Migalhas de Peso

A fantástica fábrica aleatória de princípios aleatórios

O Direito, mais precisamente, se tornou uma fábrica de princípios para todas as ocasiões, produzidos a torto e a direito – mais a torto, na verdade, do que a direito.

19/2/2020

Se o universo é finito, o tempo é eterno – retorno! E se os recursos são escassos, a imaginação não acaba – jamais! A dos nossos scholars, v.g., é prodigiosa, e eles são o DNA da Constituição Federal de 1988. De fato, a) numa constituição holística, que convola tudo em questão constitucional ou inconstitucional - a depender do freguês; b) numa constituição dirigente, por meio da qual tudo já foi de antemão fixado por autoridades transcendentais e desígnios centrais; e c) numa constituição acadêmica, onde as respostas já estão todas lá, à espera de teses que desvelem o ser - esse ermitão habitante da Floresta Negra que veio buscar abrigo e refúgio no calor dos trópicos -, a vida não é preenchida e atualizada debaixo para cima com dinâmicas espontâneas sociais, mas de cima para baixo com ideologias de princípios. E todo dia inventa-se um novo. Basta ler os noticiários diários e os textos jurídicos produzidos. O Direito já não é uma superestrutura que visa garantir, a partir do primado da lei, a fluência e o respeito às relações de trocas – por isso segurança jurídica e por isso previsibilidade jurídica; antes ele é fator de incerteza e insegurança na infraestrutura. O Direito se transformou numa técnica olímpica e rarefeita de poder, quer dizer, in se stante e divorciada da realidade da vida. O Direito, mais precisamente, se tornou uma fábrica de princípios para todas as ocasiões, produzidos a torto e a direito – mais a torto, na verdade, do que a direito.

É claro que a essa altura do campeonato não se pode negar a realidade normativa dos princípios. Mas é claro que há limites para tudo, sobretudo para a paciência alheia – e o que se vê hoje é um festival abusivo e chocho de tropicalias jurídicas. E é claro também que não se trata apenas de ocas elucubrações acadêmicas a partir de velhas cartilhas de fé emboloradas. O ponto é: nada disso é inocente; a questão é mais alta. Há um discurso de poder subjacente – e latente. Muito cedo se descobriu que estabelecer leis é pouco – e muitas vezes é mesmo quase nada. Mais poderoso é interpretá-las, quer dizer, aplicá-las. E mais poderoso ainda do que interpretar as leis é transformar o mundo, interferindo sem cerimônia nas relações e definindo o quê e como as coisas são e devem ser. Com isso, a décima primeira tese sobre Feuerbach fica salva (embora o mundo de Feuerbach já tenha desmoronado há muito tempo). Os juízes são hoje os seus missionários. Depois da debacle do legislativo e do executivo, eles são os novos ungidos da República - e os últimos bastiões do publicismo intervencionista. Como sacerdotes, detêm as chaves para atar e desatar todas as coisas debaixo do nosso sol tropical. E o aparato de que se servem para esse mister salvífico – notadamente o aparato do discurso principiológico – é sofisticado e dúctil o suficiente para se permitir levar qualquer coisa para qualquer lugar a qualquer hora, a depender da direção para qual se quer ir. Introduziu-se, com isso, a implícita cláusula macunaímica: o que é, é assim ... ou não! É a lei que garante aos indivíduos uma esfera de inviolabilidade no interior da qual eles podem exercer suas escolhas com segurança. Mas a cláusula do “ou não”, com uma galhofada, derruba o primado da lei, derruba qualquer ambiente de segurança, derruba garantias básicas da pessoa. De certo modo, isso era um desfecho prenunciado, e que tomaria lugar mais cedo ou mais tarde, haurido da nossa matriz cultural.  Afinal, se somos todos enganados, não nos tornamos por isso mesmo enganadores? Não é essa a moral do nosso anti-herói tupiniquim que silenciosamente moldou nosso modo de ser?

