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Os insondáveis mistérios da junk science

A influência da prova pericial sobre a decisão judicial é muito grande, tamanha sua capacidade de persuadir o juiz, alguém que, a rigor, não dispõe de elementos técnicos para colocar em xeque as conclusões do perito. Daí que a vinda da prova para o processo deve ocorrer mediante controles que permitam confiar que a prova periciada é mesma encontrada na cena do crime (mesmidade).

10/2/2020

Toda profissão tem alguns pecadilhos que se fossem revelados ninguém mais confiaria em profissional nenhum. A justiça penal é rica nisto. Um deles é sem dúvida a prova pericial. Se a população soubesse o tratamento que costuma ser dado à prova pericial – não só no Brasil – ninguém mais contratava advogado, ajuizava ação, enfim, ninguém mais acreditava na justiça. Como todos de certa forma precisamos que a justiça goze de alguma dose de credibilidade, é comum ouvir o advogado ou o promotor criticarem a perícia feita em um ou outro caso, mas é raro ouvir alguém desqualificar por completo o trabalho pericial que usualmente se realiza no país.

Advogados e juristas sempre foram muito ciosos da defesa das regras do devido processo legal, mas são poucos os que se dedicaram a estabelecer um certo padrão de qualidade da prova, matéria sempre relegada à casuística.

A perícia, não raro, vem acompanhada de uma dose enorme de subjetivismos inaceitáveis em uma prova científica. Já vi perito fazer laudo concluindo pela culpa do réu pela análise dos depoimentos que constam dos autos. Em caso cuja controvérsia era se a vítima havia cometido suicídio ou se fora homicídio, chegou aos autos exame de balística, que em vez de se ater à trajetória dos projéteis, presença de pólvora nas vestes e outras questões científicas, resolveu enveredar pela prova oral para ao final concluir pela ocorrência do homicídio (ou seja, em vez de emitir laudo, emitiu um veredito).

Fato é que a influência da prova pericial sobre a decisão judicial é muito grande, tamanha sua capacidade de persuadir o juiz, alguém que, a rigor, não dispõe de elementos técnicos para colocar em xeque as conclusões do perito.

Daí que a vinda da prova para o processo deve ocorrer mediante controles que permitam confiar que a prova periciada é mesma encontrada na cena do crime (mesmidade).

Há muitos anos, defendi no júri um réu acusado de homicídio. Ainda na fase de inquérito, ele fora chamado a depor e, perguntado se possuía arma de fogo, respondeu que sim. No dia seguinte, a pedido da autoridade policial, dirigiu-se à delegacia e entregou a arma. Feita perícia na arma, o confronto balístico deu positivo. Era a arma do crime. Mas como seria possível? Por que o autor do crime levaria a arma usada no homicídio para que a polícia a periciasse e o incriminasse? Nada daquilo fazia sentido. Foi a primeira vez que ouvi falar em quebra de cadeia de custódia da prova, tese que foi brilhantemente explorada pelo advogado Thiago Gomes Anastácio, meu companheiro de vida e de tribuna.

Anastácio conseguiu demonstrar aos jurados que o exame pericial era imprestável pois os projéteis colhidos na cena do crime não foram lacrados. Foram transportados de um lugar para outro, sempre sem lacre, permaneceram jogados num armário da delegacia, sem nenhuma preservação. Como saber se os projeteis periciados eram os mesmos colhidos na cena do crime?

Da mesma forma a arma entregue pelo réu não recebeu nenhum tipo de cuidado que permitisse preservar sua integridade. Nada impedia que alguém querendo incriminá-lo produzisse novos disparos e colhesse novos projeteis para a perícia. Sem lacre, não havia cadeia de custódia da prova, e sem cadeia de custódia da prova, não se poderia garantir a integridade da prova, e não havendo certeza sobre a integridade da prova, a perícia sobre a prova é inútil. Foi esta a tese que foi sustentada com sucesso naquele plenário do júri. Como argumento Anastácio lembrou ao júri que o juiz que presidia a sessão só estava sentado ali porque prestou um concurso, que é um processo de seleção válido porque respeita uma séria de cadeias de custódia das provas (prova aqui no sentido de teste de conhecimento). Fez os jurados refletirem sobre a relevância do lacre em um país democrático, fazendo o paralelo dos projéteis com as urnas eleitorais.

O júri leva prova pericial a sério. Nem todo juiz é assim. Os jurados acolheram a tese de negativa de autoria e o réu foi absolvido.

Alguns anos depois daquele júri, fui procurado para defender um acusado de crime financeiro. O Ministério Público Federal lhe atribuía a titularidade de uma conta bancária em um banco em Curaçao. Nos registros do banco havia um e-mail que o vinculava à conta. Por meio de cooperação internacional, a Holanda enviara para o Brasil arquivos digitais contendo toda a movimentação da conta. O réu respondia por evasão de divisas e lavagem de dinheiro.

