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Impactos do novo coronavírus (covid-19): o que ocorrerá com as empresas que estão sob regime de recuperação judicial, em pleno cumprimento de seus planos?

É importante que se permita a suspensão do cumprimento dos planos de recuperação judicial, a fim de que o caixa das empresas seja preservado nesse momento de crise extrema.

26/3/2020

Não há dúvidas: o Brasil está diante de uma crise sem precedentes. Como tem sido muito bem observado, os efeitos do coronavírus (covid-19) terão impactos devastadores, para muito além da saúde pública, no desenvolvimento socioeconômico do país dos próximos anos.

Nesse contexto, é mais do que necessário garantir o devido auxílio a quem suportará esses efeitos nefastos. Trabalhadores terão seus contratos de trabalho rescindidos e precisam de proteção. Pequenos e médios empresários, bem como empresários individuais serão obrigados a interromper a prestação de serviços e o fornecimento de produtos, de modo que precisarão renegociar seus financiamentos de capital de giro, por exemplo. Grandes empresas serão afetadas pela volatilidade da demanda, impactos na cadeia produtiva e na indisponibilidade de financiamento, em um cenário de enorme incerteza mesmo após a esperada superação da pandemia.

Muito tem se falado a respeito de medidas que devem ser adotadas para mitigar os impactos econômicos da pandemia sobre as empresas, que já enfrentam as dificuldades decorrentes dessa pandemia nefasta. Até o momento, no entanto, nada foi comentado a respeito das empresas em recuperação judicial.

Entre as empresas que estão em recuperação judicial há, ainda, uma parcela de empresas em situação ainda mais delicada, quais sejam, as empresas em recuperação judicial que estão em pleno cumprimento de seus planos. Objetivamente: é importante que se permita a suspensão do cumprimento dos planos de recuperação judicial, a fim de que o caixa das empresas seja preservado nesse momento de crise extrema.

Ao contrário de todas as empresas brasileiras, as empresas em recuperação judicial cujo cumprimento de seus planos esteja em curso não poderão gozar das medidas de socorro empresarial que vem sendo divulgadas e outras que venham a ser disponibilizadas. Essas empresas não poderão simplesmente renegociar suas dívidas diretamente com parte dos credores, pois essa medida infringiria a paridade entre credores. O socorro mediante instrumentos de insolvência, por óbvio, tem suas portas fechadas a essas empresas. E o inadimplemento, no caso, vai além dos contratos: caso a empresa não cumpra o seu plano de recuperação judicial, o juízo decretará a sua falência com base no rigor imposto pelo parágrafo 1º, do artigo 61 e inciso IV, do artigo 73, ambos da lei 11.101/05.

Então, o que essa empresa poderia fazer diante desse cenário?

Logicamente, espera-se do Poder Judiciário a garantia do bom curso da recuperação judicial, em especial das empresas que estejam nessa fase de cumprimento de seus planos. A esse respeito, a resposta do juízo competente poderá seguir alguns caminhos, a pedido justificado da empresa em recuperação judicial. A depender da crise no caso concreto e da justificativa apresentada, como se adiantou, a suspensão do cumprimento do plano será a medida mais adequada.

Parece lógico que a crise representa efetivo motivo para readequação das matrizes de risco que lastreiam os preços de um contrato, como os Tribunais admitiram por ocasião das crises enfrentadas em 2008 e, antes, na crise cambial de 1999. Nessa linha, a alteração das premissas econômico financeiras, conservadoras e cuidadosas, que são base de planos de recuperação judicial bem elaborados, podem ser reajustadas.

Nesse caso, na linha de diversos precedentes existentes, antes que se ocorra um evento de inadimplemento do plano, a empresa poderá buscar a modificação da proposta de pagamentos por meio da realização de uma nova assembleia de credores, que deverão aprovar essa nova proposta (alínea “a”, inciso I, do art. 35 da lei 11.101/05). Se for o caso de apresentação pelas recuperandas de um novo plano, modificando o anterior, o cenário parece indicar que o Juízo poderá determinar a suspensão de ações e execuções, assim como feito ao início do processo, enquanto o novo plano não for votado. Ao que parece, o problema estaria resolvido.

