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Reforma administrativa: a vulneração da estabilidade à mercê da captura

Contornos que reputamos relevantes à pretensão da reforma administrativa que, dentre seus elementos sinalizados e amplamente defendidos, visa retirar a estabilidade do servidor que ingressa por meio do meritório concurso público.

16/3/2020

Quando nos deparamos com a utilização do termo “tempos sombrios” na atual conjuntura republicana, de fato não é ilusão gramatical no uso do brocardo, especialmente pelo viés de confirmação que alguns discursos podem ocasionar.

Nessa perspectiva é que o servidor público passou a ser o principal vilão do afundamento solipsístico do Brasil, eis que improdutivos e recheados de regalias, que em nada contribuem com o desenvolvimento nacional.

No presente escrito, limitar-se-á aos contornos que reputamos relevantes à pretensão da reforma administrativa que, dentre seus elementos sinalizados e amplamente defendidos, visa retirar a estabilidade do servidor que ingressa por meio do meritório concurso público.

A quem defende tais situações, emerge-se dois consectários a se adjetivar: Ou desconhece profundamente a realidade da Administração Pública ou quer de fato injetar ainda mais a preponderância de conexões e influências políticas no Poder Público.

Alerta-se, aliás, que o espírito nacionalista naturalmente nos remete a necessidade de reformas, isso é indiscutível, contudo, deve-se atentar que os ajustes precisam seguir linha normativa que retire “privilégio” e garanta um serviço público ainda mais eficiente. Isso, apesar do que se propala, não ocorre quando se retiram prerrogativas, sobretudo de servidores que diariamente se incumbem de defender o patrimônio coletivo.

O escopo de se reformar não pode discutir no raso o que se desconhece em profundidade

Aos que já tiveram a oportunidade de exercer o mister público, sabe-se muito bem o quão o serviço público é cobiçado, sobretudo pelos setores que detém o poder de influência e conexões políticas, sem esquecer, evidentemente, da cleptocracia.

Retirar a estabilidade do servidor público é fragilizar sua atuação conforme a lei e abrir a perigosa porteira do poder intransigente. A relação de poder no setor público é convergente ao sistema de interesses embaraçados, com fortes resquícios pretéritos, de modo que como pressuposto ao entendimento da digressão a ser realizada, obrigamo-nos a relatar a distinção entre vigor e poder.

Hannah Arendt (1970, p. 27) compreende o vigor como o que “designa inequivocamente alguma coisa no singular, uma entidade individual; trata-se de uma qualidade inerente a um objeto ou pessoa e que pertence ao seu caráter, a qual pode manifestar-se em relação a outras coisas ou pessoas, mas que é essencialmente independente deles.”

O poder, lado outro, “corresponde à habilidade humana de não apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence ele a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido.” (ARENDT, 1970, p. 27).

Não por outro motivo, a distribuição de cargos públicos é realizada a partir da perspectiva de poder, logo, ingressam nos cargos do mais alto escalão do serviço público não servidores técnicos - de carreira -, mas sim aqueles que possuem conexões políticas fortes a legitimar o poder de determinado grupo.

Ao que dissente desta perspectiva, a nosso ver, desconhece profundamente as raízes do serviço público, que hodiernamente mantém os resquícios do coronelismo. Não é raro que os gestores abarrotem o setor público com nomeações, não de servidores concursados, mas de parentes e amigos, que investidos em cargos comissionados estão prontos a fazer cegamente o que se ordena e concretizar o interesse do grupo ao qual pertencem.

Não nos esqueçamos, ainda, do recorrente nepotismo, tão aceito pelas classes políticas. Recentemente, v.g., a Câmara de Boa Vista rejeitou uma lei que vedaria o nepotismo a cargos políticos[1].  Indaga-se: a quem interessa esta perspectiva de “meritocracia” e “eficiência qualificada” no serviço público?

Aludiu Odim Brandão Ferreira, quando da emissão do parecer da PGR na Rcl 26.303/RJ, em que um Prefeito nomeara o filho para secretaria do Município:

Além disso, não se entende por que os cargos de menor expressão haveriam de se pautar por critérios de recrutamento mais exigentes do que os de mais alta expressão e, portanto, dotados de poderes capazes de atingir de modo mais amplo e intenso os interesses públicos. Ao final, toda a discussão gira em torno do implemento de pautas racionais de seleção dos candidatos aos postos públicos, tanto do ponto de vista de critérios de aferição objetiva de sua competência, como da isenção subjetiva do agente público encarregado de escolha. Mostra-se, assim, incompreensível, por exemplo, que a racionalidade estatal seja um imperativo na chefia de um posto médico de dado município, mas não atinja, de igual modo, a secretaria de saúde, responsável pelo conjunto dos serviços, malgrado a identidade de motivos a impor a mesma regra.

