As técnicas processuais previstas nos artigos 396 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015 (lei 13.105/15), relativas à exibição de documento ou coisa, estão positivadas em contexto que as situa como um incidente instaurado no procedimento comum. É o que se depreende de uma leitura meramente topográfica da lei processual.
Nada obsta, no entanto, a que a parte autora veicule pretensão que se esgote na exibição de documentos1, caso em que as aludidas técnicas deverão ser transpostas para o procedimento considerado adequado à luz do direito material subjacente.
A ação de produção antecipada de prova, por seu turno, prevista nos arts. 381 e seguintes do CPC, apresenta-se nitidamente como ação autônoma, possuindo rito próprio e específico, embora ela não tenha sido incluída no Título III, dedicado aos procedimentos especiais.
Parece-nos que a questão do procedimento adequado para manejo de cada um desses instrumentos processuais se resolve de forma harmônica e sistêmica mediante análise norteada pelo direito material em que se funda cada uma das espécies de pretensões veiculáveis na matéria em questão. A depender do direito material que se pretende tutelar e do tipo de provimento jurisdicional almejado, será adequado um ou outro procedimento. A propósito, sobre a temática dos procedimentos especiais, vale destacar o escólio de Rodrigo Mazzei e Tiago Figueiredo Gonçalves (2015, p. 113):
A existência de especificidades ou de peculiaridades em torno do direito a ser tutelado impõe o estabelecimento de regras procedimentais próprias, que tornem o procedimento adequado à tutela de tal direito (...)
Em outros termos, a especialidade do procedimento sempre deverá estar atrelada e encontrar embasamento no caráter instrumento do processo. Insistimos: o que estará justificando a criação do procedimento especial é a presença de elemento objetivamente aferível diante da realidade do direito abstratamente considerado.
Feitas essas considerações, a ação de produção antecipada da prova (arts. 381 e seguintes do CPC) não nos parece vocacionada a abrigar pedido condenatório no sentido de compelir o réu ou o interessado à produção de prova. Em verdade, observa-se que o seu desiderato principal é a produção da prova almejada pelo autor da ação2, assegurando o contraditório aos eventuais interessados, que poderão, se assim lhes aprouver, requerer a produção de prova no mesmo procedimento, desde que relacionada ao mesmo fato (art. 382, §3º).
Tal constatação é corroborada pela vedação ao manejo de defesa e de recurso, salvo quanto à decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário (art. 382, §4º). Dito de outra forma, a ação autônoma de provas - ainda que exista caráter contencioso3 na relação jurídica de direito material que lhe é subjacente (art. 382, 1º) - é orientada, sobretudo, pelo interesse do autor, inexistindo espaço, em seu bojo, para o exercício da ampla defesa4. O contraditório nela exercido é voltado apenas à produção de prova acerca de determinados fatos sob o crivo do contraditório judicial, tendo em mente alguma das finalidades previstas no rol do art. 381, ou outra que, conquanto não prevista expressamente no dispositivo legal, fundamente-se no direito autônomo à prova. Tanto é assim que não se forma qualquer juízo sobre o fato objeto da prova (art. 382, §2º), o que revela que a cognição é limitadíssima, circunscrita somente a questões procedimentais. Em sentido semelhante, aduzem Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (2017, p. 318):
Recebida a inicial, na hipótese de antecipação de prova de caráter contencioso – ou seja, calcada em um dos casos do art. 381, caput, do CPC – serão os outros interessados citados para acompanhar a colheita da prova.
Note-se que estes interessados não terão, neste procedimento, a oportunidade de se defenderem (art. 382, §4º), mesmo porque aqui, como já observado, a prova ainda não é produzida, mas apenas obtida. Assim, somente no processo em que aquela prova seja efetivamente produzida é que terá sentido alguma reação por parte desses interessados.
Com efeito, não se podem impor, na via processual ora examinada, quaisquer das cominações de que tratam os artigos 400 e 403 do CPC, inseridos no bojo do incidente de exibição de documento ou coisa. Sequer se pode transpor para a ação probatória autônoma a cognição de que cuida o art. 399, que envolve a formação de um juízo acerca da (in)admissibilidade da recusa à exibição do documento. No procedimento da ação de produção antecipada de prova não se admite qualquer tipo de defesa, o que o torna inconciliável com a recusa da exibição de documento e com a formação de juízo sobre tal questão.
