor de Direito Tributário nos cursos de graduação e pós-graduação do UNICURITIBA e da Escola da Magistratura do Paraná (EMAP). Advogado do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados.

 

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