1) Introdução
O presente artigo pretende expor meditações realizadas acerca da aplicabilidade da prerrogativa do art. 4º-F, da lei 13.979, que confere a faculdade à administração de dispensar requisitos de habilitação para contratação administrativa em caso de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço.
Cuidar-se-á de examinar situações práticas, que possivelmente serão experimentadas ao longo da vigência do ato normativo, bem como a eventual utilização da prerrogativa – se bem-sucedida, é claro – em futuro regramento sobre licitações e contratos.
2) O âmbito de aplicação do art. 4º-F
Embora se trate de constatação lógica, cabe ressaltar que a dispensa dos requisitos de habilitação é hipótese excepcional – seja quando da realização de contratação direta, por dispensa, seja na hipótese de se lançar um edital para contratação mediante processo licitatório prévio.
Em outras palavras, cabe à administração estabelecer um planejamento para a contratação, ainda que de forma simplificada, como admite a lei 13.979 (art. 4º-E).
É dizer: deve haver identificação da efetiva necessidade da contratação, sua urgência, orçamento (como regra, à exceção da hipótese do art. 4º-E, §1º) e também os requisitos que se entendem por mínimos para executar a prestação (jurídicos, econômicos e técnicos), na linha da lei 8.666.
Será apenas por ocasião do contato com o particular, visualizando a situação concreta do mercado, que se poderá examinar a possibilidade de dispensar um ou mais dos requisitos estabelecidos para fins de habilitação.
3) A amplitude normativa: contratações por dispensa ou mediante pregão
A MP 926 incorporou à lei 13.979 a possibilidade de se realizar contratação mediante pregão simplificado – e, portanto, agregou ao diploma normativo situação distinta da contratação direta, única hipótese constante originalmente da lei.
A esse respeito, as considerações de Marçal Justen Filho são bastante claras e suficientes para esgotar o assunto – ao menos, para o que se propõe o presente artigo. Segundo o autor, a escolha pela contratação direta ou pelo pregão será discricionária, podendo a administração optar pela licitação quando isto não comprometer a finalidade da contratação, especialmente considerando a caracterização de urgência e demais circunstâncias excepcionais presumidamente registradas no curso da pandemia (art. 4º-B). Os exemplos por ele mencionados são elucidativos:
"Assim, por exemplo, a Administração poderá optar pelo pregão quando a contratação direta envolver dificuldades na obtenção de um preço justo. Em outros casos, pode existir uma pluralidade de fornecedores, todos potencialmente interessados em realizar o fornecimento, inexistindo um critério objetivo para escolher entre eles. Também é possível que a contratação apresente valor muito elevado, o que reduz a conveniência de escolhas fundadas em critérios de conveniência e oportunidade1".
4) Aspectos práticos inerentes à dispensa dos requisitos de habilitação
4.1) Contratação por dispensa: o momento de sua aferição
Como indicado, a administração não está dispensada de abrir mão da fase interna da contratação, ainda que a projeção exigida pela lei 13.979 seja simplificada. Este é o momento em que são concebidos os requisitos de habilitação.
Todavia, a considerar a peculiaridade da situação em tempos da covid-19, a particularidade e emergência da contratação por dispensa nesse cenário, não seria o caso de simplesmente abster-se de formular os requisitos desde o primeiro momento?
A administração muito provavelmente saberá quais serão as empresas aptas a lhe prover o fornecimento – por exemplo, inerente a um insumo imprescindível para fabricação de medicação para algum tratamento da covid-19 que se descubra eficaz. Nesse caso, antevendo alguma possível limitação da estrutura dessas empresas, seria de todo contraproducente e mesmo ilógico projetar como condição de habilitação requisito que não possa ser preenchido, para depois ter de justificar a contratação de modo formal.
A gravidade da situação da pandemia, que é inclusive o fundamento da edição de regramento excepcional dessa ordem, legitima tal providência e prioriza a contratação sem a tal exigência, como garantia do imperativo de preservação do interesse da coletividade na garantia de atendimento de saúde aos cidadãos.
4.2) Pregão simplificado: o uso da prerrogativa em caso de múltiplos concorrentes
Outro cenário de que se pode cogitar é a perspectiva de se atenuar o requisito de habilitação em favor de determinada empresa no âmbito de Pregão, quando existir no certame ao menos um concorrente.
