A chegada do “coronavírus” ao Brasil, com 2 (dois) casos confirmados até o dia 1º de março1, trouxe alerta e preocupação à sociedade. O impacto de eventual proliferação do vírus no país ainda é desconhecido, mas as medidas de cautela e mudanças de comportamento já trazem reflexos no dia-a-dia das pessoas, empresas e no mercado financeiro.
A depender da extensão e consequências da moléstia, ainda desconhecidas, a legislação civil prevê a possibilidade de resolução ou revisão de contratos civis e empresariais com base na chamada “teoria da imprevisão”, aplicável quando acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, tais como um surto de tamanha proporção, tornem a prestação de uma das partes do contrato excessivamente onerosa.
Dentre milhares de situações hipotéticas, imagine-se, por exemplo, o fechamento preventivo de um shopping center localizado em área de risco, por determinação governamental ou mesmo decisão empresarial, com a finalidade de se evitar a contaminação dos frequentadores. Em tal circunstância, será possível revisar o valor do aluguel mensal de suas lojas, que serão privadas do fluxo de pessoas e da receita no período? Essa revisão é possível mesmo antes do decurso do prazo de 3 anos previsto na lei federal 8.245/91? Caso o empreendimento pertença a um fundo imobiliário, como essa revisão afetará os cotistas? São pequenos exemplos de prejuízos a empresas, prestadores de serviços, fornecedores, consumidores, empregados, investidores, etc.
Já há notícias de contratos inadimplidos, diante da falta de fornecimento de insumos provenientes da China2. O impacto no setor de transporte e logística é igualmente inestimável.
A aplicação da teoria da imprevisão, para justificar a resolução ou revisão de contratos empresariais, dependerá da análise de cada situação concreta, especialmente da natureza e reflexos específicos, mas é de se supor que o evento global afetará em maior ou menor medida uma camada significativa da sociedade e poderá dar ensejo ao desequilíbrio contratual em relações jurídicas diversas.
A última grande discussão no Judiciário sobre a revisão contratual com base na teoria da imprevisão ocorreu quando, no ano de 1999, a grande desvalorização do real em relação ao dólar afetou diretamente contratos de leasing atrelados à moeda estrangeira, gerando uma avalanche de ações revisionais.
Já em 2019, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a desvalorização do real frente ao dólar ocorrida anos depois, na crise de 2008, que ocasionou variações excessivas em contratos de derivativos, não poderia justificar a revisão com base na mesma teoria, haja vista a natureza e riscos daquele tipo de contrato (REsp. 1.689.225).
No âmbito civil, a resolução e revisão contratual já estavam previstas nos artigos 478 a 480 e 317 do Código Civil de 20023, mas o tema ganhou, recentemente, novos dispositivos ligados à sua interpretação.
Com efeito, diante da promulgação da chamada Lei da Liberdade Econômica, foi inserido o artigo 421-A no Código Civil, que estabelece o princípio da paridade e simetria dos contratos civis e empresariais “até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção”, possibilita a fixação de “parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução” (inciso I), estipula que a “alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada” (inciso II), e, com maior destaque para a hipótese ora comentada “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada” (inciso III).
Ou seja, a recente positivação de entendimento que já prevalecia sobre o tema, acerca da excepcionalidade da medida, deverá ser confrontada com a imprevisibilidade, a boa-fé, o equilíbrio contratual e os efeitos para as partes contratantes.
Dessa forma, sem prejuízo dos potenciais impactos nas outras áreas do direito, recomenda-se às partes contratantes que, diante de situações excepcionais, que afetem de maneira significativa e tornem o contrato civil ou empresarial excessivamente oneroso, prestigiem e adotem a solução apresentada pelo artigo 479 do Código Civil4, renegociando as condições contratuais, sempre que possível e enquanto recomendável, ainda que provisoriamente, enquanto perdurar a situação excepcional.
Isso porque, transferir ao Poder Judiciário a tarefa de readequar as disposições de contratos firmados entre particulares, ainda mais com a recente promulgação da Lei da Liberdade Econômica, pode não atingir o resultado esperado, e ainda prejudicar o bom andamento da relação contratual.
Assim o fazendo, o empresário evitará a insegurança, conseguirá dimensionar melhor seus riscos e custos e evitará a morosidade e incertezas da judicialização desse tipo de discussão, mantendo o equilíbrio e a boa-fé na execução do contrato.
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3 Sem prejuízo de outra leis, tais como o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que em seu artigo 6º, inciso V, institui expressamente como direito básico do consumidor “ V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”
4 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato
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*Rafael Macedo Pezeta é advogado, sócio do escritório Falletti Advogados, especializado em litígios civis e empresariais.