Note-se, no entanto, que a crise ocasionada pelo novo coronavírus (covid-19) chegou ou chegará para todos. Assim, o mesmo cenário de crise que justificaria a do plano possivelmente servirá de justificativa para o credor exigir condições de pagamento mais benéficas do que as anteriormente aprovadas. O credor em crise não terá necessariamente um incentivo para aprovar o novo plano. No caso, a empresa em recuperação judicial não terá condições para oferecer melhor proposta, motivo pelo qual estará igualmente diante de cenário possível de decretação de falência, agora pela impossibilidade de aprovação das modificações em assembleia. A clássica sinuca de bico surgirá, no caso, em detrimento da empresa que era cumpridora exemplar do plano de recuperação judicial antes dos efeitos perversos da pandemia.

É necessário que se permita, mediante justificativa da empresa e por meio de decisão judicial, a suspensão imediata do cumprimento do plano, impondo-se um período de carência de forma compulsória aos credores.

Não se desconhece que os credores devem aprovar uma nova proposta de pagamento que eventualmente venha a ser oferecida pelas empresas em recuperação judicial, nos casos em que a empresa em recuperação judicial busque a modificação da proposta de pagamento, como visto acima. Se a hipótese, no entanto, for de mera suspensão do cumprimento do plano para que, tempos depois, o mesmo plano volte a ser cumprido pela empresa, a medida em comento não encontraria óbice na lei 11.101/05.

A esse respeito, não apenas a proposta passa longe de infringir a lei 11.101/05, como encontra respaldo no Ordenamento Jurídico vigente.

Considerando que a pandemia é exemplo claro de caso de “força maior”, a legislação vigente já prevê que o devedor não será responsabilizado por prejuízos dela decorrentes, como a decretação de falência por descumprimento de um plano de recuperação judicial que se tornou de cumprimento impossível (art. 393 do CC). Por sua vez, o art. 317 do CC  prevê que o juiz poderá corrigir, a pedido da parte, o “valor da prestação devida” e “o momento de sua execução” quando “por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução”. Nesse sentido, há um caso em que o Juízo competente permitiu a suspensão do cumprimento do plano (processo nº 1006707-50.2016.8.26.0278, 1ª vara Cível de Itaquaquecetuba/SP). Nesse caso, inclusive, admitiu-se proposta da recuperada, que se comprometeu a pagar 10% do saldo devedor dos credores da Classe I.

Em todos os casos, eventual suspensão, do cumprimento do plano ou das ações e execuções, deverá observar um período minimamente necessário para que haja maior clareza sobre as consequências da pandemia (o Governo fala em retorno a alguma normalidade apenas em setembro), o que servirá à redução das assimetrias que levariam os credores a uma provável rejeição de proposta de modificação do plano.

A medida se dará em favor não apenas da empresa que busca o seu soerguimento, mas de toda a coletividade de credores. Afinal, a quem interessa a manutenção incólume de um plano de recuperação judicial cujas obrigações se tornaram de cumprimento impossível?

São esperadas, ainda, medidas específicas para as em presas em recuperação judicial, por iniciativa dos Poderes Executivo e Legislativo.

E não é apenas o Poder Judiciário que deverá dar uma resposta efetiva ao caso. É nesse momento que devem ser propostas medidas específicas para as empresas em recuperação judicial pelos Poderes Executivo e Legislativo.

São medidas essenciais, por exemplo, a suspensão da cobrança de tributos e o oferecimento de parcelamento fiscal especial – com prazo maior do que o tímido parcelamento em 84 meses vigente –, a disponibilização de linhas de financiamento específicas para essas empresas e até mesmo alterações à legislação de insolvência (lei 11.101/05) que confiram, acima de tudo, tempo à empresa em crise. O debate sobre as medidas deve começar imediatamente. A esse respeito, a experiência internacional parece indicar boas medidas.

No dia 22 de março, por exemplo, o governo australiano anunciou alterações temporárias em suas leis de insolvência e de empresas1. As mudanças dizem respeito, especialmente, à mitigação de riscos dos administradores em relação a alienações de ativos e celebração de contratos em período que poderia ser considerado suspeito considerando-se o quadro de insolvência iminente, majoração em quatro vezes do valor mínimo que autoriza credores a requererem a falência de uma empresa e o aumento do prazo de proteção para devedores após manifestação formal de intenção de apresentação de pedido de reestruturação, de 21 dias para 6 meses.

