A lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e previu o direito de toda pessoa natural ou jurídica “desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica” (art. 3º, I), tendo como base o parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal, que garante “a todos o exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. A partir dessa previsão, questiona-se se os municípios podem continuar emitindo alvará de licença e funcionamento aos particulares que vierem a exercer atividades de baixo risco em seu território.
Esse alvará é um documento por meio do qual a Administração Municipal concede licença para que um particular possa exercer uma atividade econômica em algum ponto do seu território. Nas palavras da professora Maria Sylvia Zanella di Pietro, considera-se “licença” “o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade”1. Ou seja, o alvará de licença é o reconhecimento, por parte da Administração Pública Municipal, de que aquela pessoa natural ou jurídica cumpre os requisitos legais para exercer determinada atividade econômica no município.
A emissão desse tipo de alvará decorre da competência que a Constituição Federal atribuiu aos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I), o que está diretamente relacionado a questões que podem ser controladas e fiscalizadas por meio do exercício do seu poder de polícia administrativa, conceituado pela doutrina como “(...) a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”2. Ou seja, o Poder Público Municipal tem competência para verificar se os particulares que pretendam exercer algum tipo de atividade econômica no seu território estão cumprindo com os requisitos legais previstos para tal exercício e se isso não causará prejuízos ao bem estar da população, seja por questões de higiene, de segurança, de tranquilidade, de ordem e de respeito aos costumes, à propriedade privada e aos direitos individuais e coletivos.
A constatação de que o particular está cumprindo esses requisitos obriga o município a conceder-lhe a licença para o seu funcionamento, por meio da emissão de alvará. Contudo, se o Poder Público verificar que esse particular descumpre a legislação municipal em algum ponto que possa vir a prejudicar a população, poderá negar a concessão daquele alvará e, com isso, impedir o exercício daquela atividade naquelas condições. A possibilidade dessa negativa fundamenta-se, como já dito, na proteção do interesse público, que deve prevalecer sobre o interesse particular3.
Entretanto, o enunciado do art. 3º, inciso I da lei 13.874/19 prescreve que, a partir de agora, pessoas físicas e jurídicas podem começar a desenvolver sua atividade de baixo risco sem que precisem, para tanto, de licença da Prefeitura Municipal em forma de alvará. Todavia, essa possibilidade existe apenas se cumpridas duas condições previstas naquele inciso: que a atividade (i) seja de baixo risco e (ii) seja exercida exclusivamente em propriedade privada própria ou de terceiros.
A primeira condição é o risco do exercício da atividade econômica: estão livres da exigência de ato público liberatório apenas as atividades consideradas de baixo risco. Então, se a pessoa natural ou jurídica pretender iniciar uma atividade econômica de médio ou alto risco, ainda será necessário buscar, junto à Administração Municipal, a concessão do alvará, nos termos previstos na legislação municipal. Sem essa licença, o exercício da atividade de risco médio ou alto será irregular e estará sujeito à aplicação das sanções previstas em lei.
Para fins de aplicação dessa legislação, a definição do que se considera como atividade econômica de baixo risco poderá ser feita na legislação de cada município, conforme previsto no art. 3º, §1º, III da lei 13.874/19. Nessa lei municipal, deve constar em quais condições essas atividades devem ser exercidas para que sejam consideradas de baixo risco, de modo que, se o particular as exercer em condições diferentes, estará sujeito a todos os atos públicos liberatórios previstos na legislação do mesmo município4. É importante destacar que, conforme previsto no inciso II acima mencionado, se o município editar essa legislação, deverá comunicar a sua publicação ao Ministério da Economia.
Porém, caso o município não edite essa lei própria, deverá seguir a definição prescrita em ato do Poder Executivo Federal, conforme previsto no inciso I do §1º do mesmo art. 3º daquela lei. Atualmente, esse ato corresponde à Resolução 51 do Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios – CGSIM, de 11 de junho de 2019, na qual essas atividades são identificadas com base na Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE.
Por sua vez, a segunda condição prescrita pelo inciso I do art. 3º daquela lei é a de que sejam exercidas exclusivamente em propriedade privada própria ou de terceiros consensuais. Ou seja, ainda que se trate do início do exercício de uma atividade econômica de baixo risco, se o particular pretender fazê-lo em local que não seja propriedade privada própria ou de terceiros, essa situação não se enquadrará na hipótese prevista naquele enunciado. Seria o caso, por exemplo, do exercício dessa atividade por um ambulante em uma praça ou em outro local público.
