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O que permanece aberto e o que fecha? Reflexões sobre o conceito de serviços públicos e atividades essenciais em conformidade com a MP 927/2020 e o decreto Federal 10.282/2020

Vive-se uma espécie de efervescência de decretos estaduais e municipais erráticos voltados para suspender ou interditar serviços públicos e atividades não essenciais.

23/3/2020

Medidas de restrição à circulação de pessoas e de restrição ao exercício de atividades econômicas constituem uma das principais frentes de combate à pandemia do coronavírus. O norte é que, para evitar a circulação de pessoas, os estabelecimentos empresariais sejam fechados, permitindo-se apenas as atividades que possam ser cumpridas em home-office e as consideradas essenciais. A discussão sobre o que é e o que não é essencial passou a ser central nesses dias de pandemia. O resultado dessa discussão determina quais as atividades econômicas devem ser suspensas ou interditadas (as não essenciais) e quais devem prosseguir (as essenciais). Ou, dizendo diretamente, quais empresas são obrigadas a fechar e quais ainda podem abrir as suas portas.

O fato é que já houve na última semana muita discordância sobre o que se qualifica e o que não se qualifica como serviços públicos e atividades essenciais. No Estado de Santa Catarina, por exemplo, talvez o primeiro a determinar a suspensão de serviços públicos e atividades não essenciais, houve intenso debate sobre lojas de material de construção, serviços de transporte, agência de correios, locadoras de veículos, feiras de hortifruti, petshops etc (decreto Estadual 521, de 19 de março de 2020).

Vive-se uma espécie de efervescência de decretos estaduais e municipais erráticos voltados para suspender ou interditar serviços públicos e atividades não essenciais. A impressão é de que a intenção por trás desses decretos é bastante positiva, pretendem evitar a propagação do vírus e o colapso dos sistemas de saúde dos estados e dos municípios. O problema é que essas medidas são técnica e logisticamente complexas e parece que os decretos foram elaborados às pressas, sem a devida maturação. O pior é que não há uniformidade, cada estado e cada município acabam tratando do assunto de um jeito diferente, o que causa insegurança jurídica e muita estranheza.

Com algum atraso, em 20 de março, o Governo Federal alterou a lei Federal 13.979/2020 por meio da Medida Provisória 926/2020, em reforço ao enfrentamento da pandemia. É curioso que o artigo 3º da lei 13.979/2020 enuncia as providências para o tal enfrentamento e nenhuma delas se refere à suspensão ou interdição de atividades econômicas, o que tem sido o ponto central dos decretos estaduais e municipais. A Medida Provisória 926/2020 alterou o artigo 3º da lei 13.979/2020 no tocante apenas às restrições à locomoção por rodovias, portos e aeroportos à entrada e saída do país e locomoção interestadual e intermunicipal, condicionando-as à recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A Medida Provisória quer é desfazer as restrições à locomoção estabelecidas por estados e por municípios.

Ainda que sem mencionar expressamente a suspensão ou interdição de atividades econômicas, o § 8º do artigo 3º da lei Federal 13.979/2020, incluído pela supracitada Medida Provisória, prescreve que o enfrentamento à pandemia deve “resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais”. O § 9º do mesmo artigo, também introduzido pela mesma Medida Provisória, prescreve que o Presidente da República deve dispor em Decreto sobre os serviços públicos e as atividades essenciais. Para completar, o § 11 do mesmo artigo, outra novidade da Medida Provisória, proíbe “a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais [...] e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.”

 No mesmo 20 de março, o Presidente da República publicou o Decreto Federal 10.282/2020, que tenta oferecer balizas para a compreensão do que sejam os serviços públicos e as atividades essenciais, com o intento de que as mesmas balizas sejam obrigatórias para todos os entes federados (artigo 1º do Decreto Federal), algo que por si já desperta polêmica. O § 1º do artigo 3º do Decreto Federal define serviços públicos e atividades essenciais como “aqueles indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim considerados aqueles que, se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: [...]”. Seguem-se vinte e três incisos que anunciam alguns dos serviços públicos e atividades essenciais.

É bem claro que a lista dos serviços públicos e atividades essenciais do § 1º do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020 não é taxativa. O § 1º, antes de iniciar a lista, emprega a expressão “tais como”. Logo, pode haver uma série de outros serviços públicos e atividades essenciais não lembrados na lista e que devem ser resguardados pelo Poder Público. Daí que caberá à Administração Pública e ao Poder Judiciário, este nos casos de controvérsias que lhe sejam levadas à apreciação, interpretar o conceito geral enunciado no § 1º do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020, de modo a avaliar se dada atividade não nominada expressamente nos incisos do mesmo § 1º enquadra-se ou não na categoria de serviços públicos e atividades essenciais.    

