Migalhas de Peso

Medicamentos de alto custo: reserva do possível ou mínimo existencial?

Além do mínimo necessário à sobrevivência humana, também está o bem estar social e o Estado Democrático de Direito, os quais se interligam em questões de saúde pública.

5/3/2020

Inicialmente, antes mesmo de explicar o debate existente acerca destes dois princípios, faz-se necessário o entendimento de cada um deles, para compreender sua relevância no direito administrativo (visto ser o medicamento requerido de responsabilidade pública), no direito constitucional (por ser a saúde um direito fundamental previsto constitucionalmente) e no direito tributário (uma vez que envolve questões orçamentárias).
Reserva do possível

Entende-se por reserva do possível, a limitação do Estado ao investir em condições sociais, como a saúde. Dentre os motivos para tanto, está a verba orçamentária, visto que, ao utilizar altos valores com um indivíduo, outros terão menos recursos, pois haverá desequilíbrio financeiro. Justamente por conta disto, deve-se observar três pontos em sua pretensão: a proporcionalidade, a razoabilidade e a disponibilidade financeira do Estado.

Em dados recentes deste ano de 2020, do Portal da Transparência, da Controladoria Geral da União, o orçamento para a saúde é de 136,25 bilhões de reais, e o total de despesas executadas nesta mesma área é de 10,21 bilhões de reais. Estes valores são distribuídos para órgãos e entidades executadoras, bem como para fundos de saúde e associações.

A questão é que, embora os valores empregados sejam altíssimos, a demanda é ainda maior. Provavelmente o valor supriria a maior parte da população ou quase todas as pessoas se não fosse preciso medicamentos de alto custo para parcela delas. Mas não é assim que funciona. Muitos necessitam de remédios específicos para se manterem vivos, motivo pelo qual os pleiteiam judicialmente.

Embora o Estado tenha a obrigação de tratar da saúde pública, não é o valor integral de todos os tributos que é revertido para a mesma. Há também demais áreas que necessitam de investimentos, como a educação, a moradia, a cultura e etc., todos eles previstos no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal.

Por conta disto, ao ultrapassar o valor reservado para a área da saúde, há risco de faltar verba pública nas demais áreas, pois os recursos financeiros por parte do Poder Público são escassos, e com isso, originam-se as escolhas trágicas. 

Contudo, sabe-se que uma vida humana importa, e importa muito. Justamente por isso, a Constituição a protege e trouxe o fundamento do mínimo existencial, conforme exposto a seguir.

Mínimo existencial

Compreende-se por mínimo existencial tudo aquilo que é necessário para uma vida digna, pois é observado o princípio da dignidade da pessoa humana. Há previsão constitucional a seu respeito, no artigo 1º, inciso III, da CRFB/88, conforme passa a expor:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana; (...)

Portanto, ao se tratar de saúde pública, embora o Estado tenha que lidar com limites orçamentários, o indivíduo não pode deixar de ser amparado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

O autor Clever Vasconcelos (2017) aponta que a dignidade da pessoa humana cuida do "conjunto de diversos direitos fundamentais indeterminados; por exemplo, o mínimo existencial e a proteção do Estado a sofrimentos evitáveis. Vale dizer que os direitos fundamentais são passíveis de renúncia desde que não se ofenda a dignidade dessa pessoa". (p. 72).

Ainda, após mencionar o que se entende por este princípio tão importante no direito constitucional, o mencionado doutrinador faz uma ligação com os medicamentos de altos valores em um possível Mandado de Segurança, para pleitear tal direito líquido e certo. Vejamos:

Na prática, podemos imaginar a seguinte situação: alguém impetra um Mandado de Segurança contra o Secretário de Saúde do Estado (ou ministro, ou do município – em questão de saúde são solidários), para liberar medicamentos caros. Usa-se este fundamento como comando-regra, pois pode ser aplicado de imediato. Conforme se verá adiante, como matéria de defesa o Estado usa a Teoria da Reserva do Possível – não é possível atender a todos; cabe ao Estado determinar o que é prioridade, onde utilizar o recurso. No caso em tela, podemos supor que com a verba de apenas um medicamento o Estado poderia empregar este dinheiro para comprar cinco mil xaropes para tuberculosos. Todavia, atendendo às condições casuísticas, geralmente o Judiciário concede ordem para o medicamento ser fornecido ao particular. A regra de legitimidade dos gastos públicos está ligada ao atendimento do bem-estar social. (VASCONCELOS, 2017, p. 72).

Pois bem. Pode-se observar que, além do mínimo necessário à sobrevivência humana, também está o bem estar social e o Estado Democrático de Direito, os quais se interligam em questões de saúde pública. Os tributos que pagamos são revertidos para diversas ações em prol da sociedade, e a saúde é uma delas. Assim, cabe ao poder público o amparo com quem necessita, seja de um xarope ou de um medicamento de valor exorbitante.
O debate existente acerca destes dois princípios constitucionais

O debate jurídico é justamente este: de um lado tem-se a limitação do Estado, e do outro, a dignidade da pessoa humana que necessita ser levada em consideração pelo Poder Público.

E o que se faz, nestes casos então? Observa-se quais os medicamentos estão registrados na Anvisa e os fornece.

Mas, e se o remédio não estiver registrado? Neste caso, o Supremo Tribunal Federal já entendeu o que se deve fazer, conforme decisão abaixo.

Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)

No mês de maio do ano de 2019, o Supremo entendeu que o Estado não é obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), salvo em casos excepcionais. Assim, conforme o STF, a decisão foi tomada, por maioria de votos, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 657718, com repercussão geral reconhecida, de relatoria do ministro Marco Aurélio.

A tese firmada pelo Plenário, por maioria dos votos, para efeito de repercussão geral, foi no seguinte sentido:

1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.

2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na lei 13.411/16), quando preenchidos três requisitos:

I – a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;

II – a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;

III – a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União.

Logo, pode-se perceber que não se trata de uma negação absoluta por parte do Poder Público em fornecer os referidos medicamentos, pois cabe exceção aplicável em casos excepcionais: de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido. Portanto, a não obrigatoriedade do Estado em seu fornecimento é regra, sendo a mora irrazoável, exceção.

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BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Disponível em: Clique aqui.

BRASIL. Portal da Transparência. Controladoria Geral da União. Disponível em: Clique aqui.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão do STF desobriga Estado de fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Disponível em: Clique aqui.

VASCONCELOS, Clever. Curso de Direito Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2017. (p. 71/72).

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*Bianca Stephanie Souza Ragasini é bacharel em Direito pela Universidade de Taubaté.

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