Migalhas de Peso

A (im)pertinência da extrajudicialidade da mediação

No modelo brasileiro, considera-se os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC’s) os “responsáveis pela realização ou gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão”, conforme redação do art. 8º, da resolução 125/10 do CNJ

6/3/2020

O sistema processual brasileiro não proíbe a atuação do juiz como conciliador/mediador1, mas deixa claro que é função preferencial dos conciliadores e mediadores realizarem as sessões (art. 139, V, CPCbr). Em Portugal, o novo processo civil de 2013 manteve, após a fase dos articulados, a tentativa de conciliação presidida pelo juiz: “devendo este empenhar-se ativamente na obtenção da solução de equidade mais adequada aos termos do litígio” (3 do art. 594º, CPCpt). Não havendo acordo, devem ficar “consignadas em ata as concretas soluções sugeridas pelo juiz, bem como os fundamentos que, no entendimento das partes, justificam a persistência do litígio” (4 do art. 594º, CPCpt).

Sobre a atuação ativa do julgador na tentativa de conciliação, o juiz português Luís Felipe Pires de Sousa2 defende que o novo código de processo civil reforçou o protagonismo do magistrado como pacificador social, sendo a conciliação um dever do julgador sem que isso macule sua imparcialidade ou prejudique o futuro julgamento. Todavia, embora na “tentativa de conciliação, o juiz desempenha materialmente as funções de mediador”, o autor esclarece que, além de ser exigido todos os princípios e técnicas da mediação, o juiz deve ser objetivo em sua atuação, “não pressionando as partes, nem deixando entender - implicitamente - às partes qual será a decisão de mérito caso o processo prossiga para julgamento”, bem como “deve atuar nas vestes de conciliador e não como o oráculo que determina a lei aplicável ao caso”, abstendo-se de “emitir juízos sobre o mérito intrínseco das pretensões em disputa”.

Ora, se a atuação do juiz como conciliador/mediador é avaliada pelo poder decisório3 do mesmo julgador, caso superada a autocomposição, enfatiza-se que quanto o ato é feito por um mediador profissional, este não será contaminado pelo resultado da sessão, nem por ter acesso a produção das provas, porque não será a mesma pessoa que irá julgar o mérito dos direitos inerentes das partes, ou seja, como não se admite que o mediador pronuncie sobre os direitos, é possível concluir que o mediador (judicial ou extrajudicial) tem sua imparcialidade potencializada, de consectário, possibilita-se mais leveza em sua atuação como terceiro facilitador da comunicação das partes.

No modelo brasileiro, considera-se os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC’s) os “responsáveis pela realização ou gestão das sessões e audiências de conciliação e mediação que estejam a cargo de conciliadores e mediadores, bem como pelo atendimento e orientação ao cidadão”, conforme redação do art. 8º, da resolução 125/10 do CNJ4, que difere levemente do art. 24 da lei de mediação, bem como do art. 165 do NCPCbr, especificamente quando diz que as sessões estão ao cargo de conciliadores e mediadores, ignorando aqui a possibilidade de atuação do juiz como um negociador facilitador, a norma do CNJ, até em certo ponto, conduz que apenas o mediador e o conciliador são legítimos para realizar a sessão, todavia não há menção expressa na legislação brasileira que o magistrado é impedido de praticar o procedimento consensual.

Separando novamente a visão de um juiz sobre esta competência, o desembargador Cesar Felipe CURY5 vai além e esclarece que em procedimento autocompositivo é de competência e deve ser processada no juízo coordenador do CEJUSC da jurisdição técnica ou territorial onde a causa seria ajuizada. Isto porque a “tramitação pelo Cejusc importará na racionalização do procedimento, concentrando-o nesta unidade jurisdicional”.

Em se tratando da ação de produção antecipada da prova, o mesmo jurista defende que o Centro de Solução Consensual se serviria para a obtenção dos documentos e provas, porque é o competente para processar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito (art. 381, II), causando um “efeito pedagógico ao longo do tempo” visto que nesta ação o acesso à produção da prova “não prescinde o controle oficial, a prática rotineira dessa iniciativa pode consolidar a etapa prévia ao processo consistente no disclosure comum”.