Serviços públicos e atividades essenciais remetem a conceitos vagos e imprecisos. A dificuldade reside na interpretação do que é ou não “essencial”, que representa o núcleo da expressão. Essa discussão vem de tempo, as expressões são tratadas na lei 7.783/1989, que dispõe sobre o direito de greve, e em julgados sobre o corte ou a interrupção da prestação de serviços públicos por falta de pagamento da respectiva tarifa. Sem embargo, não se encontrou critério seguro para identificar o que seja “essencial”. Até agora a solução foi mais casuística do que teórico-dogmática. Veja-se, por ilustração, que a Lei n. 7.783/1989 nem se anima a esboçar definição sobre serviços públicos ou atividades essenciais, traz apenas, no seu artigo 10, lista de serviços ou atividades essenciais.

 Repita-se que o § 1º do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020 qualifica como essencial aquilo que visa atender necessidades inadiáveis, cuja ausência expõe ao perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança pública. O Decreto Federal andou mal porque condicionou o vocábulo “essencial” à variável temporal (“inadiável”), também imprecisa e vaga. Ora, explicar uma expressão imprecisa e vaga com outra expressão imprecisa e vaga não resolve nada, só gera mais confusão. Até então o intérprete tinha que dar conta de uma expressão imprecisa e vaga: “essencial”. O Decreto Federal dobrou o problema, porque com ele o intérprete precisa dar conta de duas expressões igualmente imprecisas e vagas: “essencial” e “inadiável”.

 O discernimento sobre o que é ou não inadiável, dimensão de natureza temporal, depende de cada situação concreta e é muitíssimo subjetivo. O inadiável também deve ser distinguido em graus. É difícil identificar o “inadiável absoluto”, que não pode esperar segundos ou minutos, ou quem sabe horas, um dia ou poucos dias. Por exemplo, abastecimento de água é serviço público essencial, não há dúvida alguma que seja, inclusive foi lembrado no inciso VIII do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020. No entanto, em que pese essencial, é possível que residência fique algumas horas ou mesmo um ou dois dias sem água. Não é desejável, traz inconvenientes, mas em alguma medida de tempo o abastecimento de água pode ser adiado.

O exemplo acima ajuda também a entender que o vocábulo “inadiável” não se presta a explicar coisa alguma sobre o vocábulo “essencial”. “Essencial” é o imprescindível, o que não pode ser ignorado ou posto de lado. “Inadiável” é algo que não pode ser postergado, que precisa ser feito imediatamente. “Essencial” e “inadiável” são vocábulos que não se confundem e não explicam nada um sobre o outro.  

Malcontente, diante do insucesso de explicar o que é “essencial”, o Decreto Federal 10.282/2020 pôs-se a tentar explicar o que é “inadiável”. Conseguiu a façanha de triplicar o problema. Para o § 1º do artigo 3º do Decreto Federal, inadiáveis são os serviços ou atividades que, “se não atendidos, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população, tais como: [...]” Então, o Decreto Federal remeteu o “essencial” ao “inadiável” e o “inadiável” ao “perigo”. O “perigo”, da mesma forma, tem conceito impreciso e vago, corresponde a grau de risco elevado. A avaliação do grau de risco bastante para qualificar a situação de perigo também é acentuadamente subjetiva. Soma-se que o vocábulo “perigo” não revela ligação necessária com o vocábulo “inadiável”. Pode-se falar em perigos atuais, perigos iminentes e perigos não iminentes.

Outro desacerto do Decreto Federal 10.282/2020 foi o de delimitar o perigo à sobrevivência, à saúde ou à segurança. Sob essa luz, serviços ou atividades direcionadas para conter situação de perigo de outra ordem não são consideradas essenciais. O perigo meramente patrimonial, por exemplo, não foi prestigiado pelo Decreto Federal. Supõe-se que um condomínio residencial na cidade de São Paulo, numa área de frequentes alagamentos, tem uma bomba mecânica de água instalada na sua garagem, para evitar que ela seja alagada, de maneira a preservar os veículos dos condôminos, bens meramente materiais, não vinculados à vida, à saúde ou à segurança. A bomba de água estragou e o condomínio pretende comprar uma nova. A questão é saber se o condomínio, nesse período de pandemia de coronavírus, vai conseguir comprar uma bomba de água nova, se a atividade de comércio de bomba de água é ou não essencial. Nos termos do Decreto, se prevalecer o entendimento de que o comércio de bomba de água não se presta a proteger a vida, a saúde ou a segurança, o condomínio não conseguirá comprá-la.  