No cenário cogitado, a administração entendeu viável e vantajoso se valer da previsão do art. 4º-G e realizar um pregão simplificado. Lançou o edital da licitação, contabilizou os prazos de publicação pela metade e ao menos duas empresas se credenciaram a participar. Esgotada a fase de lances, verificou-se que o vencedor, detentor do melhor preço, não preencheu um requisito de habilitação qualquer, que se insira dentre aqueles passíveis de flexibilização segundo o art. 4º-F.
Nessa hipótese, não seria viável simplesmente atenuar os requisitos em relação ao vencedor com esteio no art. 4º-F. Na medida em que as exigências foram efetivamente previstas no ato convocatório e que há mais de um licitante capaz de executar a prestação, cabe proceder ao exame da documentação inerente ao segundo colocado e assim por diante. Trata-se de conclusão inerente aos princípios da vinculação ao ato convocatório e da isonomia (art. 37, XXI, da CF, e art. 3º e 41, da lei 8.666).
Apenas na hipótese de nenhum dos licitantes atender a todos os requisitos do edital é que se vislumbra a possibilidade de aplicação do art. 4º-F. Nesse cenário, presente a hipótese de urgência (presumida, aliás, considerando a utilização da sistemática da lei 13.979), poder-se-ia proceder à contratação do primeiro colocado, elencando-se as justificativas pertinentes no processo administrativo, na linha do que prescreve o art. 4º-F.
Cabe ressalvar que a exigência de "restrição de fornecedores ou prestadores de serviço" não constituiria impedimento à adoção de tais providências na hipótese ora cogitada.
De um lado, porque "restrição" não significa necessariamente que a prestação esteja limitada a uma única empresa.
De outro lado, porque a interpretação sistemática do dispositivo com o próprio caput, que dispõe sobre contratações por dispensa, permite constatar que se deve priorizar o interesse coletivo consubstanciado na efetiva utilidade da contratação (emergencial), que pode se tornar ineficaz caso haja demora em sua consolidação. E a realização de um novo pregão ou mesmo o desencadeamento de providências para realizar uma contratação por dispensa poderiam prejudicar o atingimento de tal finalidade.
De mais a mais, a finalidade de uma contratação mais vantajosa derivada da realização do pregão potencialmente terá sido atingida.
Cabe ressalvar, por fim, que a análise em questão cinge-se à hipótese de se ter optado pelo lançamento de um processo licitatório simplificado para promover a contratação, o que pressupõe a existência de mais de uma empresa capaz de executar a prestação. Se a questão notoriamente não comportar uma variedade de prestadores, caberia promover desde logo a contratação por dispensa – e, nesse caso, seria viável dispensar desde logo os requisitos de habilitação em relação à empresa e/ou ao profissional, na linha do que foi exposto no tópico anterior.
5) Ainda os aspectos práticos a serem observados: a evolução normativa ao longo dos anos e a experiência a ser extraída da lei 13.979
A ideia original do regime de licitações previa uma fase de habilitação burocrática, que veio sendo atenuada ao longo dos anos com a edição de novos diplomas normativos.
A realidade trazida pela lei 13.979, ainda que num cenário de emergência derivada da pandemia da covid-19, pode representar avanços e constituir marco apto a alterar o procedimento das contratações públicas no Brasil.
Isso é especialmente relevante considerando que tramita no Congresso Nacional projeto de lei que busca instituir novo regime de licitações (PL 1.292-F/95). A experiência adquirida com a aplicação da lei 13.979 certamente será relevante para a definição de tais balizas e poderá sugerir alterações no regime proposto.
5.1) O regime da lei 8.666
O regime geral da lei 8.666 institui o modelo padrão do procedimento para processamento de licitações no país. O art. 43 apresenta o procedimento mínimo para a concorrência, que ainda poderá ser tornado mais detalhado, específico e complexo pelo edital, a depender do objeto licitado.
Em síntese, o procedimento deverá se desenvolver na seguinte ordem: (1) abertura dos envelopes de habilitação; (2) devolução dos envelopes das propostas fechados aos concorrentes inabilitados; (3) abertura dos envelopes das propostas dos concorrentes habilitados; (4) verificação da conformidade das propostas com o edital; (5) julgamento e classificação das propostas; e (6) homologação e adjudicação do objeto em favor do vencedor.
Trata-se de procedimento rígido, instituído com o fim de que não sejam examinadas as propostas apresentadas fora do prazo ou que não preencham as condições de habilitação. Nas palavras de Marçal Justen Filho, "o vício em uma fase anterior pode invalidar atos posteriores que, em si mesmo considerados, seriam totalmente válidos2".