Destaque deve ser dado para a possibilidade do juiz exercer as funções de conciliador/mediador nesta ação por sua imparcialidade potencializada pela ausência de pronunciamento sobre os fatos e direitos, pelo que o poder decisório do magistrado está adstrito a produção da prova e não sua avaliação, empreendendo o juiz na direção material do processo de forma a promover a concretização da paz social6.

Diante deste cenário de opções, seria o ambiente judicial (juiz, juízo – CEJUSC) o mais apropriado para a prática da autocomposição andes de instaurada a lide processual?

Por velhas características que aumentam a crença limitante de que o direito processual somente se aplica nos tribunais, o que deve ser exteriorizado pelos juristas é o alargamento e a multiplicação das competências das câmaras privadas de mediação, visto que urge a necessidade de terceirização completa da autocomposição pelo Judiciário, inclusive nos casos das ações de família e processos de justiça gratuita, bastando uma distribuição equânime entre as câmaras cadastradas.

Percebe-se a tentativa do legislador processual de esconder a lide já instaurada no momento da primeira mediação judicial, tenho em vista que a petição inicial já não é parte fundamental da carta de citação e o réu não precisa estar com a contestação no dia da audiência. O intuito é potencializar os acordos, tranquilizando as partes que o momento não é de produção de prova nem de discussão do direito, porque, tecnicamente, ainda não se deu início a lide processual. Mas, há sérias dúvidas da existência de efeitos positivos práticos desta característica, máxime pelo índice de redução dos acordos aqui apresentado.

Há mais liberdade e conveniência para que o mediador privado atue ativamente como interlocutor da comunicação entre as partes do que se tem visto nas mediações judicias, onde a falta de ânimo de todos os envolvidos na sessão e a inconsistência da remuneração do auxiliar da justiça criam um ambiente desfavorável para o importante instrumento de solução de conflitos, que exige muita seriedade, empatia, imparcialidade e entusiasmo do mediador para conseguir retirar dos advogados e das partes qualquer informação, sendo ainda mais árduo dar início a negociações.

O trabalho do mediador é deveras um martírio, mas o advogado na autocomposição enfrenta tarefa de mesma complexidade. Infelizmente, não se observa com frequência um advogado que saiba das técnicas de mediação ou tenha espírito colaborativo durante uma sessão. Os colegas da advocacia que atuam em conflitos de família são os que mais compreendem a dimensão e a nobreza da porta da mediação, não só porque traz mais satisfação aos seus clientes, mas por ser um ato envolvido por emoção e sentimentos, típicos combustíveis para o bom mediador realizar seu trabalho.

Sem emoção na mesa da mediação, o ato torna-se naturalmente sem importância para todos os envolvidos. Até o velho e sistemático mediador vai, aos poucos, deixando de fazer o discurso de abertura e se tornando um “escrevente de ata”, considerando a assoberbada agenda judicial, ainda mais porque o resultado da sessão não altera a remuneração do auxiliar da justiça.

O trabalho do mediador não é uma atividade finalística, ou seja, não é o mediador que resolve o conflito, são as partes ou interessados. Sendo uma atividade de meio, não é o resultado da sessão que aponta por uma mediação bem-feita ou não, podendo se tornar uma ação até para se constatar que a melhor solução para o conflito seja através de outra forma diversa da autocomposição.

O que já se pode pensar é na necessidade dos Tribunais e da advocacia serem mais vigilantes e ativos na autuação de procedimento disciplinar em face dos conciliadores e mediadores que descumprirem os princípios e regras estabelecidos no código de ética7, com a exclusão do profissional no cadastro nacional e o impedimento para atuar em qualquer outro órgão do Poder Judiciário nacional.

Outra opção pode ser a emissão de ato normativo interno prevendo a meritocracia nos casos em que ocorrer a autocomposição, com a instituição de uma espécie de sucumbência do mediador em caso de acordo entre as partes. Ora, se reduzir a remuneração é totalmente indigno, dar opções de aumento da verba pode justamente tornar mais digna a função, encorajará o mediador a buscar fazer o melhor uso da sessão.

