É fato notório que viagens aéreas comerciais, nacionais e internacionais, estão sujeitas a atrasos. São diversos fatores que podem resultar em delongas no horário previsto para partida, informado na passagem aérea, tais como: mau tempo, greve de operadores aeroportuários, manutenção da aeronave, falta de combustível, obstáculos presentes na pista de decolagem, entre outros. Ademais, é certo que os atrasos podem variar de alguns minutos, até horas e dias inteiros; inclusive, não faltam notícias1 de casos em que o voos foram cancelados por tempo indeterminado.
Do ponto de vista do consumidor, é certo que os atrasos podem causar desconfortos, aborrecimentos e prejuízos das mais diversas intensidades. Neste contexto, a grande questão jurídica que se coloca é aferir em quais hipóteses o transtorno psicológico é passível de caracterizar danos morais indenizáveis. O objetivo central deste artigo será justamente a análise deste tema, especialmente sobre o enfoque do Código de Defesa do Consumidor e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Por muito tempo, vigorou com tônus majoritário nos tribunais estaduais a tese de que um atraso superior a quatro horas em relação ao horário previsto para embarque geraria danos morais in re ipsa, dispensando-se a prova do dano psicológico para receber a indenização. A jurisprudência do STJ corroborava tal entendimento, confira-se:
“A responsabilidade civil por atraso de vôo internacional deve ser apurada a luz do Código de Defesa do Consumidor, não se restringindo as situações descritas na Convenção de Varsóvia, eis que aquele, traz em seu bojo a orientação constitucional de que o dano moral é amplamente indenizável. 2. O dano moral decorrente de atraso de vôo, prescinde de prova, sendo que a responsabilidade de seu causador opera-se, in re ipsa, por força do simples fato da sua violação em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo passageiro.”2
O raciocínio por trás desta tese era de que a teoria do risco do empreendimento e a responsabilidade objetiva, prevista no art. 14 do CDC, seriam o suficiente para responsabilizar as companhias aéreas pelo atraso nos voos, responsabilidade esta que se materializava na forma de danos morais in re ipsa, ou seja, mesmo que o consumidor não trouxesse aos autos prova de que suportou abalo psicológico que transcendeu o mero aborrecimento da vida cotidiana, a indenização seria devida pelo simples fato de o voo ter atrasado.
Todavia, com o advento da Constituição Federal de 1988 – nitidamente preocupada com o bem-estar e dignidade da pessoa humana, em detrimento da propriedade privada, que era a principal preocupação dos institutos jurídicos liberais que a precederam a Carta de 1988 (v.g, Código Civil de 1916) – verificou-se a ocorrência de um fenômeno conhecido como “constitucionalização do Direito Civil”3, segundo o qual as normas do direito privado devem ser concebidas e interpretadas sob o prisma axiológico da valorização da pessoa humana, preterindo-se o “ter” pelo “ser”, deixando a propriedade privada de representar um fim em si mesmo, transformando-se em um meio à consecução de sua função social4 (art. 5º, XXIII e art. 170, III, ambos da CF/88); e, aos poucos, essa mudança de paradigma (focado no ser humano em detrimento do patrimônio) culminou com a tendência de “despatrimonialização do Direito Civil”, tendência esta que permeou jurisprudência dos tribunais pátrios, engendrando um consenso de que o instituto dos danos morais não pode ser vulgarizado.
Como resultado deste novo paradigma o instituto dos danos morais na modalidade in re ipsa passou a ser aplicado com maior cautela e restrição pela jurisprudência, limitando-se a casos em que o ato ilícito, per se, é capaz de ofender – abstratamente – a dignidade da pessoa humana (p. ex., em casos ligados ao direito à saúde5); e tal fenômeno pode ser nitidamente observado em recentes decisões do STJ. Neste sentido, confira-se trecho do voto do min. Marco Aurélio Bellizze, no REsp 1.653.413/RJ:
“Todavia, a caracterização do dano moral in re ipsa não pode ser elastecida a ponto de afastar a necessidade de sua efetiva demonstração em qualquer situação. Isso porque ao assim proceder se estaria a percorrer o caminho diametralmente oposto ao sentido da despatrimonialização do direito civil, transformando em caráter meramente patrimonial os danos extrapatrimoniais e fomentando a já bastante conhecida ‘indústria do dano mora’.”6
Quando contextualizado ao caso em análise (atraso em voos nacionais e internacionais), o fenômeno da despatrimonialização do direito civil leva à insustentabilidade da tese dos danos morais in re ipsa, pois o consumidor, em alguns casos, poderia receber uma indenização por danos morais sem que – de fato – tivesse suportado abalo psicológico indenizável, posto que não seria necessário provar tal abalo nos autos. Percebe-se que a indenização, nestes moldes (in re ipsa), perde o caráter compensatório, dado que se indeniza um dano hipotético (que não precisa ser provado), permanecendo-se apenas o caráter punitivo da indenização. Logo, aquilo que se chamava de indenização por danos morais amiúde não representava uma efetiva recomposição de abalos psicológicos, desnaturando-se o viés extrapatrimonial do instituto dos danos morais.