Não bastasse isso, o incidente de exibição admite que o requerente prove, por qualquer meio, a inveracidade da afirmação do requerido de que não possui o documento ou a coisa (art. 398, parágrafo único), o que, novamente, pressupõe apresentação de defesa, formação de lide e emissão de juízo acerca de fatos controvertidos, colidindo frontalmente com as limitações cognitivas da ação probatória autônoma (art. 382, §§2º e 4º). Em arremate deste ponto, não nos parece possível a cisão do incidente de exibição, extraindo-se dele somente as técnicas processuais eventualmente compatíveis com o rito da ação de produção antecipada de prova, na medida em que a espinha dorsal desta ação se revela absolutamente diversa, porquanto o impedimento à defesa e a limitação da cognição afastam qualquer harmonização com técnica vocacionada à formação de juízo quanto ao mérito de ação em curso, com objeto litigioso já delimitado e submetido a uma decisão heterocompositiva e adjudicatória5.
Assentadas as razões pelas quais entendemos haver diversidade de ambientes e incompatibilidade de objetos entre o incidente de exibição de documento ou coisa e a ação probatória autônoma, cumpre analisar a compatibilidade desta com a ação que contenha pretensão à exibição de documento em caráter satisfativo, instrumentalizada através do procedimento comum. Em outras palavras, cabe analisar se há fungibilidade e intercâmbio de técnicas entre tais vias ou se elas se prestam a satisfazer pretensões absolutamente diversas.
De saída, nota-se que ambas as ações sob foco têm como objeto (pedido mediato) o direito autônomo à prova. Ou seja, a prova almejada não se apresenta como um instrumento para a obtenção de um bem da vida contemplado na petição inicial sob a forma de um pedido principal.
A substancial diferença que se coloca, então, e que será decisiva para a escolha do procedimento adequado, reside no provimento jurisdicional buscado (pedido imediato). No procedimento comum, viabiliza-se a formulação de pedido de provimento condenatório à exibição do documento, com as cominações legais, o que não se coaduna com a ação probatória autônoma, diante das limitações de cognição e de defesa que lhe são próprias. Nesta sede, o que se postula, em última análise, é o direito da parte autora à produção da prova, sob contraditório judicial, oportunizando-se aos interessados a participação e a produção de outros meios de prova. Já no procedimento comum, é possível exigir-se o cumprimento do dever do réu de produzir a prova almejada pelo autor. Acerca da existência do aludido dever, cumpre transcrever a lição de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero (2017, p. 263)
Parte da doutrina nacional considera que, em relação às partes não haja, propriamente, um dever de prova, mas apenas um ônus nesse campo. Como se sabe, o ônus se liga a condutas desejadas de alguém, cujo descumprimento não implica sanção, mas apenas um “prejuízo processual”, retratando, então, um “imperativo do próprio interesse” (...)
A tese, todavia, não pode ser aceita. De um lado, porque o texto legal é claro em estabelecer para a parte deveres e não apenas ônus, tanto no campo da prova, como em relação ao comportamento geral desses sujeitos. Em segundo lugar, porque claramente há a previsão no código de sanções para o descumprimento dessas imposições, o que claramente as qualifica como deveres próprios e não como ônus (...) Em casos pontuais, aliás, a violação ao dever de colaboração probatória pode acarretar sanções ainda mais graves, tal como ocorre com a violação do dever de exibição de documento pela parte, que pode gerar a aplicação de qualquer medida coercitiva ou sub-rogatória tida como necessária para a satisfação da ordem (art. 400, parágrafo único).
Concluímos, no ponto, que é possível ao autor optar entre a ação probatória autônoma e o procedimento comum, na medida em que ambos são aptos à tutela, em diferentes graus de intensidade, do direito autônomo à prova. Dito de outro modo, o direito material subjacente à demanda é o mesmo, mas a escolha do procedimento deve estar alinhada com a natureza do pedido imediato formulado (provimento jurisdicional almejado), na medida em que as limitações de cognição e de defesa na ação probatória autônoma não permitem que se avance do exercício do direito à produção da prova para a exigibilidade do dever do réu de produzir a prova.