Pode-se ponderar que a bomba mecânica de água protege a segurança dos condôminos e não apenas a incolumidade dos veículos, argumento este que dependeria de interpretação mais flexível e com boa dose de boa-vontade acerca daquilo que é capaz de representar perigo à segurança, como dispõe o § 1º do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020. Concorde-se ou não, é o bastante para instaurar a controvérsia, que, tudo indica, tende a se multiplicar. Substitua no exemplo a bomba mecânica de água por qualquer outro item de material de construção, peças de veículos e maquinários em geral, os próprios veículos e os maquinários, uniformes e vestimentas, serviços de toda a sorte, etc. A lista de objetos controversos é imensa. Advirta-se, sem querer antecipar o fim dos debates, que interpretação muito condescendente pode desfazer a finalidade de conter a circulação de pessoas e pode ser prejudicial ao combate à pandemia.    

Serviços públicos e atividades essenciais importam conceitos vagos e imprecisos e é provável que permaneçam assim, por mais que se possa desejar o contrário. O Decreto Federal 10.282/2020 não conseguiu objetivá-los e a definição contida no § 1º do artigo 3º mais confunde do que explica. Em vez de tentar tornar preciso algo que por natureza é impreciso, é mais proveitoso dar conta do assunto de modo casuístico, nominando um a um os serviços públicos e as atividades essenciais, dentro dos espaços de discricionariedade outorgados à Administração Pública. Seria conveniente designar uma espécie de comissão técnica para qualificar casuística e motivadamente os serviços e as atividades essenciais. A propósito, o § 5º do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020 caminha nessa direção ao prescrever que “os órgãos públicos manterão mecanismos que viabilizem a tomada de decisões, inclusive colegiadas, e estabelecerão canais permanentes de interlocução com as entidades públicas e privadas federais, estaduais, distritais e municipais.”

Também é relevante o § 6º do artigo 3º do Decreto Federal 10.282/2020, cujo teor preceitua que “as limitações de serviços públicos e de atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia do com o órgão regulador ou do Poder concedente ou autorizador.” (Grifo acrescido). O texto, como se percebe, tem erro de redação grave. Faltou dizer quem é o responsável pelo ato específico nele referido e quem deve articular com o órgão regulador ou do Poder concedente ou autorizador. Tirando isso, o dispositivo supracitado condiciona as limitações aos serviços públicos e às atividades essenciais a ato específico. Não se pode confundir as limitações com a própria qualificação de serviços públicos e atividades essenciais. Significa que o ato específico é para impor alguma limitação aos serviços públicos e atividades já qualificadas como essenciais, para organizá-las e evitar que as pessoas que trabalham ou que se utilizam de tais serviços e atividades sejam indevida e desnecessariamente expostas ao vírus. A título ilustrativo, poder-se-ia limitar a quantidade de consumidores que devem ingressar ou se manter dentro de um dado estabelecimento comercial que presta atividade essencial.  

Nos próximos dias e nas próximas semanas é provável que as controvérsias sobre a qualificação de serviços e atividades como essenciais sejam amplificadas e que batam às portas dos nossos juízes. É importante, sobremodo nesta situação de emergência sanitária, que os juízes adotem postura de autocontenção e que prestem deferência às decisões administrativas. Contudo, por outro lado, não podem se furtar de avaliar as controvérsias que lhe sejam submetidas, caindo numa espécie de atavismo judicial sob a gênese do the king can do no wrong. Os juízes dispõem de instrumentos assentados pela doutrina e pela jurisprudência para avaliar os casos concretos que lhe sejam submetidos, a exemplo da obrigatoriedade de motivação, da teoria dos motivos determinantes e do princípio da proporcionalidade, em suas três dimensões, de adequação, de necessidade e de proporcionalidade em sentido estrito. O Judiciário é essencial, com perdão pelo trocadilho, para a preservação dos direitos individuais e para reparar os equívocos que eventualmente sejam cometidos pela Administração Pública.

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Joel de Menezes Niebuhr é advogado, doutor em Direito do Estado pela PUC/SP.

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