Depois, então, da jurisprudência dos interesses e da jurisprudência dos valores, temos hoje, de modo profusamente consagrado (com os aplausos da mídia, o delírio da academia e para gáudio da comunidade jurídica), a jurisprudência do principismo, calcada em acentuado voluntarismo, engajado em realizar justiça distributiva - atropela-se, v.g., inter alia, o contrato em nome do princípio da função social do contrato. No fundo, esse justicialismo desvia o foco da ineficiência do Poder Público e, com isso, visa preservar seu status diferenciado (de privilégios vários, auxílios de todos os tipos, irredutibilidades de vencimentos, estabilidades na função, isonomias das remunerações, aposentadorias cheias - e muitas vezes precoces -, etc). De fato, ao mesmo tempo em que se protege a arca trilionária do Estado, na mais genuína tradição da nossa doutrina autoritária -  que ainda hoje lança mão dos super trunfos retóricos da supremacia do interesse público, da indisponibilidade do interesse público, das presunções de legitimidade e legalidade dos atos administrativos, das cláusulas exorbitantes, etc -, a) mira-se no velho alvo (fruto de antigo ressentimento de folhetim, com origem no fetiche da mercadoria, que gera a alienação do indivíduo e blá blá blá); b) mira-se em quem está no meio; c) mira-se nos sem-garantia-nenhuma: empresários, autônomos, trabalhadores independentes; d) mira-se, enfim, na livre iniciativa, e em quem simplesmente quer produzir, e obter lucro, e gerar riqueza, e reinvestir resultados, e incrementar seu padrão e também o da sociedade. Basta consultar a jurisprudência tributária (e a fazendária, de um modo geral); basta consultar a jurisprudência em saúde suplementar, que hoje deve fazer às vezes do SUS, um sistema absolutamente falido. Basta, por todas, consultar a jurisprudência consumerista. O Código de Defesa do Consumidor, aliás, é o ópio do publicismo: com ele o Poder Público salva e lava todas as suas omissões e todas as suas promessas não cumpridas, anestesiando a sociedade. Mas isso fica para depois. No fundo, no fundo, esse justicialismo não é diferente – e como poderia ser, se a cultura é a locomotiva que puxa o trem da história? – da nossa literatura da lamúria, da nossa música do vitimismo, e do nosso cinema do distributivismo. E assim giramos em círculo, e para trás (algo que não deixa de ser uma proeza), há décadas, na marcha estacionária do progressismo do atraso.

É verdade: tudo que é, quer ser mais. E todo poder quer mais poder – ele quer abusar do poder. Mas a República é justamente um pacto político de limitação do poder. E a Federação é uma forma qualificada dessa limitação. Sejamos, então, republicanos: e, se puder, federalistas: sejamos menos. Começando pelo domínio do direito, que se guarde uma fidelidade semântica mínima - isso é o minimum minimorum; e que essa fidelidade semântica sirva de firme guia epistêmico e hermenêutico: que o direito – como está na etimologia do seu étimo – seja mais direto e reto, e menos tortuoso, e menos recurvo, e menos rocambolesco, e menos principesco. Não é vergonha falar-se em pacta sunt servanda; não é vergonha honrar o que se pactuou; não é vergonha que as coisas sejam como elas foram previamente pactuadas. É claro que com isso não se advoga aqui a supressão da ética ou o reino da selva - esse é o argumento in extremis preferido dos detratores da liberdade, calcado numa petição de princípio: post hoc ergo propter hoc. E que seja extirpada a cláusula implícita do não confiar e do não ser confiável. Que o acesso à Justiça, e toda a banalização que se construiu em torno dele, não seja um jogo de azar, muitas vezes a alimentar indústrias de indenizações. Aliás, e ainda na linha minimalista, que as instituições sejam menos. Afinal, o STF não é o Olimpo dos deuses pagãos da Grécia antiga – e Ministros não são sacerdotes, nem Conselheiros Áulicos, nem comentaristas políticos, nem guardiões da moral, são apenas juízes; o TCU não é o STF; as agências não são TCU; o MP não é Poder (é função); e a OAB não é MP (também é função).