A este propósito, confira-se trechos do voto da ministra Nancy Andrighi no REsp 1.584.465/MG, que marcou a mudança do paradigma para o arbitramento de danos morais em caso de atraso em viagens aéreas:
“A alegação do recorrente de que o dano moral é presumido (in re ipsa) quando há atraso no voo, independentemente da duração do atraso e das demais circunstâncias envolvidas, exigiu-me maiores reflexões sobre a controvérsia, notadamente porque a construção de referida premissa induz à conclusão de que uma situação corriqueira na maioria – se não por dizer na totalidade – dos aeroportos brasileiros ensejaria, de plano, dano moral a ser compensado, independentemente da comprovação de qualquer abalo psicológico eventualmente suportado.
[...] Dizer que é presumido o dano moral nas hipóteses de atraso de voo é dizer, inevitavelmente, que o passageiro, necessariamente, sofre abalo que maculou a sua honra e dignidade pelo fato de a aeronave não ter partido na exata hora constante do bilhete – frisa-se, abalo este que não precisa sequer ser comprovado, porque decorreria do próprio atraso na saída da aeronave em si.”7
Como decorrência lógica deste raciocínio, o consumidor deverá provar nos autos que –no caso concreto – sofreu danos morais que transcendem o mero aborrecimento. E esta prova, ainda segundo o entendimento do STJ no recurso supracitado, poderia ser feita por meio das seguintes diretrizes: i) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; ii) se a companhia aérea ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; iii) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à ocasião; iv) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; e v) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros.
Assim, para ilustrar: nas situações em que há um atraso considerável no voo (mais de quatro horas, por exemplo), caso a companhia aérea não informe ao passageiro – de maneira clara e precisa – o porquê do atraso e a previsão de resolução do problema; e tampouco forneça alimentação e hospedagem (caso seja necessário o pernoite para aguardar o próximo voo), então o consumidor terá excelentes fundamentos para ajuizar uma ação de indenização por danos morais.
Vale também mencionar que as diretrizes elencadas pelo STJ são meramente exemplificativas e não excluem a possibilidade de que outros elementos sejam aptos a provar a ocorrência do dano moral. A título exemplificativo: em um atraso superior a quatro horas em decorrência do qual o passageiro precise pernoitar em um hotel, mesmo que a companhia aérea forneça o traslado e pague pela diária, pode ser que o hotel escolhido esteja lotado e o consumidor acabe dormindo amontoado em um sofá na recepção. Num caso como este, a nosso ver, seria obrigação da companhia aérea realocar o passageiro para um outro hotel imediatamente (onde haja disponibilidade de acomodações adequadas) e, caso não o faça, parece-nos nítida a caracterização dos danos morais, especialmente diante do instituo da responsabilidade objetiva (art. 14, caput, CDC) e da teoria do risco do empreendimento.
Em quaisquer das hipóteses, recomendamos que os clientes que se sintam prejudicados por atraso em viagens aéreas procurem um advogado para avaliar a situação e, se o caso, ajuizar a ação competente com a exposição clara e precisa dos fatos e de suas respectivas provas para maximizar as chances de êxito.
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1 Confira-se as seguintes manchetes: <Clique aqui> Acesso em 05/02/2020; <Clique aqui> Acesso em 05/02/2020; e <Clique aqui> Acesso em 05/02/2020.
2 STJ. REsp 299.532/SP, min. rel. Honildo Amaral de Mello Castro, 4ª Turma, j. em 27/10/2009.
3 Segundo Carlos Roberto Gonçalvez: “a expressão direito civil-constitucional apenas realça a necessária releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição, redefinindo as categorias jurídicas civilistas a partir dos fundamentos principiológicos constitucionais, na nova tábua axiológica fundada na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) na solidariedade social (art. 3º, III) e na igualdade substancial (arts. 3º e 5º)", cf. GONÇALVEZ, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 8ª Ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 45.
4 Sobre este tema, confira-se a doutrina de Cavalieri Filho: “Temos sustentado que após a Constituição de 1988 todos os conceitos tradicionais de dano moral tiveram que ser revistos. Assim é porque a atual Carta, na trilha das demais Constituições elaboração após a eclosão da chamada questão social, colocou o homem no vértice do ordenamento jurídico da Nação, fez dele a primeira e decisiva realidade, transformando os seus direitos no fio condutor de todos os ramos jurídicos”. Cf. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 106.
5 Confira-se recente entendimento do STJ a este respeito: “a orientação desta Corte Superior é de que a recusa indevida ou injustificada pela operadora de plano de saúde em autorizar a cobertura financeira de tratamento médico a que esteja legal ou contratualmente obrigada gera direito de ressarcimento a título de dano moral, em razão de tal medida, agravar a situação tanto física quanto psicologicamente do beneficiário. Caracterização de dano moral in re ipsa”. Cf. STJ. AgInt no AREsp n. 1.534.265/ES, Min. Rel. Marco. Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 16.12.20
6 STJ. REsp 1.653.413/RJ, min. rel. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. em 05/06/2018.
7 STJ. REsp 1.584.465/MG, min. rel. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 13/11/2018. O entendimento consagrado neste acórdão foi confirmado no REsp 1.796.716/MG, min. rel. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. em 27/06/2019, demonstrando que a despatrimonialização do direito civil não é uma tendência efêmera.
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*Heitor José Fidelis Almeida de Souza é advogado, sócio proprietário do Fidelis Sociedade Individual de Advocacia, bacharel em direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) e pós-graduando em direito empresarial pela FGV-SP.