Em um emblemático domingo, já no final da noite, a comunidade jurídica trabalhista foi, enfim, apresentada à Medida Provisória 927, publicada no dia 22 de março de 2020 como uma das respostas institucionais à crise desencadeada pela propagação do COVID-19 em território nacional.
No epicentro das perturbações socioeconômicas resultantes da pandemia, patrões e empregados aguardavam sequiosos alguma manifestação oficial do Estado Brasileiro quanto às dúvidas que pairavam em torno de diversos temas trabalhistas, sobretudo aqueles relativos aos efeitos da paralisação da atividade econômica em diversos segmentos.
O que se viu foi o fruto de um consenso construído de maneira apressada, como só acontece em cenários de grave comoção social.
De um lado, a MP trouxe alguma luz e amparo jurídico no tocante à possibilidade de se mitigar o rigor de diversas regras que poderiam atuar como obstáculos para se imprimir alguma flexibilidade a institutos trabalhistas que poderiam amenizar os duros impactos da retração abrupta das atividades laborais, por razões de ordem pública.
Foi o que se deu quanto ao teletrabalho, especialmente útil ante o isolamento social imposto e para cuja implantação passou-se a exigir apenas uma notificação prévia de 48 horas (art. 4º, § 2º, da MP 927/20).
Também foi o quanto se verificou relativamente à antecipação de férias individuais e à concessão de férias coletivas, em relação às quais atuava como dificultador o prévio aviso de 30 e 15 dias, respectivamente, exigidos pela CLT (arts. 135 e 139, § 2º, da CLT). Tais prazos foram reduzidos drasticamente para 48 horas, em ambos os casos (arts. 6º e 11 da MP 927/20).
O diploma elasteceu, igualmente, o prazo para pagamento da remuneração das férias até o quinto dia útil do mês subsequente ao do início de sua fruição (art. 9º da MP 927/20), assim como do terço constitucional, o qual poderá ser pago em conjunto com 13º salário (art. 8º da MP 927/20).
Na mesma direção flexibilizante, institui-se a possibilidade de aproveitamento e antecipação dos feriados, mediante simples cientificação no prazo de 48 horas, com ressalva para os de natureza religiosa, quanto aos quais se requer concordância do trabalhador (art. 13 da MP 927/20).
Ainda nessa esteira foi dilatado o prazo para compensação de jornada em banco de horas para 18 meses, prescindindo-se da intervenção sindical para esse fim (art. 14 da MP 927/20).
A suspensão de exames médicos ocupacionais, com ressalva do demissional (art. 15 da MP 927/20) e de treinamentos periódicos previstos nas NRs (art. 16 da MP 927/20), ao lado do diferimento do recolhimento do FGTS (art. 19 da MP 927/20), figuram como últimos exemplos da maleabilidade normativa empreendida.
De outro lado, a Medida Provisória ofereceu lastro jurídico para a dilatação da jornada dos heroicos profissionais de saúdes mesmo em atividades insalubres e escalas 12X36 (art. 26 da MP 927/20), autorizando a compensação das horas extras no prazo de 18 meses (art. 27 da MP 927/20).
Afastou, ainda, o reconhecimento do contágio pelo vírus (COVID-19) como doença ocupacional, a não ser que esteja comprovado o nexo de causalidade entre a enfermidade e o desenvolvimento da atividade laboral (art. 27 da MP 927/20).
Garantiu a sobrevida de instrumentos coletivos com prazo de vigência expirado ou em vias de expirar, a critério do empregador e por um lapso de até 90 dias (art. 30 da MP 927/20).
A par de outras medidas de menor relevância, fixou, enfim, como diretriz para a fiscalização do trabalho o papel orientador, com ressalva para casos de maior gravidade, como acidentes fatais e exploração de trabalho análogo ao de escravo (art. 30 da MP 927/20).
Todas as referidas medidas foram recebidas com algum entusiasmo por empresários e gestores de empresas, embora tenham atraído críticas formuladas por parte dos magistrados trabalhistas¹ e procuradores do trabalho².
Entretanto, ao disciplinar aquela que talvez pudesse ser a principal solução para a interrupção forçada das atividades empresariais, a MP findou por frustrar a expectativa tanto de empregados como de empregadores.
Com efeito, o "direcionamento do trabalhador para qualificação profissional" passou a contar com prazo de até 4 meses (antes era de 2 a 5 meses), podendo ser implementado por simples acordo individual, o que outrora encontrava-se condicionado à negociação coletiva (art. 18 da MP 927/20).
Ao impor ao empregador o ônus de eventual pagamento de "ajuda compensatória" durante o período da suspensão contratual, desonerou completamente o Estado de sua cota-parte, tornando insustentável o uso de tal mecanismo.
Não por acaso, antes de se completarem 24 horas da publicação da MP 927/20, o preceito veio a ser revogado por outra medida provisória (MP 928/20, art. 2º), diante da ingente pressão política que se exerceu contra os termos da resposta legiferante.
No enfrentamento desse que se tornou o maior desafio global das últimas décadas, as medidas mais brandas mostraram-se ineficientes para a contenção do crescimento exponencial do contágio e seus trágicos consectários, consoante se verificou na lamentável experiência italiana.
À semelhança do que se passa com as estratégias sanitárias, as linhas de ação quanto à crise no mercado de trabalho devem passar por uma intervenção firme e ágil, oferecendo rápido socorro a trabalhadores e patrões, antes que se alcance um “ponto de não-retorno” e postos de trabalho sejam extintos de modo mais definitivo.
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1 A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) divulgou nota com teor fortemente crítico – acesso em 23/3/20. Cumpre notar que a Associação Brasileiro de Magistrados do Trabalho (ABMT) posicionou-se em sentido mais neutro quanto às novas disposições normativas, afirmando o compromisso de uma análise técnica e imparcial dos eventuais conflitos surgidos na aplicação da MP 927/20 – acesso em 23/3/20.
2 A nota da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT) foi especialmente dura quanto à Medida Provisória, ao afirmar que o diploma "submete o trabalhador à caridade empresarial" – acesso em 23/03/20.
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*Gáudio Ribeiro de Paula é sócio-fundador da Maschietto & De Paula Sociedade de Advogados e vice-presidente da RedeJur - Associação de Escritórios de Advocacia Empresarial.