Então, cumpridas essas condições, a lei 13.874/19 permite que o exercício desse tipo de atividade tenha início sem qualquer dependência de ato liberatório do Poder Público Municipal. Trata-se de meio de garantir a liberdade econômica para incentivar a abertura de novos negócios e o desenvolvimento de novas atividades no município.
Contudo, outra dúvida que se coloca é se os municípios continuam tendo competência para exigir que as pessoas que iniciem o exercício dessas atividades em seus respectivos territórios realizem algum tipo de cadastro junto à Prefeitura Municipal. E podemos afirmar que, ainda que o art. 2º da lei 13.874/19 também prescreva “a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas” (inciso III) como princípio que norteia a aplicação das regras veiculadas por essa lei, essas diretrizes não podem interferir na competência dos municípios para disciplinar e exigir o cumprimento de obrigações relacionadas a questões tributárias. Isso porque o §3º do art. 1º daquela lei exclui expressamente o direito tributário do âmbito de aplicação das regras previstas nos seus arts. 1º a 4º, bem como do §1º do art. 1º, que não prevê nem o direito tributário, nem o direito administrativo como ramos do direito cuja aplicação e interpretação devem se submeter às regras veiculadas nessa nova lei.
Isso significa que os municípios continuam com competência para exigir que o particular leve à Administração Municipal informações sobre a atividade que está exercendo e a forma como o faz. Com isso, essa administração terá conhecimento das atividades que estão sendo realizadas no seu território e sobre elas poderá exercer o seu poder de polícia e, ao mesmo tempo, realizar a cobrança dos tributos incidentes sobre elas. Ou seja, o fato de o município ter o dever de considerar “a boa-fé do particular perante o poder público” (art. 2º, II), de intervir de forma subsidiária e excepcional sobre o exercício da atividade econômica do particular (art. 2º, III) e de reconhecer a vulnerabilidade desse particular perante o Estado (art. 2º, IV) não lhe retira a competência para exigir que o particular lhe forneça informações sobre sua natureza jurídica e a atividade que exerce e que sejam importantes para a aplicação das regras decorrentes do seu poder de polícia e da sua competência tributária.
Entretanto, é necessário que as legislações municipais sejam revistas com base nos princípios e nas regras veiculadas pelos arts. 1º a 4º daquela lei, de modo a flexibilizar a forma como esse cadastro deve ser realizado e, especialmente, o momento de sua realização, pois não é mais possível tê-lo como condição para o início do exercício desse tipo de atividade. Nessa revisão, devem ser considerados os enunciados do caput e do inciso IX do art. 4º daquela lei, que prescrevem que se evite o abuso do poder regulatório de maneira a indevidamente “exigir, sob o pretexto de inscrição tributária, requerimentos de outra natureza de maneira a mitigar os efeitos do inciso I do caput do art. 3º”.
Em outras palavras, as legislações municipais podem continuar prevendo a exigência de que esses particulares que exercem atividade de baixo risco façam seus cadastros junto à Administração Municipal, mas a realização desse cadastro, seja diretamente na prefeitura, seja de forma integrada com outros órgãos de controle quando o município aderiu à REDESIM5, não implicará mais na emissão de alvará de licença e funcionamento, pois que o direito a essa licença já está garantido a esse particular pela lei 13.874/19. Contudo, caso o particular não realize esse cadastro nos moldes previstos na legislação municipal e o Poder Público constate que ele está exercendo suas atividades no município, poderá realizar esse cadastro de ofício e aplicar-lhe as penalidades previstas para tanto, sem que seja possível, entretanto, impedir a continuidade das suas atividades.
