Migalhas de Peso

O clube-empresa e a sociedade anônima do futebol

A transformação dos clubes de futebol como mero artifício para se beneficiar da tributação favorecida, parcelamentos e deduções fiscais não levará o futebol brasileiro a mudanças positivas, pois é o olhar do investidor que julgará a eficácia das medidas tomadas pelos clubes no sentido de avançar para uma nova sistemática mais profissional.

13/2/2020

As denominações “clube-empresa” e “sociedade anônima do futebol – S.A.F” foram criadas por dois projetos de lei (“PL”) que tramitam atualmente no Congresso Nacional e que incentivam a mudança da estrutura administrativa e do regime tributário dos clubes de futebol brasileiros: PL 5082/16 da Câmara dos Deputados, que cria o clube-empresa (“PL Clube-Empresa”); e o PL 5.516/19 do Senado Federal, que cria a sociedade anônima do futebol – S.A.F. (“PL SAF”).

Ambos os projetos de lei têm como pano de fundo a intenção de transformar as atuais associações desportivas de futebol em sociedades empresárias, oferecendo, em contrapartida, benefícios fiscais, parcelamento de débitos com expressiva redução de multa, juros e completa isenção de encargos legais, possibilidade de recuperação judicial e um regime especial de administração e pagamento de débitos trabalhistas1.

Os clubes de futebol são em grande parte constituídos como associações. Em linhas gerais, as associações são entidades formadas por um grupo de pessoas que se reúnem para determinado fim e que tem por característica própria não possuir fins lucrativos. Vale notar que não possuir fins lucrativos é bastante diferente de não ser lucrativa. As associações podem ser muito lucrativas, porém não podem repassar estes lucros a seus associados, pois estes devem reinvestir os lucros nas próprias atividades da associação. As sociedades empresárias, por outro lado, são o instrumento legal mais adequado e disponível na lei brasileira para transferir lucros a seus sócios. A premissa das sociedades empresárias, aliás, é a busca do lucro.

As associações são regidas por estatuto social próprio e possuem poucas obrigações de governança corporativa que advêm da lei. Significa dizer: na prática, as regras das associações são elaboradas e fiscalizadas por seus próprios associados. Neste sentido, as normas de gestão interna das associações possuem, em geral, poucos sistemas de freios e limites de governança, o que as deixa vulneráveis as atitudes de seus diretores e conselheiros - os quais usualmente também figuram na posição de associados.

Diante desse contexto e com o objetivo de profissionalização do futebol brasileiro, os projetos de lei apresentados trazem regras que incentivam a transformação2 das associações em sociedades empresárias. A expectativa é que, havendo regras na lei que disciplinam as sociedades empresárias em termos de mínima governança corporativa, transparência e responsabilidade dos gestores, maiores as chances de organização dos clubes e menores serão as influências negativas de terceiros na empresa.

Neste mesmo sentido, a transformação das associações em sociedades empresárias possibilita o ingresso de sócios investidores nos clubes de futebol, os quais podem, além da própria injeção de investimentos privados no esporte, exercer efetivo poder de controle da atividade e fiscalização permanente dos administradores destes clubes, os quais seriam mais exigidos em critérios de meritocracia em contraposição aos critérios políticos muitas vezes utilizados no mercado futebolístico brasileiro.

A tentativa de profissionalizar o futebol por meio de benefícios (primordialmente) fiscais não é nova. A lei 13.155/15, conhecida como “PROFUT”, encontra-se atualmente em vigor e dispõe sobre diversos instrumentos para impor maiores limites aos dirigentes de associações de clubes de futebol, regras de transparência e incentivar investimentos em atividades sociais. Até mesmo uma entidade especial – a Autoridade Pública de Governança do Futebol – APFUT – foi criada com a mencionada lei visando corrigir as distorções do setor.

O PROFUT não possui, todavia, a exigência de transformação dos clubes em sociedades empresárias para gozar dos benefícios que a lei dava, o que acabou por não ser tão efetivo quanto se esperava em termos de profissionalização do futebol. É neste contexto de mais uma tentativa de mudança que os projetos de lei estão inseridos.

Diversas são as diferenças entre o PL Clube-Empresa e o PL SAF. Enquanto o primeiro tem poucas exigências quanto ao sistema de governança corporativa e maior ênfase nas questões das dívidas dos clubes e as formas de solucioná-las, o segundo tem foco nas regras societárias que contemplam, entre outros assuntos, formas e quóruns de votação da sociedade, a influência do clube e seus dirigentes na nova empresa e o funcionamento de Conselho Fiscal e de Administração. O PL SAF possui, ainda, a previsão expressa de que as novas sociedades do futebol emitam debentures com regras especiais como forma de se financiarem.

As semelhanças dos projetos de lei, entretanto, ficam claras na tentativa de “salvar” os clubes das atuais condições de endividamento, implementando parcelamentos de dívidas com claros benefícios, assim como na criação de sistema unificado de tributos federais sobre as receitas com futebol, cuja alíquota escolhida, para ambos os projetos de lei, é de 5% sobre a receita com o esporte. Tudo isso sob a condição de o clube transformar-se em uma sociedade empresária.

Outrossim, os projetos de lei possibilitam a utilização de benefícios fiscais (dedução da receita tributável) para as novas empresas futebolísticas que investirem em programas sociais de incentivo ao esporte, bem como criam, em complementação ao que já existe na lei societária, regras mais claras e impositivas quanto a publicação de atos das administrações, como forma de manter os torcedores, imprensa e interessados mais informados sobre como as receitas do clube vêm sendo utilizadas.

No intuito de trazer maior didática às matérias tratadas no PL Clube-Empresa e no PL SAF, a Tabela abaixo traz os itens mais relevantes para uma visão ampla do objeto das potenciais novas legislações:

A transformação das associações em sociedades empresárias no contexto do futebol não se apresenta como a salvação para a boa governança dos clubes, mas pode significar um avanço. Mais que a imposição de regras a serem seguidas pelos clubes, a possibilidade de atração de investimentos é o melhor caminho para a profissionalização do esporte no Brasil, pois as limitações mais importantes não serão aquelas definidas pela lei, mas sim pela própria relação contratual que os investidores certamente exigirão dos clubes de futebol para ter a segurança necessária ao investimento no Clube-Empresa ou SAF.

 

A transformação dos clubes de futebol como mero artifício para se beneficiar da tributação favorecida, parcelamentos e deduções fiscais não levará o futebol brasileiro a mudanças positivas, pois é o olhar do investidor que julgará a eficácia das medidas tomadas pelos clubes no sentido de avançar para uma nova sistemática mais profissional. O mercado da bola precisa aprender o que o ditado popular já ensina “Dinheiro não aguenta desaforo”. O mercado também não.

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1 Os benefícios são definidos em cada PL, conforme tabela didática deste artigo.

2 O termo “transformação”, no contexto em que está inserido no texto, não possui apenas o sentido técnico jurídico de transformação de tipo societário, posto que o PL 5082/16 menciona as seguintes operações societárias para a associação tornar-se um Clube-empresa: a própria transformação, mas também a cisão, incorporação e fusão.

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*André Luiz Marquete Figueiredo é advogado de direito societário e tributário do escritório Esmerelles | Figueiredo Advogados.

*Eduardo Figueiredo Queiroz é advogado de direito societário e tributário do escritório Esmerelles | Figueiredo Advogados.

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