Uma escolha pessoal conduzida por “parente” nunca se deixa converter numa seleção imparcial, pautada por critérios objetivos de escolha do candidato mais capaz para o posto estatal.

Reside, assim, a importância da consubstanciação das prerrogativas aos servidores públicos efetivos, especialmente no que concerne a estabilidade e, diga-se, por oportuno, isso jamais legitimará a permanência de servidores que pratiquem atos ilegais.

É importante conhecer a estrutura administrativo-organizacional, de modo que mesmo o servidor que exerça o cargo mais singelo na organização pública precisa ter proteção e garantias, pois qualquer servidor público, quando efetivo, poderá atuar como fiscal de Contratos Administrativos, exercer a função de membro de Comissão de Licitação, participar das comissões em Processos Administrativos Disciplinares - PADs, Comissões de Auditoria e outros.

Nota-se que, o servidor efetivo que esteja sendo fiscal de Contrato Administrativo, por exemplo, caso não possuísse qualquer prerrogativa, seria facilmente “cooptado” a praticar qualquer direcionamento realizado pelo Gestor – inclua-se agentes políticos em geral -, ou facilmente influenciado pela vontade dos fornecedores.

Não por outro motivo, em certas situações, indicam-se servidores comissionados para fiscalizar Contratos Administrativos ou, quando inconsistentes por razões obscuras, são regularmente remanejados.

O cenário sem a estabilidade é propício à exoneração perseguidora do servidor, que facilmente serviria de sustentáculo aos desvios de finalidade.

E nem se diga que isso é um receio infundado, basta o vislumbre perfunctória das operações da “lava-jato” para ter a certeza que a influência e o poder político de dirigentes foram decisivos para ingressar na Administração Pública, sugando-se favorecimentos sem qualquer beneplácito republicano.

A exposição feita por KLIASS, quanto ao desprezo ao serviço público, é emblemática, aduzindo que determinados setores “tem muita raiva dos servidores públicos. Mas não teria razão para tanto. Aproveita-se de uma parte dos dirigentes dos mesmos quando precisa de seus ‘favores especiais’, mas sempre se sai com o discurso da meritocracia e do empreendedorismo para justificar sua ânsia de degola de tudo o que cheira a setor público em seu entorno.”

É preciso entender que a estabilidade está diretamente arraigada aos alicerces da Constituição Federal de 1988. A falta de estabilidade concedida aos servidores concursados transformaria o Estado de Direito em Estado do livre arbítrio. Considera-se, portanto, “uma garantia individual outorgada aos administrados contra a distorcida influência política no desempenho da função pública e também um direito político dos cidadãos a uma administração transparente e participativa” (MARTINS, 2011, p. 139/155).

Importante frisar que havia em nosso sistema administrativo um princípio do ponto de vista da moralidade como abusivo, qual seja: o Princípio da Verdade Sabida. “O superior hierárquico por ser sabedor da verdade possuía a faculdade de demitir o servidor público sem o prévio e devido processo administrativo” (PACHECO BARROS, 2002, p. 116).

A estabilidade no serviço público - ou a garantia de permanência -, conquanto seja um direito do servidor, constitui uma garantia aos cidadãos de que o servidor não será objeto de pressões ou influências hierárquicas, políticas, de conveniência ou interesse. Nesse sentido a garantia da estabilidade está relacionada muito mais ao interesse público do que ao interesse pessoal do servidor.

Aqui, basta lembrar das exonerações de cargos comissionados em razão da simples mudança de governo ou de situações outras vinculadas aos interesses meramente políticos.

Precisas, portanto, são as palavras de RAND (199, p. 13), ao afirmar que “a gestão da coisa pública tem falhado muito mais pela falta de profissionalismo de dirigentes nomeados apenas pelo mérito de suas conexões políticas e pela falta de continuidade administrativa”, bem como se mantém o mosaico do “Estado ainda privatizado e sob controle patrimonialista de uns poucos, a estabilidade do servidor funciona como uma garantia contra as demissões dos que não são ‘amigos do rei’.”

Arremata dizendo que “sem vedação à demissão imotivada, a cada eleição seriam substituídos todos os servidores não dóceis ao grupo político vitorioso. Os princípios da moralidade, impessoalidade e eficiência, tão solenemente proclamados no art. 37 da Carta Política da República seriam letras mortas.” (RANDS, 1999, p.13)  

Não se pode esvaziar, por via transversa, uma conquista, que não é do servidor nem de carreira nenhuma; é do cidadão, de ver defendida a coisa Pública, segundo o cumprimento da lei.

Faz-se mister, ademais, relembrar os ensinamentos do ex-ministro do STF, Néri da Silveira, quando do julgamento da ADI 4843 MC – EB-REF/PB, ao dizer que um servidor “pode afirmar que um ato de Secretário ou do Governador não está correspondendo à lei, sem nenhum temor de poder vir a ser exonerado, como admissível suceder se ocupasse um cargo em comissão.”