Na ação ajuizada pelo procedimento comum, poderão ser empregadas, inclusive, as técnicas do incidente de exibição de documento ou coisa, com as adaptações necessárias ao caso concreto, uma vez que, por exemplo, a presunção de veracidade prevista no art. 400 do CPC não se aplicará à demanda cujo pedido principal seja apenas a exibição, inexistindo narrativa fática na petição inicial que dê suporte a outro tipo de pedido, sobre a qual poderia incidir a presunção de veracidade. Não se trata, sequer, de intercâmbio de técnicas originárias de procedimentos diversos, nos termos do art. 327, §2º do código, haja vista que o incidente está previsto dentro do próprio procedimento comum. Importante notar, ainda, que tal incidente possui mobilidade, podendo ser deslocado ao longo do procedimento. Cabe ao interessado requerer tal providência, fundamentadamente, sempre tomando como bússola o direito material subjacente à lide, com amparo no art. 139, VI do CPC.
Por conseguinte, entendemos tratar-se de modalidades de provimentos jurisdicionais diversas, com escopos e profundidades distintas quanto à cognição e à defesa.
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MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, volume 2. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
MAZZEI, Rodrigo Reis; GONÇALVES, Tiago Figueiredo. Visão Geral dos Procedimentos Especiais no Novo Código de Processo Civil. In: BUENO, Cássio Scarpinella (org). PRODIREITO: Direito Processual Civil: Programa de Atualização em Direito: Ciclo 1. Porto Alegre: Artmed Panamericana 2015.
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1 Nesse sentido, vale referir o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.803.251-SC, cuja ementa segue transcrita:
EMENTA: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO AUTÔNOMA DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS PELO PROCEDIMENTO COMUM. POSSIBILIDADE. PRETENSÃO QUE SE EXAURE NA APRESENTAÇÃO DOS DOCUMENTOS APONTADOS. INTERESSE E ADEQUAÇÃO PROCESSUAIS. VERIFICAÇÃO. AÇÃO AUTÔNOMA DE EXIBIÇÃO DE DOCUMENTOS PELO PROCEDIMENTO COMUM E PRODUÇÃO DE PROVA ANTECIPADA. COEXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A controvérsia posta no presente recurso especial centra-se em saber se, a partir da vigência do Código de Processo Civil de 2015, é possível o ajuizamento de ação autônoma de exibição de documentos, sob o rito do procedimento comum (arts. 318 e seguintes), ou, como compreenderam as instâncias ordinárias, a referida ação deve se sujeitar, necessariamente, para efeito de adequação e interesse processual, ao disposto em relação ao "procedimento" da "produção antecipada de provas" (arts. 381 e seguintes).
2. A partir da vigência do Código de Processo Civil de 2015, que não reproduziu, em seu teor, o Livro III, afeto ao Processo Cautelar, então previsto no diploma processual de 1973, adveio intenso debate no âmbito acadêmico e doutrinário, seguido da prolação de decisões díspares nas instâncias ordinárias, quanto à subsistência da ação autônoma de exibição de documentos, de natureza satisfativa (e eventualmente preparatória), sobretudo diante dos novos institutos processuais que instrumentalizam o direito material à prova, entre eles, no que importa à discussão em análise, a "produção antecipada de provas" (arts. 381 e seguintes) e a "exibição incidental de documentos e coisa" (arts 496 e seguintes).
3. O Código de Processo Civil de 2015 buscou reproduzir, em seus termos, compreensão há muito difundida entre os processualistas de que a prova, na verdade, tem como destinatário imediato não apenas o juiz, mas também, diretamente, as partes envolvidas no litígio. Nesse contexto, reconhecida a existência de um direito material à prova, autônomo em si - que não se confunde com os fatos que ela se destina a demonstrar, tampouco com as consequências jurídicas daí advindas a subsidiar (ou não) outra pretensão -, a lei adjetiva civil estabelece instrumentos processuais para o seu exercício, o qual pode se dar incidentalmente, no bojo de um processo já instaurado entre as partes, ou por meio de uma ação autônoma (ação probatória lato sensu).
