Está em trâmite no Senado Federal, com expectativa de ser votado já na próxima sexta-feira (03.04.20), o projeto de lei 1.179/20 que, em resumo, institui o chamado Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET).
A mencionada iniciativa legislativa está inserida no conjunto das medidas emergenciais adotadas pelo Poder Legislativo decorrentes da pandemia do Covid-19 e, conforme a Justificação constante do próprio texto legislativo, visa “apenas criar regras transitórias que, em alguns casos, suspendam temporariamente a aplicação de dispositivos dos códigos e leis extravagantes”, não revogando ou alterando as normas a que fazem menção o projeto de lei.
É o que, inclusive, estabelece expressamente o artigo 2º do projeto de lei: “Art. 2º A suspensão da aplicação de normas referidas nesta lei não implica sua revogação ou alteração.”.
Ademais, o projeto de lei em questão, também nos exatos termos de sua JuCCstificação, se limita a abordar “matérias preponderantemente privadas, deixando questões tributárias e administrativas para outros projetos”, abstendo-se também de tratar sobre matérias de natureza falimentar e recuperacional.
Diante das inovações trazidas pelo referido projeto de lei, nos parece oportuno analisar, ainda que parcial e brevemente, algumas das matérias abordadas no PL 1.179/20, em especial as que dizem respeito à Prescrição/Decadência e à Resilição/Resolução/Revisão dos Contratos.
Deixa-se claro desde já que não se tem a pretensão de analisar cada um dos artigos constantes do PL ou exaurir a análise dos dispositivos legais nele contidos, mas tão somente compartilhar as primeiras impressões sobre algumas das matérias objeto da iniciativa legislativa em destaque.
Algumas questões relevantes
I. Prescrição e Decadência
De acordo com o artigo 3º do PL, os prazos prescricionais “consideram-se impedidos ou suspensos a partir da vigência da referida lei até 30.10.20.”
Como se sabe, as hipóteses específicas de impedimento (quando o prazo prescricional sequer iniciou a sua contagem) e de suspensão (uma vez retomada a contagem, leva-se em conta o período anteriormente transcorrido) dos prazos prescricionais estão dispostas nos artigos 197 a 201, do Código Civil (“CC”). Já aquelas relacionadas à interrupção (uma vez cessada a causa de interrupção, retoma-se do início a contagem) dos prazos prescricionais estão dispostas nos artigos 202 a 204, do CC.
Ao se referir às mencionadas hipóteses específicas, o §1º do artigo 3º do PL estabelece que referidas hipóteses, seja de impedimento, suspensão ou interrupção, prevalecem sobre o impedimento ou suspensão a que faz referência o caput do artigo 3º do PL.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, o §2º do artigo 3º do PL estabelece que uma vez superadas as hipóteses específicas reguladas pelos artigos do Código Civil acima mencionados, aplica-se a regra geral de impedimento ou suspensão a que faz referência o caput do artigo 3º do PL.
Nos parece clara, assim, a natureza complementar/subsidiária do disposto no PL quanto à suspensão/impedimento dos prazos prescricionais. Visa o legislador estabelecer unicamente a suspensão/impedimento dos prazos prescricionais nos casos em que não sejam aplicáveis ao caso concreto as hipóteses específicas já tipificadas pelo Código Civil.
Clara e louvável também a opção legislativa em não estabelecer o início da vigência da lei objeto do PL como hipótese específica de interrupção do prazo prescricional. Basta que se perceba que o caput do artigo 3º do PL não considera interrompidos os prazos prescricionais, tão somente impedidos ou suspensos, conforme o caso. Significa dizer que, uma vez exaurido o prazo limite a que faz referência o caput do artigo 3º, do PL (30.10.20), retomar-se-á a contagem do prazo prescricional considerando-se os dias previamente transcorridos, se acaso se tratar de hipótese de suspensão dos prazos prescricionais.
Por fim, sobre essa matéria, o §3º, do artigo 3º do PL estende a aplicação do previsto nesse dispositivo legal (impedimento/suspensão dos prazos prescricionais) à contagem do prazo decadencial, seja ele legal ou convencional.
II. Resilição/Resolução/Revisão dos Contratos
II.a. Caso Fortuito/Força Maior
O caput do artigo 6º, do PL estabelece que “As consequências decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art. 393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos.”
O artigo 393, do CC, por sua vez, estabelece que “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”
A intenção do legislador, ao que parece, foi a de equiparar os efeitos da pandemia ao caso fortuito e às hipóteses de força maior, ao mesmo tempo em que alijou da aplicação do referido dispositivo as obrigações vencidas antes do reconhecimento da pandemia.
O que nos parece relevante destacar do referido dispositivo diz respeito ao aspecto temporal. O Parágrafo Único do artigo 1º, do PL dispõe que “Para os fins desta lei, considera-se 20 de março de 2020, data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, como termo inicial dos eventos derivados da pandemia do coronavírus (Covid-19).”
A interpretação conjunta dos referidos dispositivos nos leva a crer que obrigações vencidas antes da referida data, 20.03.2020, não atrairiam a incidência das excludentes derivadas de eventos de caso fortuito/força maior para fins de desobrigação do devedor de arcar com os eventuais prejuízos causados.
