Introdução
A incidência de impostos sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), sob a tecnologia streaming, é um assunto de bastante relevância no cenário atual, haja vista que nos últimos anos passamos por um grande avanço tecnológico. Tal recaimento do referido imposto causa o aumento do custo para a disponibilização da tecnologia de streaming tanto para a empresa quanto para o consumidor final.
Por tanto, faz-se necessário abordar o presente tema explorando cuidadosamente os detalhes pertinentes à incidência desse tributo sob a tecnologia streaming, o que é objetivo do presente artigo.
O tema aqui dissertado, teve início com a publicação da lei complementar 157, de 29 de dezembro de 2016, que alterou a lei complementar 116, de 31 de julho de 2003, acrescentando ao item 1.09 de sua lista anexa, ou seja, a tecnologia streaming como atividade incidente de ISS.
No entanto, inexiste motivos para que ocorra a incidência da cobrança de ISS sobre a tecnologia streaming, e para demonstrar e fundamentar esta tese, será demonstrado o significado da palavra serviço para a Constituição Federal, o real significado do streaming como tecnologia, e toda a legislação que trata o presente tema em conjunto com a doutrina e jurisprudência.
Tecnologia streaming
Atualmente é muito comum a realização da transferência de arquivos da internet pelos usuários dela, para as suas máquinas, que poderão visualizá-los após o término da transferência. Tal ocorrência, leva o nome de (Download).
Como exemplo de download, utiliza-se uma situação em que um usuário deseja assistir a um filme offline, ou seja, sem o uso da internet, o que só é possível se este realizar o download do referido filme para após sua total conclusão, assisti-lo de maneira offline.
O download é uma ferramenta muito útil, mas dependendo da conexão e velocidade da internet do usuário e ou do servidor, este ficará esperando um longo tempo para ter acesso ao conteúdo desejado caso opte pela realização do download.
O servidor é resumidamente um computador ou mais, equipado com diversos itens com a finalidade de oferecer serviços a outras máquinas ou clientes no que tange ao acesso à uma rede à internet, ou a disponibilização de dados. Para facilitar a compreensão de como funciona o servidor, prontamente pode-se ver na imagem abaixo:
Tendo em vista a forma como ocorre o download em conjunto com a necessidade de visualização célere dos conteúdos da internet na atualidade, se criou a tecnologia conhecida como (Streaming).
A tecnologia streaming permite que um cliente possa visualizar os arquivos vídeo e áudio ainda que estes não tenham sido baixados totalmente do servidor. Assim, o cliente vai visualizando os conteúdos desejados, à maneira com que estes vão sendo sincronizados e sendo armazenados em uma memória temporária, que é denominada como (Buffer)1.
Se observa que é similar ao download no sentido de que há um carregamento dos arquivos para visualização, no entanto não é necessário aguardar que todo o arquivo seja descarregado para isso, sendo esta uma das diferenças cruciais entre o download e o streaming, além do que no streaming os arquivos não são baixados ou descarregados na máquina de acesso do cliente, mas sim na memória do servidor (buffer), que após a visualização é apagada, sem que os ficheiros acessados pelo cliente, permaneçam em sua máquina.
A referida tecnologia é muito utilizada na atualidade, pois existem diversos sites e aplicativos que disponibilizam músicas, filmes e podcasts através de streaming, o que ocorre na medida em que os clientes assinam o contrato com a empresa fornecedora de conteúdos através desta ferramenta (streaming) para que os usuários a utilizem.
O cerne da questão, é que para ter acesso ao conteúdo disponibilizado pela empresa fornecedora de áudio, vídeo e ou podcast, o cliente deve contratar tal conteúdo e ter uma conexão com a internet para acessá-lo, o que pode cessar ocorrer caso não seja efetuado o pagamento ou sua internet caia.
Assim, nitidamente se pode concluir que a tecnologia streaming nada mais é, que uma disponibilização de conteúdos via internet, que os consumidores/clientes podem ter acesso.