Essa atuação de ofício do Poder Público Municipal está garantida pela própria lei 13.874/19, que prescreve no §2º do seu art. 3º que a fiscalização do exercício do direito de iniciar uma atividade econômica de baixo risco “será realizada posteriormente, de ofício ou como consequência de denúncia encaminhada à autoridade competente”. E além de realizar essa fiscalização para verificar se o particular cumpriu sua obrigação de se cadastrar junto à Administração Municipal, o Poder Público também poderá analisar se as condições em que ele está exercendo suas atividades atendem às exigências da legislação municipal. É o caso de conferir, por exemplo, se as regras de viabilidade e de zoneamento estão sendo respeitadas; se verificar alguma irregularidade, como, por exemplo, o exercício de uma atividade comercial de baixo risco em área destinada exclusivamente a moradia, poderá autuar esse particular e impedir a continuidade do exercício daquela atividade naquele local. Nesse sentido, aplicam-se as lições do professor Hely Lopes Meirelles sobre essa possível limitação a direitos individuais: “Desde que a conduta do indivíduo ou da empresa tenha repercussões prejudiciais à comunidade ou ao Estado, sujeita-se ao poder de polícia preventivo ou repressivo, pois ninguém adquire direito contra o interesse público”6.
Tal fiscalização poderá ser realizada não apenas no momento em que se tiver notícia de que o particular iniciou sua atividade no município, podendo ser repetida periodicamente de ofício ou sempre que a autoridade competente receber denúncia referente às condições em que aquele particular está atuando. Isso porque, com o passar do tempo, é comum que sejam feitas alterações no estabelecimento físico onde a atividade acontece ou que sejam incluídas novas atividades no negócio, sendo plenamente possível que as novas características do estabelecimento tornem inadequado o exercício daquela atividade naquele local ou que a nova atividade econômica que o particular passou a exercer não seja considerada de baixo risco e isso implique na necessidade de observar exigências diferentes constantes na legislação municipal. Em razão disso, o poder público municipal poderia impedir a continuidade do exercício dessas atividades nesse estabelecimento, com fundamento nas informações levantadas nesse processo de fiscalização.
É possível afirmar que essa atuação do Poder Público Municipal não violaria as previsões do §6º do art. 1º da lei 13.874/19, no sentido de que atos públicos de liberação relacionados ao início e à continuação da atividade não podem impedir o desenvolvimento da atividade econômica de baixo risco em propriedade privada, haja vista que, como já dito, o exercício desse direito do particular é condicionado ao respeito ao interesse público. Contudo, a fim de evitar que haja qualquer abuso no exercício desse poder de polícia, é necessário que os municípios revisem e adaptem as regras referentes a esses processos de fiscalização que hoje constem em suas respectivas legislações, considerando sempre o respeito a esse direito ao exercício incondicionado da atividade econômica de baixo risco em propriedade privada, que somente poderá ser restrito se ferir os interesses da população.
Por fim, deve-se lembrar que, conforme o art. 20, II da lei 13.874/19, as disposições desse documento normativo já estão em vigor desde a data da sua publicação, motivo pelo qual os municípios devem fazer o quanto antes as revisões necessárias em suas legislações para adaptação às suas diretrizes.
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1 DI PIETRO, Mari Sylvia Zanella. Direito administrativo. 26 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 236.
2 DI PIETRO, Mari Sylvia Zanella. Op. cit., p. 123.
3 “A razão do poder de polícia é a necessidade de proteção do interesse social, e seu fundamento está na supremacia geral que a Administração Pública exerce, em seu território, sobre todas as pessoas, bens e atividades – supremacia que se revela nos mandamentos constitucionais e nas normas de ordem pública, que a cada passo opõem condicionamentos e restrições aos direitos individuais em favor da coletividade, incumbindo ao Poder Público seu policiamento administrativo” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16 ed. atual. por Marcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 482, destaques do Autor).
4 Neste mesmo sentido: “Ressalta-se que cabe ao Municípios estabelecer quais são as atividades de baixo grau de risco e em quais condições essas atividades serão assim consideradas. Recomenda-se que as exigências necessárias a identificação da atividade de baixo risco, sejam claramente definidas na Lei Municipal, de forma que o contribuinte interessado em exercer determinada atividade compreenda a análise dos riscos e em quais condições ele pode exercer a atividade no local pretendido, perceba que a existência de Lei de baixo risco não dispensa a consulta prévia, ou consulta de viabilidade”. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS. Nota Técnica n.º 09/2019 (atualizada). Brasília/DF: 2019, p. 2. Disponível em: <Clique aqui>. Acesso em 14 jan 2020
5 Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, criada pela Lei 11.598/2007
6 MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 483.
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*Francielli Honorato Alves é mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), licenciada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), graduanda em Ciências Contábeis pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuarias e Financeiras (FIPECAFI), advogada, professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do IBET e consultora jurídica da Fiorilli Software.