Na Itália, País atingido de forma avassaladora pela pandemia, o governo2 anunciou alterações significativas em seus mecanismos de prevenção de crise empresarial e no procedimento de concordata preventiva, ambos previstos no Codice della crisi d'impresa e dell’insolvenza, por meio do Decreto Legge n. 11/20. O prazo obrigatório para empresas reportarem a situação de crise (procedimento di alerta) e apresentarem medidas para lidar com o fato foi adiado para 15 de fevereiro de 2021, tendo-se em conta previsões de retorno a alguma normalidade naquele País.

O Governo espanhol promulgou o Real Decreto-ley 8/203, que contém regras para mitigação do impacto econômico e social causado pelo novo coronavírus (covid-19). O artigo 43 do Decreto prevê que “enquanto o estado de emergência estiver em vigor, o devedor que estiver em estado de insolvência não terá a obrigação de solicitar a abertura de um processo de insolvência” (tradução livre). Com o afastamento temporário da obrigação de reportar o estado de crise espera-se que a administração possa voltar seu foco ao desenvolvimento de suas atividades e à retomada do crescimento. Os pedidos de salvaguarda também não poderão ser recebidos pelos Juízes durante o estado de emergência e em até 2 meses após o seu encerramento oficial. Diante do cenário de incertezas, credores e devedores deverão aguardar.

A França promulgou a lei 290/20 por meio da qual autorizou adaptações no Livro VI do Código de Comércio (parte que trata da insolvência)4, embora não tenha divulgado medidas específicas. Por sua vez, Hong Kong, que não tem uma legislação própria sobre insolvência, estuda a adoção de procedimento similar ao Chapter 11 Norte-Americano para lidar com a previsão de aumento substancial de empresas em situação de crise (o que o território autônomo chinês discute, inclusive, desde a crise gerada pela SARS, em meados de 2003)5.

O cenário justifica, portanto, até mesmo a modificação da legislação de insolvência, como já vem ocorrendo em Países atingidos pela pandemia.

O presente artigo de opinião não tem a pretensão de esgotar o tema, logicamente. Nesse momento de combate intenso aos efeitos da crise gerada pelo novo coronavírus (covid-19), procura-se fomentar um necessário debate sobre medidas efetivas que deverão ser adotadas em prol de parcela substancial de empresas que se encontram em recuperação judicial e que estavam cumprindo adequadamente seus planos antes dessa crise sem precedentes.

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1 - “Temporary relief for financially distressed businesses”. Department of Industry, Innovation and Science. Australian Government. Disponível em: <https://www.business.gov.au/Risk-management/Emergency-management/Coronavirus-information-and-support-for-business/Temporary-relief-for-financially-distressed-businesses> Acesso em: 24.03.2020.

2 - “Coronavirus, Misure a sostegno di famiglie lavoratori e imprese”. Presidenza del Consiglio dei Ministri. Governo Italiano. Disponível em: <https://www.governo.it/it/approfondimento/coronavirus-il-decreto-legge-2-marzo-2020/14225>  Acesso em: 24.03.2020.

3 - “Real Decreto-ley 8/2020, de 17 de marzo, de medidas urgentes extraordinarias para hacer frente al impacto económico y social del COVID-19”. Agencia Estatal Boletín Oficial del Estado. Ministerio de La Presidencia, Relaciones com Las Cortes y Memoria Democratica. Gobierno de Espana. Disponível em: < https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2020-3824> Acesso em: 24.03.2020.

4 -  “LOI n° 2020-290 du 23 mars 2020 d'urgence pour faire face à l'épidémie de covid-19”. Legifrance. Le Service Public de La Diffusion Du Droit. Disponível aqui. Acesso em: 24.03.2020.

5 - “Hong Kong drawing up plans for Chapter 11 style bankruptcy system”. The Business Time. Disponível em:< https://www.businesstimes.com.sg/banking-finance/hong-kong-drawing-up-plans-for-chapter-11-style-bankruptcy-system > Acesso em: 24.03.2020.

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*Mauro Teixeira de Faria é advogado sócio do escritório Galdino e Coelho Advogados, Doutorando e Mestre em Direito, na linha de pesquisa “Empresas e Atividades Econômicas” do Programa de Pós Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Membro da Comissão Especial de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência (CRJEF) da OAB/RJ. Autor do livro “Recuperação Judicial de Empresas e a Lei Anticorrupção”.

 

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