O DIP Financing constitui uma modalidade de financiamento voltado à empresas que estão sob os efeitos de um processo de recuperação judicial1. O objetivo primordial é destinar recursos para que a companhia continue gerando caixa para manter sua operação, bem como propiciar o pagamento de todos os demais credores, assegurando assim as condições necessárias para o cumprimento do plano de recuperação2.
Os credores que financiam tal operação, encontram-se expostos a um risco maior do que os demais credores e, portanto, possuem determinadas vantagens em relação aos demais, como por exemplo, o recebimento acelerado do seu crédito.
De acordo com a Lei de Recuperação Judicial e Falências em vigor (lei 11.101/05), em razão do disposto em seu artigo 66, uma vez instaurada a Recuperação Judicial, as propostas de financiamento e oneração de bens da recuperanda, dependem de aprovação do juiz da Recuperação Judicial, após ouvido o Comitê de Credores, e na ausência deste, o Administrador Judicial.
Ora, em muitas ocasiões, antes mesmo da realização de Assembleia Geral de Credores, seria ideal que a empresa em recuperação judicial, pudesse obter, logo nos primeiros meses do processo, um financiamento em seu favor.
Isso porque, a entrada de dinheiro novo nessa fase inicial daria um maior fôlego para a empresa devedora equacionar seus gastos e viabilizar uma melhor forma de negociação junto aos credores, como por exemplo, um deságio menor.
O alto deságio está, normalmente, condicionado a atual realidade da empresa em crise, ou seja, para aquele atual cenário, ela tem a condição de pagar somente determinado percentual do crédito, sem comprometer as suas atividades empresariais e permanece viável economicamente.
Fato é que, a importância de conceder um financiamento para empresas em crise e em recuperação judicial não se limita a parte negocial do processo de recuperação judicial, mas vai além, já que viabilizará ainda mais a manutenção da empresa no mercado, gerando todos os benefícios sociais e econômicos decorrentes de sua atividade.
Inclusive, se a operação de DIP já estivesse incorporada na recuperação judicial como um mecanismo de soerguimento das empresas, uma crise pandêmica como a que estamos enfrentando atualmente, ocasionada pelo coronavírus, afetaria essas empresas que estão se reestruturando em um grau muito menor.
Embora a atual legislação seja silente neste aspecto, a possibilidade do financiamento na fase inicial do processo de recuperação judicial é prevista na maioria dos países (Estados Unidos e Canadá, por exemplo) que disciplinaram a recuperação das empresas em crise, como valioso instrumento para alcançar o escopo maior de preservação da empresa3.
Fato é que, a ausência de previsão expressa acerca do financiamento em comento na recuperação judicial, a lei 11.101/05 e alguns aspectos extrajudiciais geram inúmeros entraves obstando a implementação desse financiamento.
O primeiro entrave enfrentado pelo investidor é a ausência de transparência nas informações antes e durante o processo recuperacional. Muitas empresas, independente do porte, apresentam problemas sérios de confiabilidade e abertura de informações, o que dificulta a geração de uma relação sólida entre a empresa em crise e o investidor.
O segundo entrave é a permanência da gestão e do time que “criou a crise” em geral na empresa.
Exatamente porque os gestores e o time, durante a crise continuam praticando os mesmos atos, prestando os mesmos serviços e vendendo os mesmos produtos do mesmo modo que direcionou a empresa a crise. Ou seja, praticam os mesmos atos, buscando resultados diferentes.
Essa política imutável não gera credibilidade para viabilizar o DIP, principalmente, quando a empresa está em recuperação judicial.
O terceiro entrave é a ausência de padronização dos contratos, o que dificulta a análise do DIP, sendo imprescindível que o investidor realize uma due diligence de todos os contratos atrelados ao passivo da empresa em crise, o que poderá gerar uma morosidade significativa.
O quarto entrave é o desconhecimento dos fornecedores quanto a operação do DIP, dificultando o aceite entre os credores e a consequência reestruturação da empresa em crise.
Em que pese a lei 11.101/05 não sanar esses pontos, atualmente, um caso emblemático destacou-se pelo fato de prever em seu plano de recuperação judicial a operação de DIP Financing. O Grupo Aralco4 não só empreendeu nessa nova modalidade, como o plano de recuperação judicial foi amplamente aprovada em assembleia geral de credores, autorizando a empresa a captar financiamento por meio da modalidade DIP.
Neste caso, os credores autorizaram o financiamento de US$ 42 milhões, e é um dos primeiros da modalidade aprovados no Brasil.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o Grupo Renova5 apresentou no fim de dezembro de 2019 seu plano de recuperação judicial prevendo empréstimos DIP, objetivando reforçar seu caixa e financiar as suas operações. Até o momento, não houve a realização de assembleia geral de credores para deliberar sobre o tema.
Nesse diapasão, visando dar maior clareza e segurança jurídica ao certame, o PL 6.229/2005, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados, prevê expressamente em seu artigo 69-C, a possibilidade do financiador, mediante autorização judicial, adiantar até 10% (dez por cento) do valor do financiamento à recuperanda.
O artigo 69-B do referido PL, visa coibir uma das principais insurgências dos credores/financiadores que participam de uma recuperação judicial em que a devedora visa aderir ao DIP Financing: a ausência de publicidade e transparência dos termos e condições propostos pelos financiadores referentes às garantias constituídas nos contratos de financiamento.