Tributo
A definição de tributo está descrita no artigo 3º do Código Tributário Nacional, conforme se observa, in verbis:
“Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
Vejamos que, a fim de pormenorizar o significado do referido artigo de lei, analisemos com precisão suas partículas: o tributo é toda prestação pecuniária compulsória, ou seja, obrigatória e em dinheiro realizada pelo sujeito passivo da obrigação tributária, que não constitua sanção de ato ilícito, (que não configura multa), por fim, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, ou seja, estabelecida por meio de lei e cobrada mediante lançamento.
Assim, após a descrição do significado de tributo, podemos identificar suas espécies, haja vista que tributo é um gênero. Para tanto, vale salientar que existem diferentes teorias que definem as espécies tributárias, no entanto a mais adotada pela doutrina pátria2 e pelo Supremo Tribunal Federal é a denominada de pentapartida, pentapartite, ou quinquipartite dos tributos.
Nesse sentido, a referida e majoritária teoria, classifica e divide os tributos em cinco espécies tributárias, a saber: Impostos, Taxas, Contribuições de melhoria, Contribuições especiais e Empréstimos compulsórios.
O gráfico abaixo demonstra claramente o gênero (tributo) e suas espécies (espécies tributárias), com base na referida teoria pentapartida, in totum:
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 145, idealiza que a incumbência de instituir os impostos, as taxas e contribuições de melhoria é da União, dos Estados, Distrito Federal e dos municípios.
As Contribuições especiais e os Empréstimos compulsórios estão previstos nos artigos 148, 149 e 149-A da Constituição federal, no entanto diferentemente dos demais, estas duas espécies tributárias só poderão ser instituídas pela União.
Assim, tendo em vista o conhecimento obtido sobre tributo, e suas espécies, passaremos doravante a analisar, pois, quais são e especificamente àquele que é o objeto principal nesta obra.
Impostos
Conforme já descrito, imposto é mais uma das espécies tributárias existentes e para definir seu conceito, faz-se mister dizer que conforme disposto no artigo 16 do Código Tributário Nacional, o imposto é o tributo que tem por fato gerador uma situação estatal específica, relativa ao contribuinte, ou seja, para que haja o nascimento da incidência da obrigação tributária pelo contribuinte, é necessário que este realize o fato gerador diretamente ligado ao respectivo tributo, que está previsto em lei.
O fato gerador do imposto é, por definição, uma situação jurídica do sujeito passivo ou uma atividade que ele desempenhe. Além disso, os impostos não possuem caráter retributivo, mas sim contributivo, encontrando-se utilizados com a finalidade de adquirir recursos para financiar os serviços públicos e outros gastos públicos nas esferas Estaduais, municipais, do Distrito Federal e da união.
Então, tendo em vista o conhecimento aqui adquirido sobre o significado da espécie tributária Imposto, que é o objeto a ser estudado no presente artigo, vejamos quais impostos existem e a quais entes são respectivamente devidos.
Na esfera Federal existem, diversos impostos, dentre eles, os principais são:
II - Imposto sobre a importação de produtos estrangeiros;
IE – Imposto de exportação;
IOF – Imposto sobre operações financeiras;
IPI – Imposto sobre produtos industrializados;
IRPJ – Imposto de renda sob pessoa jurídica;
IRPF – Imposto de renda sob pessoa física;
ITR – Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural;
INSS – Instituto nacional do seguro social;
IGF – Imposto sobre grandes fortunas;
Impostos residuais;
IEG – Imposto extraordinário de Guerra;
Já na esfera Estadual, existem os seguintes impostos:
IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores;
ITCMD - Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação;
ICMS – Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços;
Por fim, na esfera municipal nós temos os seguintes impostos:
ITBI - Imposto sobre Transmissão de Bens Inter Vivos;
IPTU – Imposto sobre a propriedade predial e territorial Urbana;
ISSQN – imposto sobre serviços de qualquer natureza;
Conforme se pode observar, há uma divisão de competências no que tange aos impostos. Aqui, o objeto de estudo é o ISSQN e sendo assim, faz-se mister detalhar esse imposto:
O imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), está previsto no artigo 156, inciso III da Constituição Federal, que determina o seguinte, in verbis:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993).”