4. Para além das situações que revelem urgência e risco à prova, a pretensão posta na ação probatória autônoma pode, eventualmente, se exaurir na produção antecipada de determinada prova (meio de produção de prova) ou na apresentação/exibição de determinado documento ou coisa (meio de prova ou meio de obtenção de prova - caráter híbrido), a permitir que a parte demandante, diante da prova produzida ou do documento ou coisa apresentada, avalie sobre a existência de um direito passível de tutela e, segundo um juízo de conveniência, promova ou não a correlata ação.
4.1 Com vistas ao exercício do direito material à prova, consistente na produção antecipada de determinada prova, o Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu a possibilidade de se promover ação probatória autônoma, com as finalidades devidamente especificadas no art. 381.
4.2 Revela-se possível, ainda, que o direito material à prova consista não propriamente na produção antecipada de provas, mas no direito de exigir, em razão de lei ou de contrato, a exibição de documento ou coisa - já existente/já produzida - que se encontre na posse de outrem.
4.2.1 Para essa situação, afigura-se absolutamente viável - e tecnicamente mais adequado - o manejo de ação probatória autônoma de exibição de documento ou coisa, que, na falta de regramento específico, há de observar o procedimento comum, nos termos do art. 318 do novo Código de Processo Civil, aplicando-se, no que couber, pela especificidade, o disposto nos arts. 396 e seguintes, que se reportam à exibição de documentos ou coisa incidentalmente. 4.2.2 Também aqui não se exige o requisito da urgência, tampouco o caráter preparatório a uma ação dita principal, possuindo caráter exclusivamente satisfativo, tal como a jurisprudência e a doutrina nacional há muito reconheciam na postulação de tal ação sob a égide do CPC/1973. A pretensão, como assinalado, exaure-se na apresentação do documento ou coisa, sem nenhuma vinculação, ao menos imediata, com um dito pedido principal, não havendo se falar, por isso, em presunção de veracidade na hipótese de não exibição, preservada, contudo, a possibilidade de adoção de medidas coercitivas pelo juiz.
5. Reconhece-se, assim, que a ação de exibição de documentos subjacente, promovida pelo rito comum, denota, por parte do demandante, a existência de interesse de agir, inclusive sob a vertente adequação e utilidade da via eleita.
6. Registre-se que o cabimento da ação de exibição de documentos não impede o ajuizamento de ação de produção de antecipação de provas.
7. Recurso especial provido.
(REsp 1803251/SC, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/10/2019, DJe 08/11/2019)
2 Entretanto, uma vez produzida, a prova pode ser utilizada por qualquer das partes ou por terceiros interessados em demanda futura, diante do princípio da comunhão da prova.
3 Parece-nos, contudo, que a inexistência de defesa e de recurso, bem como a ausência de objeto litigioso definido revelam que o caráter contencioso de que trata o dispositivo é meramente potencial, em face de uma eventual e futura demanda que se possa antever diante das características da relação jurídica subjacente.
4 Conquanto a dicção do enunciado normativo não abra qualquer margem a mitigações, não há dúvida de que algum espaço para a defesa deve existir, ainda que de forma muito limitada, sob pena de a prova produzida se tornar imprestável judicialmente, por ofensa às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, da CRFB). No ponto, confira-se o enunciado nº 32 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal: “A vedação à apresentação de defesa prevista no art. 382, § 4º, do CPC, não impede a alegação pelo réu de matérias defensivas conhecíveis de ofício”.
5 Nesse contexto, pensamos que o enunciado nº 129 da II Jornada de Direito Processual Civil do Conselho da Justiça Federal deve ser lido de forma a entender que a pretensão à exibição de documentos passível de veiculação em ação de produção antecipada de prova submete-se ao procedimento próprio desta ação e não se confunde com o incidente do art. 396 do CPC, cujas técnicas pressupõem a existência de demanda já exercida, com objeto litigioso bem delimitado. Eis a redação do enunciado: “É admitida a exibição de documentos como objeto de produção antecipada de prova, nos termos do art. 381 do CPC”
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*Caio Souto Araújo é Juiz Federal. Mestrando em Direito Processual (UFES). Pós-graduado em Direito Administrativo (UGF).