Nos parece, contudo, que o fato de determinada obrigação não ter sido cumprida em data anterior a 20.03.20 não exclui automaticamente a possibilidade de enquadramento da pandemia como caso fortuito/força maior para os fins de desoneração do devedor quanto a eventuais prejuízos causados, em especial nos contratos de obrigações continuadas ou com termo ou condições futuras.
A produção de prova inequívoca de eventual impossibilidade de cumprimento da obrigação diretamente relacionada à pandemia parece ser o critério mais adequado para fins de exoneração (ou não) da obrigação do devedor de arcar com os eventuais prejuízos decorrentes de seu inadimplemento, o que, inclusive, encontra guarida na regra geral distribuição do ônus probatório constante do artigo 373, I, do Código de Processo Civil.
E ainda sob o ponto de vista temporal, não esclarece o legislador o marco final para que se considere eventual inadimplemento contratual como hipótese caracterizadora de eventual caso fortuito/força maior para a desoneração do devedor de arcar com os prejuízos causados pela obrigação não cumprida.
A ausência de indicação de referida data-limite apenas corrobora nossa opinião de que o critério a ser levado em consideração deveria consistir na prova inconteste de o inadimplemento contratual estar diretamente relacionado aos efeitos da pandemia.
II.b. Onerosidade Excessiva
Já o artigo 7º, do PL dispõe que “Não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário.”
Os artigos 478, 479 e 480, do CC, por sua vez, versam sobre a possibilidade de, nos contratos de execução continuada ou diferida, (I) o devedor requerer a Resolução do Contrato por Onerosidade Excessiva em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis; (II) o credor evitar a resolução do contato mediante modificação equitativa das condições do contrato; ou (III) quando as obrigações couberem a apenas uma das partes, esta poder pleitear a redução da prestação ou a alteração do modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
O previsto no referido dispositivo nitidamente visa prestigiar o chamado pacta sunt servanda (pactos assumidos devem ser respeitados) e garantir a liberdade das partes no exercício das atividades econômicas, em consonância, a princípio, com o que dispõe a lei 13.874/19 (Declaração de Direitos de Liberdade Econômica).
Contudo, importante observar que referidos dispositivos do Código Civil (478, 479 e 480) não versam apenas sobre a possibilidade de resolução do Contrato, mas também sobre a possibilidade de reajuste das prestações em razão de fatos extraordinários/imprevisíveis.
Nesse cenário, nos parece precipitado (e, quiçá, contraditório) descaracterizar de forma irrestrita e generalizada a variação cambial, o aumento da inflação e desvalorização/substituição do padrão monetário como fatos imprevisíveis para fins de reajuste/rescisão contratual.
Isso porque, pode-se imaginar que tais fatos são, em grande parte, consequências decorrentes da pandemia e que, na forma do artigo 6º, do PL, se equiparariam a caso fortuito/força maior para fins de desoneração do devedor no que diz respeito aos prejuízos resultantes da obrigação inadimplida.
Ademais, o previsto no artigo 7º, do PL também parece contradizer o posicionamento adotado pelo e. STJ em período não muito distante, oportunidade em que se concluiu pela caracterização da variação cambial como fato imprevisível.
Basta que se lembre que quando da abrupta desvalorização do real frente ao dólar-americano em Janeiro de 1999 o e. STJ pacificou o entendimento de que tal fato caracterizaria fato imprevisível e que, nesse caso, as Partes deveriam repartir os ônus das diferenças resultantes da variação cambial no período1.
Por fim, ressalte-se que aqui há novamente uma agravante relacionada ao aspecto temporal: Não se estabelece uma data-limite para que referidas variáveis (aumento da inflação, variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário) sejam descaracterizadas como fatos imprevisíveis para fins de aplicação do disposto nos artigos 478, 479 e 480, do CC, o que pode trazer consequências jurídicas futuras para negócios jurídicos hoje em vigor.
Conclusão
Diante das considerações formuladas acima e sem se desprezar a importância do Projeto que visa preservar relações jurídicas de direito privado durante a pandemia, nos parece imperioso que a delimitação do alcance da legislação aqui comentada seja analisada casuisticamente pelo Poder Judiciário diante das características específicas do negócio jurídico submetido ao seu crivo.
Caso contrário, a almejada segurança jurídica do próprio sistema e o equilíbrio das relações de natureza privada restarão ameaçados.
_____________________________________________________________________
1 AgRg no REsp 1.260.016/SP, relator ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, DJe de 5.12.11; EDcl no REsp 742.717/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 16.11.11;
AgRg no REsp 862.875/CE, relator ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe de 18.3.11;
AgInt nos EDcl nos EDcl no Resp 1.601.330/GO, Rel. ministra Maria Isabel Galloti , Quarta Turma, julgado em 17.08.17, DJe 22.08.17.
_____________________________________________________________________
*Juan Rodrigo Longo Ferreira Gómez é advogado no escritório Severo vaz Advogados.