Conforme se observa, o ISS, está na competência legal dos municípios e do Distrito Federal.
Este imposto deverá ser definido em lei complementar3, conforme determinado no referido artigo da carta magna, portanto, a lei complementar responsável por esta questão é a de nº 116 de 2003, sendo, portanto, óbvio que seu fato gerador será a prestação dos serviços elencados na lista anexa da referida lei4.
Um ponto interessante, são as hipóteses em que não há a incidência de fato gerador deste imposto, assim, basicamente aos serviços não constantes no rol da lista anexa da lei 116/03, os serviços de transporte interestaduais, de comunicação e os intermunicipais, a remuneração de trabalho, por tratar de prestação de serviços na forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte (art.9º, §1º, do decreto - lei 406/68) e por fim, do serviço de locação, conforme determina a súmula vinculante 31 do STF, in verbis:
“Súmula Vinculante 31 - É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis.”
Assim, a incidência de ISS sobre operações de locação de bens móveis fere a mencionada súmula vinculante, violando não só a jurisprudência pátria, mas também a Carta Magna, pois adiante será demonstrado a definição de serviço ante a Constituição Federal.
Definição de serviço
Uma das melhores maneiras de se abstrair o sentido de uma palavra, é através de seu significado e sendo assim, a palavra “serviço”¹, significa ação ou efeito de servir, de dar algo em forma de trabalho para terceiros.
A definição de serviço é fundamentalmente importante para se tomar ciência sobre as ocasiões em que há ou não a incidência de ISS, posto que além da definição genérica, faz-se necessário mencionar a descrição jurídica e Constitucional para o tema.
De acordo com o recurso extraordinário 116.121-3/SP (DJ de 25 de maio de 2001), O Supremo Tribunal Federal (STF) acatou, por maioria de votos, com base no art. 110 do Código Tributário Nacional (CTN) e na Constituição, o conceito civilista de serviço, que é considerado sendo uma obrigação de fazer.
Além disso, os ministros Marco Aurélio e Celso de Melo, definiram serviço das respectivas e seguintes maneiras em seus votos:
“Em síntese, há de prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do tributo em comento”.
[...] “eis que o ISS somente pode incidir sobre obrigações de fazer, a cuja matriz conceitual não se ajusta a figura contratual da locação de bens móveis.”
Conforme se observa na explanação feita pelo ministro Marco Aurélio, deve haver um esforço humano para que ocorra o fato gerador de ISS, e além disso, o ministro Celso de Melo, leciona e determina que o mencionado imposto não deve incidir sobre a figura contratual da locação de bens móveis, o que foi posteriormente sumulado pela já mencionada sumula vinculante 31.
O Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição Federal como Lei Complementar, ainda que promulgado como Lei Ordinária. Sendo assim, seu efeito é de complementar algo à Carta Magna.
Nesse sentido, vemos que no artigo 109 do CTN, temos que a definição de serviço deve ser definida pelo Direito Civil, in verbis:
“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários”
Nesse sentido, o signo “serviço” no Direito Tributário, segue a definição do Direito Civil, e para tanto, serviço é de fato uma obrigação de fazer, e não uma obrigação de dar. Assim dissertam também os doutrinadores Aires Barreto, e Orlando Gomes, in verbis:
Aires Barreto:
“A distinção entre dar e fazer como objeto de direito é matéria das mais simples. Basta - aos fins a que nos propusemos - salientar que a primeira (obrigação de dar) consiste em vínculo jurídico que impõe ao devedor a entrega de alguma coisa já existente; por outro lado, as obrigações de fazer impõem a execução, a elaboração, o fazimento de algo até então inexistente. Consistem, estas últimas, num serviço a ser prestado pelo devedor (produção, mediante esforço humano, de uma atividade material ou imaterial) [...]” 5
Orlando Gomes:
“Nas obrigações de dar, o que interessa ao credor é a coisa que lhe deve ser entregue, pouco lhe importando a atividade de que o devedor precisa exercer para realizar a entrega. Nas obrigações de fazer, ao contrário, o fim que se tem em mira é aproveitar o serviço contratado.” 6
Portanto, resta claro que serviço constitui uma obrigação de fazer, e conforme demonstrado, o streaming se resume em obrigação de dar.