Em suma, a fase de habilitação constitui etapa prévia imprescindível para que a proposta do licitante possa ser examinada.
5.2) A inovação trazida pelo pregão (lei 10.520)
Esse procedimento rígido e sequencial foi simplificado quando da instituição do regramento atinente ao Pregão (lei 10.520), modalidade inovadora em relação àquelas previstas pela lei 8.666 e que se aplica à "aquisição de bens e serviços comuns" (art. 1º). A referida modalidade instituiu a chamada inversão de fases no procedimento.
No pregão, o procedimento se inicia com a apresentação, abertura e verificação da conformidade das propostas comerciais com o instrumento convocatório (art. 4º, VII), segue com a realização etapa de lances (art. 4º, VIII) e, logo em seguida, encerra-se com o julgamento e classificação das propostas por meio do critério "menor preço" (art. 4º, X).
Apenas depois é que os documentos de habilitação do licitante que apresentou a melhor proposta (e somente deste) serão analisados. Caso o licitante classificado em primeiro lugar não atenda aos requisitos exigidos, passar-se-á à análise do preço e dos documentos de habilitação do licitante classificado na sequência, e assim por diante.
Tal simplificação e inversão de fases do procedimento está calcada em presunção, que deve ser confirmada na fase posterior aos lances (análise dos documentos de habilitação), decorrente da declaração dos licitantes indicando que "cumprem plenamente os requisitos de habilitação" (art. 4ª, VII).
Em suma, portanto, na sistemática simplificada da lei 10.520, analisam-se os documentos de habilitação apenas do licitante que apresentou a melhor proposta, a despeito de todos serem obrigados a apresentar tal documentação ao início – vale dizer, inclusive como requisito essencial à admissão da proposta de preços na fase de lances do pregão.
5.3) A previsão da lei 11.079 (lei das PPPs)
A tendência de diminuição da rigidez do procedimento previsto na lei 8.666 seguiu com a edição da lei 11.079, que instituiu as "normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada".
Ao passo em que a lei 8.666 previu como causa de desclassificação da proposta o não atendimento a uma das exigências do edital (art. 48, I), a lei 11.079 passou a admitir que o edital preveja "a possibilidade de saneamento de falhas, de complementação de insuficiências ou ainda de correções de caráter formal no curso do procedimento" (art. 12, IV).
Consagrou-se, com isso, o procedimento licitatório como instrumental, e não como um fim em si mesmo, buscando aproveitar os atos praticados sempre que possível, de modo a priorizar a aferição das efetivas condições dos licitantes e a vantajosidade da contratação.
5.4) A LC 123/06 (Estatuto das MEs e EPPs)
Nessa mesma linha, a LC 123, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, também introduziu no sistema licitatório autorização para saneamento de falhas na documentação de habilitação por parte das MEs e das EPPs.
Após prever que eventual "restrição" na documentação exigida para a "comprovação de regularidade fiscal e trabalhista" não se prestam a impedir as MEs e as EPPs de participarem de licitações (art. 43, caput), abriu-se a possibilidade de, no caso de serem declaradas vencedoras, as empresas integrantes de tais categorias promoverem a "regularização da documentação" (§1º, art. 43). Passou-se a admitir o pagamento ou parcelamento do débito, "para emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa".
Apenas no caso de não regularização é que as MEs e as EPPs perderão direito à contratação, hipótese em que será viável ao ente contratante convocar o licitante classificado na posição remanescente da ordem de classificação.
5.5) A edição da lei do RDC e da lei das Estatais
A lei 12.462, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, e a lei 13.303, que concebeu o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais, também seguiram a tendência de simplificação e atenuação do rigor do procedimento licitatório.
Ambas mantiveram a inversão de fases como padrão, iniciando-se o procedimento licitatório (como regra) pela análise das propostas de preço (art. 12, III a V, da lei 12.462 e art. 51, III a VII, da lei 13.303), passando-se à análise dos documentos de habilitação apenas na sequência.
Nessa mesma linha, o decreto 7.581, que regulamentou a lei 12.462, passou a autorizar a comissão de licitação "adotar medidas de saneamento", com o fim de corrigir impropriedades na documentação de habilitação ou instruir o processo, "desde que não seja alterada a substância da proposta" (art. 7º, §2º).
