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Concorrência desleal por negligência

A lealdade no exercício da livre concorrência deve ser certificada por quem domina os conceitos de direito concorrencial e se familiariza com a interpretação dos tribunais sobre as condutas comerciais, assim se evita ou se mitiga o risco da estratégia comercial trazer prejuízos ao invés de lucro.

24/3/2020

A livre concorrência é fator de crescimento da economia de mercado e fundamento da ordem econômica e financeira do país. Não é por menos que foi elevada ao status de princípio constitucional, conforme art. 170, IV, da Constituição Federal

Felizmente, está bem difundida no âmbito empresarial a ideia de que liberdade de concorrência não se confunde com inexistência de limites, razão pela qual há que se respeitar, dentro e fora do território nacional, o dever de lealdade ao se disputar a clientela.

O artigo 195 da lei 9.276/96 tipifica como crime a prática de concorrência desleal e lista, sem exaurir, as condutas que caracterizam o ilícito. Assim, comete tal crime, aquele que, entre outras condutas: “emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem” (inciso III).

O ponto que gostaríamos de abordar é a expressão “emprega meio”. 

Isto porque, embora se saiba que a prática de concorrência desleal é passível de punição com detenção na esfera penal, além de severas multas e indenizações na esfera cível, o que muitos desconhecem ou se esquecem é que, para que se configure a concorrência desleal, não é necessário que o agente alcance o resultado final, mas basta o emprego de meios inadequados de concorrência para que a pessoa física ou jurídica seja punida pela conduta. 

Citamos como exemplo concreto o caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (apelação nº 1000915-55.2015.8.26.0180), em que a Corte condenou por concorrência desleal uma empresa fornecedora de gás pressurizado pela simples tentativa de comprar linha telefônica formada por uma sequência de dígitos quase idêntica à de seu principal concorrente. 

Ao condenar a companhia a indenizar sua concorrente direta, a turma julgadora fundamentou que “o esforço na obtenção de linha tão similar à da autora evidencia a intenção do réu de obter alguma vantagem, aproveitando-se do perfil homogêneo da clientela e de uma possível confusão, o que caracteriza a prática da concorrência desleal”.

O exemplo pode parecer trivial, mas a intenção é exatamente ressaltar que a deslealdade de concorrência pode estar presente em atos simples do cotidiano empresarial, podendo, inclusive, ser cometida por negligência.  

Perceba que se fala em “esforço na obtenção”, “intenção de obter vantagem” e “possível confusão” a caracterizar a concorrência desleal. 

Veja que a tentativa de compra de uma linha telefônica, por si só, não é ilícita, e repare também que a empresa infratora não chegou a obter vantagem pela conduta empregada, mas bastou o emprego do meio desleal para a condenação.

Confirma-se, portanto, que os conceitos de responsabilidade civil e de ilicitude, universalmente conhecidos e aceitos pelos agentes de mercado, sofrem substancial alteração quando se trata de concorrência, já que, dentro deste contexto, o dever de indenizar não depende da efetivação do dano, assim como condutas consideradas lícitas em outra conjuntura, podem ser tidas como ilícitas, como no exemplo mencionado. 

Portanto, além de rigor ético e moral, o conhecimento aprofundado sobre práticas de mercado e direito concorrencial é fundamental, seja para prevenir ou para identificar e reprimir a prática da concorrência desleal.

Daí vem também a importância do alinhamento efetivo e constante entre a diretoria comercial e a jurídica, basta o descuido (negligência) quanto ao uso de meios concorrenciais juridicamente inadequados para que se penalize a empresa que os emprega, tanto na esfera civil quanto na criminal.

Lembramos, por fim, que a lealdade no exercício da livre concorrência deve ser certificada por quem domina os conceitos de direito concorrencial e se familiariza com a interpretação dos tribunais sobre as condutas comerciais, assim se evita ou se mitiga o risco da estratégia comercial trazer prejuízos ao invés de lucro.

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*Elisa Junqueira Figueiredo, sócia fundadora do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados, responsável pelas áreas de Direito privado com foco em contratos, contencioso cível, arbitragem, imobiliário, família e sucessões.

*Renan Freitas Lopes, advogado do Fernandes, Figueiredo, Françoso e Petros Advogados, atua nas áreas de Contencioso Cível e Imobiliário.

 

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