A edição nº 4.822 de Migalhas, datada de 31 de março, publicou o PL 1.179/2020, relatado pelo senador Antonio Anastasia, que trata de tema de alto relevo e urgência – a regulação temporária das relações de direito privado, fortemente abaladas pela pandemia do novo coronavírus (Covid/19).
Tomo a liberdade de fazer algumas anotações esse PL, no intuito de colaborar para a melhoria dessa obra legislativa. Nesses tempos de crise, há que se desafiar um dos mandamentos ao advogado, de Eduardo Couture: “O tempo se vinga das coisas que se fazem sem a sua colaboração”.
O PL 1.179/2020, no importante campo das locações, traça algumas normas de conduta, quanto à possibilidade de o locatário postergar o pagamento dos alugueres e à vedação ao despejo liminar. No entanto, é omisso – ou ao menos obscuro – se as normas abrangem tão-só as locações residenciais, ou abarcam as não residenciais.
Ao que parece, as locações destinadas ao comércio (art. 51 da Lei 8.245/91) não foram objeto das preocupações do PL 1.179/2020, pois ao disciplinar (art. 10) a possibilidade de os locatários adiarem o pagamento dos alugueres, mencionou apenas os “residenciais”. Por exclusão, os inquilinos de imóveis comerciais – especialmente se localizados em “shopping centers” ficarão desprotegidos.
De fato: é cediço que nas locações em “shopping centers”, há prevalência do contrato (art. 54 da Lei 8.245/91). Portanto, se existir norma (redigida e aceita pelos interessados antes da pandemia) que preveja a obrigação de o locatário pagar o aluguel, seja qual for o ambiente de negócios existente, terá ele (parte quase sempre menos poderosa nessa relação) que honrar, com pontualidade, os pagamentos ao empreendedor, ainda que sua loja esteja fechada por ordem das autoridades sanitárias, ou mesmo pela ausência de clientela.
Usando-se expressão menos técnica, porém expressiva, o locatário terá que “fabricar dinheiro” para pagar ao empreendedor, sob pena de a locação ser rescindida por inadimplemento. Lança-se às costas do locatário não residencial um encargo pesadíssimo, enquanto que o empreendedor/locador fica livre dos efeitos econômico-financeiros do Covid/19. Não é preciso meditar-se muito, para chegar-se à conclusão de que essa situação é inconcebível. Não se pode voltar no tempo e aplicar-se de forma inflexível o entendimento d’antanho: “é justo porque é contratual”.
Escapa ao razoável que o PL 1.179/2020 não discipline, com clareza e precisão, a situação dos lojistas de “shopping”, ou “de rua”, ou dos prestadores de serviço em imóveis não residenciais (advogados, contabilistas, dentistas, fisioterapeutas etc.). Se no art. 10 desse PL 1.179/2020 se dá ao locatário residencial o direito de adiar o pagamento (mas não o de subtrair-se a ele), em razão da crise gerada pelo Covid/19, não é razoável que se dê ao inquilino comercial, industrial ou prestador de serviço, tratamento diverso e muito mais rigoroso. Cabe invocar a velha (mas valiosa) parêmia: onde há a mesma razão de fato, deve haver a mesma razão de direito” (ubi eadem ratio ibi eadem dispositio). Urge, assim, que o PL 1.179/2020 discipline esse relevante tema.
Em outros pontos, o PL 1.179/2020 carece de ajustes – o que afirmo, pedindo vênia ao Senador Anastasia e à valorosa equipe que o auxilia nessa premente tarefa, a quem sugiro nova redação aos seguintes artigos:
Art. 2º A suspensão da aplicação de normas referidas nesta Lei não implica sua revogação, derrogação ou alteração, na forma do art. 1°, § 2º da LINDB (decreto lei 4.657/1942).
Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos, suspendidos ou interrompidos, conforme o caso, a partir da vigência desta lei, até 30 de outubro de 2020, observando-se, porém, o termo inicial constante do art. 1º, parágrafo único.
§ 1° As hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional prevalecem sobre o impedimento, a interrupção ou a suspensão determinada no caput.
Art. 4º As pessoas jurídicas de direito privado, elencadas nos incisos I a IV do art. 44 do Código Civil, bem como clubes, associações recreativas e desportivas, e condomínios edilícios, deverão observar as restrições à realização de comemorações, reuniões, assembleias presenciais e aglomerações de pessoas durante a vigência desta Lei, cabendo-lhes comportar-se em conformidade com as determinações sanitárias das autoridades locais.
Art. 15. Em caráter emergencial, além dos poderes conferidos ao síndico pelo art. 1.348 do Código Civil, compete-lhe: I - ....
Parágrafo único. Não se aplicam as restrições e proibições contidas neste artigo para casos de atendimento médico, obras de natureza estrutural ou emergencial, ou a realização de quaisquer benfeitorias necessárias. Será considerada mau uso da propriedade a não adoção, por parte do condômino, das medidas sanitárias previstas pelas autoridades federais para o combate à pandemia do Covid/19, sujeitando-o à imposição de multa prevista na convenção e/ou regimento interno.
Art. 16. A assembleia condominial, inclusive para os fins dos arts. 1.349 e 1.350 do Código Civil, e a respectiva votação poderão ocorrer, em caráter emergencial, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino por esse meio será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial. O Síndico e o Secretário da assembleia providenciarão a lavratura de ata e remessa desta a todos os condôminos, pelos meios disponíveis, inclusive os eletrônicos (e-mail), WhatsApp, Telegram ou assemelhados.
Art. 19. As assembleias e reuniões referidas no art. 17 poder-se-ão realizar de forma remota, com a possibilidade de participação e votação virtual, por meio da rede mundial de computadores (internet).
§ 1º Caso admitido pelas autoridades sanitárias locais, em caráter alternativo, os atos referidos no caput poderão ocorrer presencialmente em locais diversos dos determinados pela legislação em vigor, desde que se dê ciência aos participantes e que tais atos ocorram no município da sede social da pessoa jurídica, mas sempre em um raio de 5 km, em relação ao local usualmente adotado para tais assembleias.
Art. 22. A prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes do Código de Processo Civil, deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações, observando-se as disposições protetivas do Estatuto da Criança e do Adolescente e do Estatuto do Idoso, quando for o caso.
Finalmente, cabe ao PL 1.179/2020 definir o que entende como “autoridades locais”. O Governador ou o Prefeito Municipal? Parece crucial que haja posicionamento sobre o tema, evitando-se os previsíveis conflitos entre as autoridades do Executivo Estadual e Municipal.
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*Francisco A. Fabiano Mendes é sócio do escritório Fabiano Mendes Advogados.