5.6) O entendimento consagrado pela jurisprudência
Tais previsões demonstram a tendência moderna de se mitigar o rigor formal do procedimento geral previsto na lei 8.666, especialmente no que se refere a relegar para fase subsequente a análise da habilitação do licitante classificado em primeiro lugar.
Na prática, isso propiciou a participação de uma maior quantidade de interessados nos certames licitatórios, o que obviamente contribui para a busca da melhor proposta.
A consagração dessas orientações nos diplomas normativos acima mencionados constituiu inclusive reflexo de entendimento que vinha sendo aplicado pela jurisprudência dos Tribunais pátrios. A ala majoritária dos julgados já vinha (vem) reconhecendo a necessidade de se desconsiderar os vícios irrelevantes e admitir o saneamento de defeitos, desde que não representativos de violação à CF e aos preceitos fundamentais do procedimento licitatório.
De acordo com o STJ (e também o STF, TCU e outros Tribunais), "Não se deve exigir excesso de formalidades capazes de afastar a real finalidade da licitação, ou seja, a escolha da melhor proposta para a Administração em prol dos administrados" (REsp 1.190.793/SC, Min. Rel. CASTRO MEIRA, DJe 08.09.2010).
5.7) A simplificação geral trazida pela lei 13.979
Essa concepção foi adotada pela lei 13.979, a propósito da pandemia da covid-19, com o fim de viabilizar o atingimento das necessidades prementes da população.
De modo a prestigiar o atingimento da finalidade precípua de se obter contratações vantajosas – e que, na prática, revelem-se efetivas ao fim a que se propõe –, o art. 4º-F da lei 13.979 foi além. Autorizou a dispensa de requisitos de habilitação, na "hipótese de haver restrição de fornecedores ou prestadores de serviço".
Nesse caso, diante da necessidade premente do serviço ou da aquisição pela administração para promover a consecução dos direitos fundamentais dos cidadãos (especialmente saúde e dignidade da pessoa humana, in casu), justifica-se a mitigação das exigências de habilitação. De nada adiantaria exigir, por exemplo, comprovação de regularidade fiscal pelo fornecedor do serviço ou insumo e, diante da inexistência de outras opções viáveis, não obter determinada prestação potencialmente necessária ao controle da pandemia.
Evidentemente, não se está a propor (e isto nem seria cabível) o fim da fase de habilitação como etapa essencial de procedimentos destinados a contratações públicas. O que se está a fazer é um exame da novel prerrogativa, visualizando-a inclusive em termos comparativos com a evolução normativa e jurisprudencial registrada ao longo do tempo. Na medida em que a concepção dos requisitos de habilitação deriva de uma análise discricionária da administração, como forma de garantir o mínimo indispensável à garantia da execução do futuro contrato, cabe meditar (caso a caso) sobre este mínimo.
Não se trata de atribuir à administração uma prerrogativa irrestrita para dispensar neste ou noutro caso o cumprimento de determinados requisitos previstos em edital, já que isto seria potencialmente nocivo à própria ideia de isonomia e abriria a porta para o favorecimento de determinadas empresas. A ideia é reduzir a burocracia e estabelecer alternativas para o tal "mínimo", quando não atingido, de forma a otimizar o procedimento de contratações.
6) Conclusão
Como se vê, a regra do art. 4º-F da lei 13.979 trouxe inovação destinada a assegurar que se concretizem as contratações necessárias ao controle da pandemia da covid-19 – na linha do que fazem também vários outros dispositivos constantes do ato normativo em questão.
É necessário ficar atento para os resultados da aplicação de tal previsão na prática, especialmente no que se refere à obtenção de contratações mais vantajosas e ampliação da competitividade em contratações estratégicas, a fim de examinar a viabilidade de se admitir no futuro alguma possível mitigação da fase de habilitação nessa mesma linha. Trata-se de observação que será importante inclusive para a tramitação do projeto de lei de novo regramento geral de licitações do país, em trâmite no Congresso Nacional.
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1 JUSTEN FILHO, Marçal. Um novo modelo de licitações e contratações administrativas?, Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, n.º 157, março de 2020, disponível em www.justen.com.br/informativo, acesso em 30.3.2020.
2 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 16ª ed. São Paulo: RT, 2014, p. 790
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*William Romero é advogado no escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini Advogados Associados.
*Guilherme A. Vezaro Eiras é advogado no escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini Advogados Associados.