Além disso, norma de proteção à propriedade intelectual de conteúdo áudio e vídeo, são conferidos às obras literárias pela legislação de direitos autorais, e nos termos do artigo 3º da lei 9.610/98 e do artigo 5º, inciso VIII, alínea i), os direitos autorais reputam-se, para os efeitos legais, bens móveis.
Posto isto, áudios e vídeos são considerados como bens móveis por força da lei, e sendo assim, sua disponibilização sem censura mediante mensalidade, além se ser uma obrigação de dar, trata-se de locação.
A incidência de ISS sobre o streaming, conforme demonstrado, é inconstitucional, pois assim se qualifica na doutrina e a na jurisprudência. Entretanto, o ex-presidente Michel Temer, sancionou a lei complementar 157 de 2016, que incluiu o item 1.09 da lista anexa da lei 116 de 2003, que define como serviço a disponibilização de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet como serviço, in verbis:
“1.09 - Disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS). (Incluído pela Lei Complementar nº 157, de 2016).”
Tal ato fere a constituição e a decisão já consolidada pela suprema corte.
Conclusão
O termo “serviço” equivale a uma “obrigação de fazer”, um esforço humano empreendido em benefício de outrem, já a obrigação de dar, resume-se no vínculo jurídico que impõe ao devedor a entrega de alguma coisa já existente7.
Destarte, sendo os conteúdos de áudio e vídeo considerados como bens móveis no Direito privado, a partir do momento em que há sua disponibilização através da tecnologia streaming, onde conforme já mencionado, o cliente acessa seus conteúdos sem que realize o download, nitidamente estamos diante de uma locação de bens móveis.
Embora a locação conste como fato gerador do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza no item 3.04 da mencionada lei complementar 116 de 2003, no STF e no STJ o entendimento é unânime quanto a não incidência de ISS sobre locação.
Assim, a Ação Direta de Inconstitucionalidade é uma das ações cabíveis para sanar este equívoco cometido pelo legislativo ao acrescentar esta hipótese de incidência na lista anexa da revelada lei complementar.
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1 Carlos Manuel Cunha de Jesus Adão, Tecnologias de Streaming em Contextos de Aprendizagem, mestrado em sistemas de informação, Capítulo 2, páginas 18 à 23. 2003 a 2005.
2 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 25. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
3 ALEXANDRE MAZZA, manual de Direito Tributário 5ª edição, Capítulo 9, páginas 447-449, 2019.
4 PAULO DE BARROS CARVALHO, Direito Tributário Linguagem e Método, página 790, Capítulo Competência legislativa e ISS, 5ª edição, Noeses 2013.
5 Aires Barreto, O ISS na Constituição e na lei. 3ª edição. São Paulo: Dialética, 2009, p. 43.
6 Orlando Gomes, Obrigações, Rio de Janeiro, Forense, 1961, p. 67.
7 BEVILACQUA, ob. cit., p. 54; DINIZ, ob. cit. p. 86; GOMES, ob. cit., p. 67; MONTEIRO, ob. cit., p. 95; PEREIRA, 1990, p. 38.
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*Lucas Perez Echeimberg é advogado tributarista e aluno da pós-graduação da PUC/SP em Direito Tributário.