Isto porque, o supramencionado dispositivo inserido no Projeto de Lei estabelece que a recuperanda poderá apresentar nos autos, até a votação do plano, a proposta de financiamento oferecida pelos investidores detalhando uma série de requisitos minuciosos que devem ser revelados pela devedora antes mesmo da convocação da Assembleia Geral de Credores.
Além da publicidade, nos termos do parágrafo terceiro do artigo 69-B, os credores contrários à proposta de financiamento poderão manifestar sua discordância ao administrador judicial.
Um outro risco que o Projeto objetivou impedir, é o que está disposto no parágrafo único do artigo 69-C, que assevera que as garantias e as preferências serão conservadas em favor dos financiadores, antes da data da sentença que convolar a recuperação em falência.
Em suma, a positivação do DIP Financing por meio do PL 6.229/2005 tem por objetivo estimular a reestruturação da empresa em crise financeira dando maior clareza, transparência, publicidade e segurança jurídica a esta categoria de financiamento e estimular a reestruturação empresarial, reduzindo a dependência da concessão de crédito por parte das instituições financeiras.
Para que o cenário de soerguimento da empresa seja viável e ela volte para aos índices positivos de crescimento no mercado, necessário se faz que seja direcionado os esforços da reestruturação não só para a reestruturação do pilar financeiro, mas também dos pilares internos da empresa.
Ou seja, a reestruturação do pilar financeiro visa a quitação do alto passivo e a renegociação dos créditos pela via judicial, entretanto, a reestruturação interna da empresa e quais os meios de recuperação que de fato ela utilizará para gerar novos faturamentos queda-se no esquecimento.
A necessidade de dinheiro novo para viabilizar com mais celeridade o projeto de reestruturação da empresa é indiscutível, entretanto, pela falta de transparência e pela insegurança jurídica que nosso ordenamento jurídico apresenta, acompanhada da má fama da recuperação judicial (que vem sendo mitigada dia após dia), os investidores se distanciam dessa possibilidade de fomentar empresas em crise.
O PL 6.229/2005, que trará a possibilidade do financiador na recuperação judicial, com maior segurança jurídica, garante de ponta a ponta, não só o soerguimento acelerado da empresa em crise, mas também a apresentação de melhores planos de recuperação judicial, mitigando as discussões dos credores que permanecem até hoje.
Trazer inovação e soluções que busquem contribuir com o cenário negocial da recuperação judicial, garantindo segurança jurídica e o equilíbrio do ônus em relação a todos os envolvidos, assegura a melhor utilização do instituto da recuperação judicial.
Em verdade, o processo recuperacional vai além de ser só mais um processo, é um negócio que gera impactos sociais e econômicos, devendo ter toda a cautela inerente da sua complexidade.
O DIP Financing é, sem dúvida, uma ferramenta já conhecida e aplicada em outras legislações internacionais, mas que será cada vez mais presente no nosso ordenamento jurídico, nos processos recuperacionais.
Ademais, vale lembrar que, buscar o DIP Financing através de uma recuperação judicial totalmente desconexa com os objetivos e princípios da lei 11.101/05, direcionará o projeto de reestruturação ao inquestionável insucesso.
Desta forma, se o objetivo do empresário for além de renegociar seu passivo junto aos credores, obter a proteção legal e dinheiro novo para se reestruturar, este deve estar ciente também dos ônus que dele serão exigidos, tal como a transparência, seriedade e o comprometimento durante toda sua jornada.
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1 A sigla advém da língua inglesa, e significa “Debtor in Possession Financing”, pois a companhia não precisa dar bens em garantia, mantendo o controle sobre eles. Nos Estados Unidos, as modalidades de financiamento DIP estão disciplinadas na Seção 364 (c) e (d) do Bankruptcy Code. No Canadá, o financiamento DIP é conhecido como CCAA (Companies' Creditors Arrangement Act).
2 Uma outra modalidade de financiamento utilizado em processos de Recuperação Judicial é o Project Finance. As operações deste tipo de financiamento são sempre estruturadas de modo que a dívida da recuperanda seja paga com os recursos gerados pelo próprio fluxo de caixa do projeto, que figura como garantia fiduciária em favor dos financiadores. Portanto, o sucesso do pagamento do capital financiado depende da continuidade da operação. As garantias estabelecidas aos financiadores são diversas, incluindo, imóveis, ações de emissão da Sociedade de Propósito Específico, ativos utilizados no projeto, direitos emergentes e créditos ou recebíveis do projeto (com a implantação de estrutura de contas em cascata). Tal espécie de fidúcia é bastante utilizada em Recuperações Judiciais de concessionárias de serviço público, em razão do disposto no artigo 28-A da Lei de Concessões (Lei nº 8.987 de 13 de fevereiro de 1995).
3 A 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial TJ-SP, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 2150922-97.2015.8.26.0000, de relatoria do Des. Carlos Alberto Garbi, decidiu no sentido de autorizar a celebração do DIP Financing antes mesmo da convocação da Assembleia Geral de Credores, permitindo, inclusive, que parte do valor do financiamento seja adiantado à recuperanda.
4 Processo de Recuperação Judicial n. 1001985-03.2014.8.26.0032 – 2º Vara Cível da Comarca de Araçatuba/SP.
5 Processo de Recuperação Judicial n. 1103257-54.2019.8.26.0100 - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Capital do Estado de São Paulo.
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*Vitor Gomes Rodrigues de Mello é Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD).
*Christiane Nascimento é Advogada especialista em recuperação de empresa, consultora jurídica, empreendedora e fundadora da empresa Christiane Nascimento.