Já está em vigor a lei 13.964/19. Convencionou-se denominá-la de “pacote anticrime”. A nomenclatura pouco inspirada e de um mau gosto inescondível foi concebida pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro.
Muito tem-se falado sobre a figura do juiz de garantias, sabotada, inclusive, por recente decisão do Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. E é natural que se fale. Afinal, trata-se de uma das maiores conquistas do processo penal acusatório democrático brasileiro.
Contudo, o objeto deste breve ensaio, na verdade, é a análise pontual das principais novidades trazidas pela lei 13.964/19 no que tange ao regime das medidas cautelares processuais penais. É nele que repousam várias das maiores opressões da jurisdição criminal.
É de sabença elementar que a maioria esmagadora dos decretos de prisões provisórias e de medidas cautelares em geral é construída sob premissas genéricas e argumentos retóricos que passam ao largo do dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, encartado no art. 93, inciso IX da Constituição da República. Acenam ao autoritarismo e ao subjetivismo, poderosas chagas que corroem as bases democráticas da institucionalidade brasileira.
Há, também, habitualmente, a decretação de medidas de ofício pelos juízes, em clara afronta ao sistema acusatório descrito na Carta de 1988. As prisões processuais protraem-se no tempo, indefinidamente, independentemente de um controle judicial efetivo de legalidade e razoabilidade.
Nesse sentido, de modo a coibir novos abusos e a reparar os constrangimentos ilegais a que inúmeros imputados têm sido submetidos ao longo de anos, o legislador buscou alterar, de forma substanciosa, o título e os capítulos que tratam das prisões e medidas cautelares.
A primeira grande inovação foi estampada no §2º do art. 282 do CPP, que acabou por aniquilar a possibilidade de decretação de medidas cautelares de ofício pelos magistrados, ainda que no curso do processo penal respectivo. Trata-se de clara preocupação legislativa com as regras imanentes ao sistema acusatório constitucional e com a imparcialidade do julgador, enquanto pressuposto fundante do devido processo legal.
Também foi salutar a previsão do contraditório prévio à decretação de medidas cautelares, disposto no novo §3º do art. 282. Ressalvados os casos de urgência e de perigo, a serem demonstrados concretamente no édito constritivo, a parte contrária será intimada para que se manifeste no prazo de cinco dias, por meio de advogado constituído ou dativo, expondo as razões que julgar pertinentes.
No §6º, foi reafirmada a absoluta excepcionalidade da prisão preventiva. O não cabimento de qualquer outra medida cautelar diversa, a teor do que preconiza o art. 319, deverá ser justificado com esteio em elementos concretos, de forma individualizada.
No art. 312, o legislador poderia ter retirado a famigerada expressão “ordem pública” do rol dos fundamentos da prisão provisória, diante da sua duvidosa constitucionalidade e da sua abusiva aplicação no âmbito da jurisdição criminal. O conceito de ordem pública, na verdade, é indeterminado e, não por acaso, por sua vagueza e abertura semânticas, é o fundamento preferido, até porque ninguém sabe ao certo o que significa...1
Ainda assim, andou bem o Congresso Nacional ao incluir o periculum libertatis no aludido dispositivo legal. É que o perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado era, até o advento da lei 13.964/19, mera categoria doutrinária, mal explorada pela jurisprudência. A sua positivação visa a conter, portanto, ainda que tardiamente, a proliferação desenfreada das segregações corporais cautelares.
O §2º do art. 313 inadmite a decretação da prisão preventiva com a finalidade espúria de antecipação do cumprimento de uma pena virtual ou como decorrência imediata da investigação preliminar ou do oferecimento e recebimento de denúncias.
É que a automatização da prisão cautelar tem sido um dos vetores predominantes do incremento da criminalidade violenta e da crise do sistema carcerário, em que pese o Judiciário busque eximir-se da sua inegável responsabilidade institucional.
Calha destacar, ainda, a preciosa reprodução do §1º art. 489 do Código de Processo Civil, agora também previsto no §2º do art. 315 do Código de Processo Penal. O histórico brasileiro de decisões mal fundamentadas e a permissividade dos Tribunais com a exigência constitucional da fundamentação fizeram com que o legislador optasse por um controle mais rigoroso das decisões e do seu principal componente.2
Dworkin, por exemplo, sempre afirmou que a decisão é um ato de responsabilidade política.3Não se trata de uma opção do julgador por uma ou mais teses. A jurisdição não encerra um ato de escolha entre diversas possibilidades interpretativas quando oferece a solução para um caso concreto. Ela efetua “a” interpretação, posto que decide – e não escolhe – quais os critérios de ajuste e substância estão subjacentes ao caso concreto analisado. Portanto, há uma diferença entre o decidir, que é um ato de responsabilidade política, e o escolher, que é um ato de razão prática.4 O primeiro, é um ato estatal; o segundo, um ato de agir estratégico5, incompatível com a democracia no processo penal.
Por derradeiro, decretada a prisão preventiva, o órgão emissor da decisão terá a incumbência de revisar a necessidade da manutenção da custódia a cada noventa dias, por meio de decisão fundamentada e de ofício, sob pena de ilegalidade.
Diante da quantidade de processos e da estrutura defasada de várias unidades judiciárias país afora, o sobredito dispositivo será de difícil instrumentalização. Todavia, o controle efetivo da necessidade de manutenção de medidas processuais privativas de liberdade é urgente e de há muito deveria ter sido implementado.
Bem, para todos os efeitos, na lei 13.964/19 há dispositivos flagrantemente inconstitucionais. Estes serão conduzidos, certamente, à cognição do Supremo Tribunal Federal. Porém, de uma maneira geral, as alterações de cunho processual albergadas pela nova lei foram positivas. E não seria diferente com as medidas cautelares, notadamente a prisão preventiva.
A pandemia de prisões provisórias, um dos componentes fundamentais de um caldo de cultura de violência estatal, deve ser combatida por meio da legalidade e da dogmática penal, enquanto instrumentos de limitação civilizatória ao poder de punir.
Nesse sentido, a preocupação do legislador com o devido processo legal, com a ampla defesa, o contraditório, o sistema acusatório constitucional e com a responsabilidade política da fundamentação das decisões, é digna de toda a deferência da comunidade jurídica.
1 JR LOPES; Aury; Prisões Cautelares. 4ª Edição. Ver. Atual. Ampl. Saraiva, P. 93
2 STRECK; Lenio Luiz. NUNES, Dierle; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Organizadores. Comentários ao Código de Processo Civil. Ed. saraiva. P. 684
3 STRECK; Lenio Luiz. NUNES, Dierle; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Organizadores. Comentários ao Código de Processo Civil. Ed. saraiva. P. 684
4 STRECK; Lenio Luiz; NUNES, Dierle; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Organizadores. Comentários ao Código de Processo Civil. Ed. saraiva. P. 684
5 STRECK; Lenio Luiz; NUNES, Dierle; DA CUNHA, Leonardo Carneiro. Organizadores. Comentários ao Código de Processo Civil. Ed. saraiva. P. 684
________________
*João Pedro Guerra é advogado criminalista, especialista em Ciências Criminais e membro do IBCCRIM e da UNACRIM.