Não sendo o dinheiro a única forma de estímulo, o que precisamos é uma maior incitação do mediador judicial, aliada a conscientização da advocacia e o fortalecimento das câmaras privadas. Isso é o que a mediação precisa para voltar a florescer e não só para majorar os números de acordos no Brasil.

A (im)pertinência da extrajudicialidade da mediação é questão que interessa a todos. O jurisdicionado e a advocacia querem soluções de conflitos cada vez mais rápidas e baratas, sem perder na qualidade do serviço, que também vem sendo exigido ao máximo em causas complexas, havendo inclusive um aumento progressivo por mediadores especialistas num tipo determinado de conflito, não sendo a remuneração do mediador um problema para as câmaras privadas autônomas.

O problema clássico das mediações extrajudiciais é a pouca demanda de serviço, causada em especial pela falta de busca dos interessados. Isso se deve à falta de conhecimento, inclusive dos advogados, que as câmaras prestam serviço privado de soluções de conflitos, o resultado de um acordo é homologado pelo Judiciário inclusive se estiver a ação em grau de recurso, sem necessidade de aguardar a ordem cronológica dos demais processos pendentes, podendo, de consectário, ser executado como todo título executivo judicial8.

Mesmo os acordos extrajudiciais - de qualquer natureza e valor - realizados sem a existência de ação judicial, em câmaras privadas sem vínculo com o tribunal, podem ser homologados, basta ajuizar a ação de jurisdição voluntária com fundamento no inciso VIII do art. 725 do CPC9.

Porém, a própria ausência do repasse do percentual de audiências não remuneradas pelos Tribunais às câmaras privadas é um dos causadores da falta de conhecimento deste serviço extrajudicial. Esta contrapartida do credenciamento das câmaras privadas com vínculo com o tribunal (§2º do art. 169, do CPC) não tem apenas o objetivo de trazer equilíbrio a relação público-privada, mas tem a missão de fomentar uma consciência cívica pelo ambiente das câmaras, mesmo em se tratando de atendimentos em processos em que deferida gratuidade da justiça, não sendo algo a ser “suportável” pelas câmaras, mas algo que a todos deve ser observado tratar de um benefício coletivo, que trará um movimento perene e naturalmente evolutivo por mais resoluções extrajudiciais dos conflitos.

Muitas câmaras privadas autônomas somente decidiram por não ter vínculo com os tribunais em decorrência deste repasse das audiências gratuitas, que deveriam realizar pelo cadastramento, sem, contudo, observar que o Judiciário não está fazendo esse repasse e sem avaliar todas as consequências de realizar este serviço voluntário para a própria empresa.

Assim, o percentual de audiências não remuneradas nos tribunais a serem repassadas às câmaras privadas de conciliação e mediação é algo previsto em lei que necessita de implementação prática, até para se ter parâmetros das vantagens e desvantagens, o que sempre dependerá de cada câmara privada, podendo ser justamente a contrapartida do credenciamento o melhor instrumento de divulgação dos serviços extrajudiciais de solução de conflitos.

No final do ano de 2018 e início de 2019 o Conselho Nacional de Justiça apresentou o programa “Resolve”10, que visa a realização de projetos e ações que incentivem a autocomposição de litígios e a pacificação social por meio da conciliação e da mediação, mas sem as necessárias alterações legais na otimização do tempo processual, com valorização das câmaras privadas, o programa do CNJ pode se tornar apenas mais um canal de comunicação ineficiente, que esbarrará sempre em circunscrições positivadas.

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1 O art. 139, V do NCPCbr, coloca a autocomposição como uma incumbência do juiz, e ao dizer que o mesmo deve praticar tal ato “preferencialmente” com auxílio de conciliadores/mediadores, autoriza o juiz a praticar e administrar a sessão: “Art. 139.  O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais”.

2 SOUSA, Luís Felipe Pires de. O empenho ativo do juiz na obtenção de uma solução de equidade em sede de tentativa de conciliação. JULGAR - 23 - 2014. Coimbra Editora. p. 317-337. Especialmente p. 333. Disponível em: Clique aqui. Consulta em 02.03.20. Da mesma forma, Miguel Teixeira de Sousa, diz que “a solução do litígio através de um meio alternativo ou mediante a conciliação das partes também corresponde ao exercício de poderes de gestão” do juiz (Cf. SOUSA, Miguel Teixeira de. Apontamento sobre o princípio da gestão processual no novo Código de Processo Civil. 10.2013. p. 2. Disponível em: Clique aqui. Consulta em 02.03.20).