No plano pedagógico, que se reformulem urgentemente as grades escolares e universitárias: que haja menos teorismos untuosos de laboratório e mais vida real, quer dizer, mais vida rente à vida, ao nível do rés do chão, e mais história e senso crítico e mente aberta, para que se possa aprender com os erros do passado. O Direito não é uma realidade em si. Estado de Direito é um estado de racionalidade, clareza e certeza. No mundo bicameral da cultura, o irracional e o criativo cabem à arte – ela é que efetivamente traz a verdadeira mudança nos usos e costumes. No mundo da política, a mudança se dá com a lei, e a lei existe para trazer segurança. Jurisdição não é lugar para estripulias inventivas; nem momento para poesia social; nem técnica de transformação do mundo. Se for, ter-se-á, aí, talvez, a mais perigosa das tiranias. Que sejam, então, praticados exercícios simples e objetivos (e ver-se-á como, na verdade, eles são complicados, ou até mesmo impossíveis). Quer fazer algo? Tente reunir os fatores de produção. Constitua uma empresa, e veja o que é preciso para isso: vencer burocracias, pagar taxas, recolher massivos impostos, e contribuições, honrar folhas de salários, administrar custos e passivos, gerir equipes, performar qualidade e eficiência, superar a concorrência, provisionar incertezas e riscos, etc. Depois compara tudo isso - o que você deve dedicar e investir - com o que o Estado – que se constituiu como um Prometeu de promessas – oferece. E fiquemos apenas com as promessas básicas, com as mínimas: segurança, saúde, educação e saneamento básico. A conclusão incontornável é a de que também isso são custos que se transferem ao indivíduo e oneram a sua carga vital. Em suma: o Estado é um sócio nada oculto – antes, bem ostensivo e tentacular - que fica com mais de 50% do que se faz e oferece praticamente nada em troca.

No plano ético, que se cultive efetiva e finalmente uma ética do trabalho; não uma ética do trabalho da prodigalidade de entitulamentos sem provisão, tal como fez a CF de 1988 – e há trinta anos (essa é a sua saga) ela vai se auto desidratando e expurgando todos os seus excessos de xenofobia, nacionalismos, monopólios e catálogos utópicos de direitos sem lastro –, e tal como o Poder Público faz com políticas demagógicas voltadas para a manutenção desse estado de servidão e clientelismo entre sociedade e Estado (Nietzsche, aliás, argutamente identificou o psicologismo que jaz por detrás das políticas dadivosas; o grande problema de quem dá muito – sobretudo com dinheiro público – é que, num determinado momento, não necessariamente depois de muito tempo – pode ser bem rápido isso – ele se acha em condições de, na medida em que dá, reter para si também boa parte como taxa pela sua benevolência). Não uma ética de trabalho como indenização, e revanches históricas, e correção do passado (simplesmente porque não se corrige o passado). Não uma ética do trabalho que faz girar a roda para trás e não consegue olhar para frente. Que seja uma ética do trabalho como produção; e mais do que produção, como criação; e mais do que criação, como autotelia, isto é, como construção de futuro e autodesenvolvimento da pessoa; que não sejam mais aceitas as fórmulas definidas por autoridades transcendentais (essa é a essência do Iluminismo); e que sejam abandonados, de uma vez, os discursos ressentidos dos Velhos do Restelo e dos espíritos de gravidade, sempre a nos puxarem para baixo, e sempre a acharem que sabem o que é melhor para todos. Ninguém, afinal, pode ser tolhido da liberdade de ter uma boa ideia e de persegui-la. Não existe distinção ontológica simplesmente porque não existe esse ser fluido e enigmático que em algum algures brinca de esconde-esconde. Isso não é mais do que surrado platonismo. Todo ser quer ser alguma coisa. Ademais, o homem se realiza no fazer. É isso que dá sentido ao sem sentido da vida. Essa é mensagem do Candido. E é claro que, para entendê-la, precisamos de uma nova literatura, que inspire uma nova cultura, já exorcizada do fantasma de Macunaíma – que nos assombra há quase cem anos e que nos legou um saldo devastador de inépcia, ócio, ocultismo, jeitinho, estagnação e pobreza.