Muito embora a cadeia de custódia da prova ainda fosse um tema novo e pouco explorado nos tribunais, chamou a atenção o registro que um funcionário do MPF fez nos autos. Ao receber o os arquivos digitas, ele passou um código HASH, uma espécie de lacre digital. O curioso é que ninguém antes dele se preocupou em adotar algum procedimento de garantia da integridade da prova. Decidi chamá-lo para depor.

Na audiência fiz perguntas técnicas sobre o código HASH e enalteci a sua preocupação com a cadeia de custódia da prova, angariei a concordância e a simpatia do funcionário, que estava orgulhoso do seu zelo com a prova. Ao final, lancei a pergunta decisiva. “O senhor pode garantir a integridade desta prova, antes de ter chegado ao MPF ”? Por tudo que já havia respondido, não havia como dizer outra coisa senão um sonoro não. A prova cruzou o Atlântico duas vezes, de Curaçao para a Holanda e da Holanda para o Brasil, passou pelo Ministério das Relações Exteriores e chegou ao MPF sem nenhum procedimento de resguardo da sua integridade.

Não era possível garantir que as movimentações detectadas pelas autoridades holandesas eram as mesmas que chegaram meses depois às mãos do MPF. A prova era absolutamente imprestável. Mas o juiz da causa não eram os sete jurados comprometidos apenas com a justiça do caso, era um jovem e desconhecido juiz federal de uma seção judiciária do sul do país, que anos depois viria a ganhar fama internacional pelo trabalho na Operação Lava Jato. O réu foi condenado. Nada foi dito na sentença sobre a alegação de quebra de cadeia de custódia da prova.

Mais recentemente patrocinei, a convite de um colega, um caso que coincidentemente também era originário da famosa vara de Curitiba. O caso versava sobre supostos crimes de peculato e corrupção envolvendo o tribunal de contas do Estado. A prova usada para incriminar os réus era uma interceptação telefônica autorizada pelo então juiz Sergio Moro, o que desde o início causava certa surpresa, pois um dos principais alvos era um juiz do Tribunal de Contas, com foro no STJ. Como, no entanto, não havia prova de que o telefone específico do juiz fora interceptado – embora ele aparecesse em diversos diálogos – o STJ entendeu que não teria havido usurpação de sua competência.

Um documento conseguido pela defesa e juntado ao final do julgamento em primeiro grau mudaria completamente os rumos do caso. Os diligentes advogados curitibanos, liderados por Rodrigo Castor, conseguiram demonstrar documentalmente que em pelo menos uma ligação telefônica o número interceptado era o do juiz. E mais grave do que isto, o extrato havia sido adulterado para que constasse o número de sua esposa. Ou seja, a polícia havia fraudado a prova para não ter que submeter o caso ao escrutínio do STJ.

Quando tomou conhecimento do fato, a juíza então à frente da vara mandou imediatamente instaurar inquérito para apurar a autoria do crime. A questão processual a saber era se a prova colhida na interceptação telefônica poderia permanecer válida nos autos. Qual a credibilidade de uma prova produzida por agentes do estado que foi comprovadamente manipulada?

A defesa se valeu do magistério de GERALDO PRADO. De acordo com o respeitado professor, “verificada a quebra da cadeia de custódia, o que há é a impossibilidade do exercício efetivo do contraditório pela parte que não tem acesso à prova íntegra1.

O Tribunal Regional Federal da 4ª região acolheu a tese, deu provimento à apelação e determinou a anulação do processo.

Todos estes são exemplos de casos em que discutimos a quebra da cadeia de custódia da prova nos tribunais, ora obtendo sucesso, ora não. Em um destes casos o juiz era o hoje Ministro da Justiça Sergio Moro, que nenhuma importância deu na época à questão, agora tornada lei no bojo de Pacote Anticrime que ironicamente leva seu nome.

Isto não foi obra do Ministro. O projeto passou por uma tremenda reformulação no Congresso Nacional, que merece efusivos aplausos por ter produzido, salvo uma ou outra questão, uma das reformas penais mais progressistas dos últimos anos, introduzindo o juiz de garantias, criando limites à indústria da delação, colocando freios ao uso abusivo da prisão provisória e regulamentando o procedimento para preservação da cadeia de custódia da prova.

Ainda há muita coisa para ser aprimorada. Mas cada luta a seu tempo.

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1 PRADO, Geraldo – A cadeia de custódia da prova no processo penal – 1ª edição – São Paulo – Marcial Pons , 2019, p. 128.

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*Fábio Tofic Simantob é advogado criminalista e sócio do escritório Tofic Simantob Advogados.

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