3 O parágrafo único do art. 1º da lei de mediação brasileira (13.140/15) taxativamente considera mediação a atividade exercida por terceiro imparcial sem poder decisório. Da mesma forma, em Portugal o mediador deve ser “desprovido de poderes de imposição aos mediados” (art. 2º, b, lei 29/13). Ato contínuo, no art. 115º, alínea c), nº 1, do NCPCpt, o juiz é impedido quando “decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente”, devendo o próprio se declarar impedido (art. 116, 1).

4 Resolução 125/10 do Conselho Nacional de Justiça dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário. Disponível em: Clique aqui. Consulta em 02.03.20.

5 Na condição de presidente do Fórum Nacional de Mediação e Conciliação – FONAMEC, CURY também defende em seu artigo que o Brasil institua por lei federal o protocolos pré-processuais como previstos no Civil Procedure Rules – CPR Inglês de 1998 – visto que “Em um sistema que estimula a opção pela obtenção de dados para a solução autocompositiva prévia ao processo deve igualmente criar as condições regulamentares para que essa fase se desenvolva sob os mesmos princípios da publicidade, da previsibilidade e da segurança jurídica. Daí a importância do estabelecimento de protocolos pré-processuais, para que as partes interessadas saibam de antemão o quê e como podem obter e exigir os dados relevantes à solução do caso”. (Cf. CURY, Cesar Felipe. Produção antecipada de prova e o disclosure no direito brasileiro. Revista FONAMEC – Rio de Janeiro, v.1, 1, p. 111-131, maio 2017. Especialmente p. 125 e ss. Disponível em: Clique aqui. Consulta em 02.03.20)

6 Na visão de Marco Antônio de Barros: “Isto revela, mais uma vez, a tendência publicista do Direito processual moderno, que se destina a produzir a efetivação da justiça, em cujo contexto inclui-se a providencial intervenção do juiz durante a instrução do processo, realizada com o propósito de garantir a paz social. E por ser esta a principal missão a ser cumprida pelo juiz, há quem defenda que o mesmo não pode satisfazer-se com a ‘direção formal’, mas sim empreender a ‘direção material’ do processo de forma a promover a concretização da justiça.” (BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 33-34)

7 Qualquer pessoa que venha a ter conhecimento de conduta inadequada por parte do conciliador/mediador poderá representar ao Juiz Coordenador a fim de que sejam adotadas as providências cabíveis. O descumprimento dos princípios e regras estabelecidos no código de ética de conciliadores e mediadores judiciais, bem como a condenação definitiva em processo criminal, resultará na exclusão do conciliador/mediador do respectivo cadastro e no impedimento para atuar nesta função em qualquer outro órgão do Poder Judiciário nacional, conforme art. 8º do Anexo II da Resolução 125/10 do CNJ.

8 CPCbr – Art. 12. Os juízes e os tribunais atenderão, preferencialmente, à ordem cronológica de conclusão para proferir sentença ou acórdão. § 2º. Estão excluídos da regra do caput: I - as sentenças proferidas em audiência, homologatórias de acordo ou de improcedência liminar do pedido;

Art. 200. Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.

Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o juiz:

III - homologar:

b) a transação;

Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título:

III - a decisão homologatória de autocomposição extrajudicial de qualquer natureza;

Art. 932. Incumbe ao relator:

I - dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à produção de prova, bem como, quando for o caso, homologar autocomposição das partes;

9 CPC - Art. 725. Processar-se-á na forma estabelecida nesta Seção o pedido de:

VIII - homologação de autocomposição extrajudicial, de qualquer natureza ou valor.

10 Informações disponíveis no relatório de atividades do CNJ no primeiro semestre de 2019 Clique aqui.

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*Fernando Sousa é advogado. Doutorando em ciências jurídicas processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. Presidente da Associação De Conciliadores, Arbitralistas e Mediadores - CONAME.

 

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