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Judiciário, um sistema a beira do colapso

A Ordem dos Advogados do Brasil, parte integrante e indissociável do Poder Judiciário, tem que enfrentar essa crise de valores e o risco de colapso do sistema, exigindo uma salutar discussão de alternativas com o Ministério Público e a Magistratura. Como caminha, chegaremos em alguns anos à falência do sistema, acho que disso ninguém das carreiras jurídicas tem mais dúvida alguma.

4/3/2020

São cerca de 80 advogados e advogadas preenchendo papeletas para sustentação oral ou pedido de preferência nos julgamentos de seus casos. A sessão de uma das Câmaras de Direito Privado do TJ/SP está marcada para ter início as 9h30. Passados alguns minutos do horário marcado um funcionário abre a porta e nós entramos, nos acotovelando, para conseguir uma das cadeiras do pequeno auditório. Muitos ficam em pé por falta de cadeiras (e também de espaço para mais delas). Aberta a sessão, após os atos de mera liturgia (ata anterior, comunicados, homenagens, falecimentos...), o Presidente avisa que todos os processos da pauta, decididos de forma unânime (decididos em sessão prévia e secreta?), terão seus resultados divulgados por um funcionário, na parte de fora da sala. A pauta tem mais de 150 processos. É lida uma lista de mais 100 processos “decididos de forma unânime”, e os advogados e advogadas desses casos são convidados a sair do salão e ir para o corredor. Lá fora, em meio a protestos e confusão, uma escrevente anuncia os resultados: “- Processo número... Negaram provimento, votação unânime”... O sistema está desmoronando, o formato atual praticamente esgotado. Estamos num jogo de “faz de conta” que funciona como uma cortina de fumaça para ainda esconder da população em geral que o Estado Juiz está muito doente.

Por um lado, a demanda judicial é muito grande, fala-se em 20 milhões de processos em curso nas Varas e Tribunais do Estado de São Paulo. Por outro lado, aumenta cada vez mais a visível falta de motivação, ou mesmo de vocação para o nobre e penoso ofício judicante. Quem frequenta as sessões das Câmaras de Direito Privado do TJ/SP com regularidade, como eu, está vendo crescer uma espécie de apatia e enfado nos semblantes de muitos dos nossos julgadores, tendo ficado no passado aquelas sessões onde cada caso era realmente objeto de analise profunda e votos magistrais de notáveis desembargadores, cujos textos seguiam de lá diretamente para a Revista dos Tribunais, consolidando a jurisprudência.

Em passado não tão distante, a gente ia às sessões do TJ para assistir os embates das partes e os votos do colegiado. Os casos de sustentação oral eram poucos. E os pedidos de preferência nasceram naturalmente, numa espécie de cortesia dos julgadores àquele advogado que assistia a sessão, como plateia privilegiada.

O doutor tem interesse em algum caso da pauta?”, perguntava o assistente de sala. Por vezes o advogado estava ali só para enriquecer seu conhecimento jurídico, por prazer e amor a arte. Mas por vezes estava ali para acompanhar um caso sob seu patrocínio. E então seu caso era sacado da pilha de processos  e julgado com toda pompa e circunstância. Mesmo perdendo a gente saia confortado ou resignado. Erros eram raros. Erros grosseiros, quase impossíveis. Essa a virtude do colegiado em sua plena função conceitual.

Atualmente, com as longas sessões públicas, e televisionadas, do Supremo, vende-se uma falsa idéia à população de como funcionaria o sistema Judiciário. A patuléia não tem noção de que se não for celebridade ou figurão de colarinho branco, seu caso nunca chegará ao STF. Será barrado por despachos patronizados de assessores e, agora, comenta-se, inclusive por despachos de robôs.

Sob o título “Quem deve julgar é o juiz de direito”, o ilustre jurisconsulto doutor Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, já anos atrás, escreveu na coluna “Espaço Aberto” do Estadão: “Para atingir as exigidas metas de produção, os magistrados estão “delegando” a sua constitucional e elevada atribuição de decidir a assessores. Até pouco tempo essa prática seria inimaginável. Ela representa uma assustadora inversão de papéis: assessores julgam e juízes assessoram, ou melhor, assinam.” E prosseguiu o jurista naquela análise que já conta mais de 5 anos (artigo publicado na edição de 31 de julho de 2014): “Com a indesejável expansão ou mesmo a só continuidade da aberrante “delegação”, será mais autêntico conceder aos auxiliares o direito de apor as suas assinaturas nos atos praticados.”

De lá para cá essa anomalia só se fez avolumar. Em nosso escritório tivemos um caso, recentemente, num mesmo processo (uma RJ), em que a mesma Câmara e mesmo relator, julgando agravo de instrumento de dois bancos diferentes com mesmos argumentos e fundamentos, negou provimento em um e deu provimento em outro, no mesmo dia... Fatos assim, que já não são raros, deixaram de fazer parte do “anedotário forense” para invadir nossas consciências, e nos apavorar, diante das incertezas e imprevisibilidades dos destinos de nossos casos nas Cortes Superiores. Essa verdade inegável faz com que os advogados e advogadas, cada vez mais, sintam a necessidade de acompanhar “ao vivo” os julgamentos de seus recursos... Para saber se o relator realmente examinou seu caso e seus argumentos, se o revisor e o terceiro juiz sabem do que estão tratando. Tudo isso precedido da entrega de memoriais nos gabinetes.

Pautas com 100 ou mais processos, para uma mesma sessão, dezenas de sustentações e outras de pedidos de preferência... A meu ver, com as vênias devidas e reconhecimento dos esforços de uma boa parcela de desembargadores do nosso Tribunal, que ainda mantém a vocação para o ofício e a crença e dedicação pelo sistema, estamos ultimamente apenas cuidando dos efeitos do crescimento da demanda judicial, não de suas causas e, por essa razão, estamos todos envolvidos num “faz de conta” que está depreciando, perante a opinião pública, um dos Poderes da República, ele, Judiciário, que outrora desfrutava do reconhecimento e respeito maciço da população. Hoje, infelizmente (e também por outras mazelas da atualidade conhecidas do público), alguns dos mais notáveis juízes do topo do sistema (no caso Ministros da Suprema Corte), são apupados em locais públicos assim que vistos e identificados, tudo sempre recheado de “elogios” às dignas e insuspeitas genitoras de Suas Excelências.

A Ordem dos Advogados do Brasil, parte integrante e indissociável do Poder Judiciário, tem que enfrentar essa crise de valores e o risco de colapso do sistema, exigindo uma salutar discussão de alternativas com o Ministério Público e a Magistratura. Como caminha, chegaremos em alguns anos à falência do sistema, acho que disso ninguém das carreiras jurídicas tem mais dúvida alguma.

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*Gabriel Marciliano Júnior é advogado e vice-presidente do Instituto DNA Dialógos da Nova Advocacia.

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