Em paralelo, pode-se argumentar que a estabilidade possui a mesma base ontológica de se evitar o instituto da captura, aplicado às Agências Reguladoras. A captura é algo de fácil visualização. Para Justen Filho (2002, p. 369-370) “ocorre quando a agência perde sua condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo e passa a reproduzir atos destinados a legitimar a consecução de interesses privados dos segmentos regulados”.

Segundo Hernández (2012) “o fenômeno da captura das agências reguladoras consiste na situação pela qual a agência reguladora passar a servir de instrumento para viabilizar e legitimar a consecução de interesses privados dos segmentos regulados.

Ademais, parece-nos que a proposta de retirada da estabilidade caminha inclusive na contramão do que se aplica ao setor privado, pois é recorrente a criação de mecanismo de integridade e compliance nas empresas privadas, a fim de evitar que seja “capturada” por atos de corrupção. Afinal, nenhuma empresa quer ver seus recursos sendo corroídos pela praga corruptiva.

Assim, investe-se em setores fortes e com autonomia suficiente na estrutura organizacional, garantindo-se aos seus colaboradores a possibilidade de atuação firme quando os órgãos superiores queiram se desviar das regras de conduta.

Enquanto o setor privado fortalece seus sistemas de integridade – protegendo seu patrimônio com garantias aos seus colaboradores -, a reforma administrativa visa retirar prerrogativas daqueles possuem como missão defender o patrimônio de toda a sociedade, podendo, desta forma, serem facilmente capturados pela pressão, abusos e desvios de finalidade.

Registre-se, ainda, que a estabilidade não acoberta os servidores que porventura cometam ilícitos, pois estes, após o devido processo legal, poderão sofrer a pena de demissão. Isso, apesar do que se fala, não é incomum quando se verifica as estatísticas publicadas no portal da transparência (Clique aqui).

Vê-se, ainda, uma resistência contumaz em tornar a Administração Pública mais eficiente, profissionalizá-la de fato e direito, e isso não ocorre por culpa dos servidores públicos. Precisamos conhecer e reconhecer os verdadeiros culpados destas mazelas, que se concentram naqueles que vislumbram os “cargos públicos” não como um ideal para consubstanciar os mandamentos de otimização da Pátria, mas para servir como moeda de troca a grupos políticos e favorecimentos pessoais.

O ódio destilado ao servidor público efetivo só pode ter uma justificativa:a não deferência aos absurdos ordenados pelo Gestor, demais das vezes envoltos ao patrimonialismo2 que ainda transita pelas veias de nossa República.

Rememora-se as palavras de Raymundo Faoro, no livro “Os Donos do Poder”, em que o presente não se distancia muito do passado, eis que “cobrindo-a, sobre o esqueleto de ar, a túnica rígida do passado inexaurível, pesado, sufocante” protege sistemicamente interesses de grupos alheios ao interesse da sociededa.

Portanto, trazendo à colação algumas conjecturas sobre a realidade do setor público, reafirma-se que a estabilidade garante aos servidores concursados o cumprimento de suas funções nos termos da Constituição da República de 1988 e da Legislação vigente, sem que sejam capturados por pressões ou influências políticas ao exercerem suas funções na defesa do patrimônio público.  

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ARENDT, Hannah Título: Da Violência Título Original: On Violence Tradução: Maria Claudia Drummond Data Publicação Original: 1969/1970

BARROS, Wellington Pacheco. O município e seus agentes. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2002.

FAORO, RAYMUNDO, 1925-2003. Os donos do poder : formação do patronato político brasileiro / Raymundo Faoro ; prefácio Gabriel Cohn. – 5. ed. – São Paulo : Globo, 2012.

HERNÁNDEZ, José Manuel Lavers. O fenômeno da captura e o Direito Brasileiro. Disponível em: <_https3a_ _www.direitonet.com.br2f_artigos2f_exibir2f_69782f_o-fenomeno-da-captura-e-o-direito-brasileiro="">. Acesso em: 7 de novembro de 2016.

MARTINS, Ricardo Marcondes. Regime estatutário e Estado de Direito. Revista Trimestral de Direito Público, v. 55, p. 139-155, 2011.

JUSTEN FILHO, Marçal. – O Direito das Agências Reguladoras Independentes, Dialética, SP, p. 369-370, 2002.

RANDS, Maurício. A Reforma Administrativa e a Estabilidade do Servidor. Brasília: Informativo Consulex. Ano XIII, v.23, 1999.

Clique aqui

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1 Clique aqui

2 Não distinção entre o que era bem público e o que era bem privado.

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*Herick Feijó Mendes é advogado. Pres. Comissão de Estudos Constitucionais - Seccional RR. Especialista em Direito Público. Servidor público efetivo. Presidente da Associação dos Servidores Públicos do Instituto de Previdência do Estado de Roraima – ASIPER.

 

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