Por fim, no plano filosófico-humanitário, que se respeite a pessoa – sem o que nada disso do que foi exposto acima será possível. Que a pessoa em sua dignidade não seja ainda e apenas mais um esgarçado e vazio princípio acadêmico, sem nenhuma ressonância real. Porque constituição não é constitucionalite – nem tudo é constitucional; não cabe à constituição definir tudo; problemas não são resolvidos com a mera proclamação de direitos; e nenhuma constituição pode engessar as gerações futuras. E democracia, por sua vez, não é democratismo, isto é, a democracia do Poder Público, orientada por uma direção central a partir de seus canais institucionais. Até porque esses canais estão poluídos e corrompidos. Quando menos, enferrujados e obsoletos. A constituição-que-constitui-a-ação sabe a refluxo amargo de religião decaída. Quem, afinal, constitui a ação? Scholars? Ministros? Autoridades transcendentais? Os iluminados que encontraram a fórmula do amor para a humanidade? Tudo isso é misticismo hermético. E o problema consiste justamente nisso aí, que foi a grande falácia de Rousseau (O Contrato Social): introduzir Eros (o solidarismo compulsório) como fundamento da República. Porque o amor quer tudo (“... chacun se donnant tout entier ... chacun se donnant à tous ne se donne à personne ...”). E quando ele invade a política, ele totaliza a Vontade Geral, tornando-a, quando não totalitária, ao menos totalizante. Mas existem várias formas de amar. E cada um deve buscar a sua; cada um deve ter a liberdade de buscar a sua.

Num mundo, então, sem mais narrativas oficiais, democracia não pode ser senão o fortalecimento da prática diária de consensos entre indivíduos. Fomentar e proteger esses consensos é o cerne do exercício democrático. O compromisso democrático é, portanto, essencialmente um compromisso com vínculos de respeito – e não com vínculos eróticos. Menos substitutos, então, menos intermediários, menos representantes, menos autoridades sub-rogatórias, e mais espaço para o indivíduo. O Estado, afinal, não existe: é uma ficção! O que há são agentes estatais, nem sempre missionários, e muitas vezes corsários. E se a sociedade civil se tornou hermenêutica, não é a hermenêutica da sociedade civil que prevalece hoje nas suas relações vitais, diretas e espontâneas. Na verdade, a sociedade civil entregou tudo à Constituição Federal e se encolheu, impotente e apática, sempre nessa espera de um carimbo público, segundo também a nossa mais hereditária e inextirpável tradição patrimonialista-mercantilista. Mas a sociedade aberta não é a sociedade que entrega tudo ao Estado; sem liberdade de fazer a própria liberdade política fica esmaecida. E hoje ainda se acena – por ora aos pouquinhos, na melhor técnica gramsciana de ir comendo o prato pelas beiradas – a ideia do Iluminismo Público, o que seria o paroxismo da escalada de protagonismo e autoritarismo do Estado. Se esse dia chegar, já não seremos mais súditos-destinatários-e-pacientes do publicismo, mas seremos rebaixados à condição de zumbis da República. Enquanto isso, assistimos ou procuramos saber resignados às quartas-feiras (e às quintas-feiras também) qual foi o último edito que o STF -cuja jurisprudência mais do que petrificada não julga direitos e garantias individuais na via do controle difuso porque se entende ali que isso não é matéria constitucional!?!?, eis o nosso grande paradoxo democrático - baixou na tábua de valores afixada no Monte Sinai de Brasília. Na prática, a vida se tornou muito chata, mas não sem emoção, refém de palavrórios escolásticos. E assim vivemos diariamente o Dia da Marmota dentro dessa fantástica fábrica aleatória (e incontrolável) de princípios aleatórios. E, segundo a sabedoria popular, quando o árbitro é o personagem da partida, é sinal de que o jogo foi muito ruim. É sinal de que não valeu a pena o ingresso.

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*Bruno Di Marino é advogado do Basilio Advogados.

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