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Reflexos da lei 13.874/19 na competência dos municípios para a cobrança de taxas decorrentes do exercício do poder de polícia

Para que o município possa cobrar taxas decorrentes do exercício do poder de polícia em relação a contribuintes que exerçam atividades de baixo risco, seja no ano inicial desse exercício, seja nos períodos posteriores em que ocorrer novamente o fato gerador dessas taxas, é necessário que haja, na estrutura do Poder Executivo Municipal, servidores com competência para realizar a fiscalização daqueles particulares, seja de ofício ou a partir de uma denúncia.

24/1/2020

Em artigo publicado anteriormente, analisamos os efeitos da lei 13.874/19, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, na competência dos municípios para a emissão de alvará de licença e funcionamento para as pessoas físicas e jurídicas que vierem a exercer atividades de baixo risco em seu território. A necessidade dessa análise decorreu da previsão do direito de toda pessoa natural ou jurídica “desenvolver atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica”, contida no inciso I do art. 3º daquela lei.

Outro questionamento gerado por esse enunciado diz respeito à manutenção da competência dos municípios para instituírem e cobrarem taxas relacionadas ao exercício regular do poder de polícia em relação às pessoas naturais e jurídicas que vierem a exercem as atividades consideradas de baixo risco e daquelas que já exercem esse tipo de atividade em propriedade própria ou de terceiros localizada no seu território. Ou seja, se a lei 13.874/19 prescreve que o município não pode mais condicionar o início do exercício da atividade econômica de baixo risco pelo particular à fiscalização e à emissão de alvará, poderá cobrar as taxas decorrentes exercício do poder de polícia administrativa sobre essas atividades?

Salvo melhor entendimento, parece-nos que a cobrança desse tipo de taxa ainda pode ser realizada se a prefeitura efetivamente exercer o seu poder de polícia, que é hipótese para a cobrança daquele tributo. Ou seja, se a autoridade administrativa realizar a fiscalização da atividade do particular dentro de uma das hipóteses previstas na legislação municipal para a cobrança desse tipo de taxa, haverá a incidência desse tributo, cujo objetivo é remunerar os custos decorrentes do exercício desse poder de polícia.

Assim afirmamos porque, conforme previsto no art. 146, inciso III, alínea “a” da Constituição Federal, cabe à LC de caráter nacional definir os tributos e suas espécies, entre as quais está a taxa cobrada pelo exercício do poder de polícia. Esse tipo de tributo está previsto nos arts. 77 e 78 do Código Tributário Nacional, que exerce o papel de LC em matéria tributária e define o poder de polícia que pode ser exercido pelos municípios e que é hipótese para a cobrança de taxa decorrente desse exercício, conforme a competência prescrita pelo art. 145, inciso II do texto constitucional. Essa competência tributária atribuída aos municípios não foi alterada pela lei 13.874/19, o que permite afirmar que, se o Poder Público Municipal exercer alguma das atividades previstas na legislação municipal como sendo manifestação do poder de polícia administrativa sobre o exercício de alguma atividade econômica por um particular, será possível cobrar a taxa decorrente de tal atuação administrativa.

E para fundamentar esse entendimento, é oportuno lembrar aqui os comentários do professor Hely Lopes Meirelles sobre os fundamentos da cobrança desse tipo de taxa:

“(...) a taxa pelo exercício do poder de polícia é exigida de quem se vê obrigado a requerer manifestação do Poder Público para uso de sua propriedade ou prática de determinada atividade, como uma licença para construir ou uma autorização para realizar espetáculo público. Tal manifestação não é, portanto, emitida em seu benefício – uma vez que, em regra, constitui restrição a direito seu -, mas no da coletividade, por cujo bem-estar, em todos os seus aspectos (segurança, higiene, ordem, costumes), a Administração deve zelar”1.

Sendo assim, está mantida a competência constitucional que os municípios receberam para instituir e cobrar taxas pelo exercício do poder de polícia e ela poderá ser exercida sempre que o município efetivamente fiscalizar o particular que está exercendo atividade econômica de baixo risco em seu território, por meio de procedimento fiscalizatório iniciado de ofício ou a partir de denúncia encaminhada à autoridade competente (conforme art. 3º, §2º da lei 13.874/19). Em sentido semelhante é o entendimento da Confederação Nacional dos Municípios, veiculado na nota técnica 09/19, que trata de atribuições aos municípios previstas nessa lei, como segue: 

Em relação às taxas municipais, essas continuam a vigorar normalmente. A redação da Lei claramente estabelece no §3º do Art. 1 que as redações constantes nos Art. 1º, 2º, 3º e 4º (que trata da dispensa de atos públicos) da Lei NÃO SE APLICAM ao direito TRIBUTÁRIO e ao direito FINANCEIRO, ou seja, as disposições desta Lei não implicam em matéria tributária como é o caso das taxas cobradas pelos Municípios.2

Contudo, é importante atentar para uma limitação ao exercício dessa competência tributária pelos municípios sobre a qual já havia entendimento pacificado na jurisprudência pátria e que, na nossa opinião, acaba sendo reforçado pelas diretrizes da lei 13.874/19: a necessidade de que exista, na administração municipal, órgão fiscalizador com servidores públicos competentes para exercer esse poder de polícia administrativa. Ou seja, para que o município possa instituir e cobrar qualquer taxa pelo exercício do poder de polícia das pessoas naturais e jurídicas que exerçam algum tipo de atividade em seu território, não é necessário que um fiscal efetivamente compareça ao estabelecimento daquele particular para fazer a fiscalização in loco; de acordo com o entendimento do próprio STF, para que essa competência possa ser exercida, basta que no município haja aquele órgão administrativo com servidores competentes para exercer aquela fiscalização.

Observe-se a ementa do julgamento realizado por aquele Egrégio Tribunal no RE 588.322/RO, no qual foi fixado o tema de Repercussão Geral 217:

EMENTA: Recurso Extraordinário 1. Repercussão geral reconhecida. 2. Alegação de inconstitucionalidade da taxa de renovação de localização e de funcionamento do Município de Porto Velho. 3. Suposta violação ao artigo 145, inciso II, da Constituição, ao fundamento de não existir comprovação do efetivo exercício do poder de polícia. 4. O texto constitucional diferencia as taxas decorrentes do exercício do poder de polícia daquelas de utilização de serviços específicos e divisíveis, facultando apenas a estas a prestação potencial do serviço público. 5. A regularidade do exercício do poder de polícia é imprescindível para a cobrança da taxa de localização e fiscalização. 6. À luz da jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, a existência do órgão administrativo não é condição para o reconhecimento da constitucionalidade da cobrança da taxa de localização e fiscalização, mas constitui um dos elementos admitidos para se inferir o efetivo exercício do poder de polícia, exigido constitucionalmente. Precedentes. 7. O Tribunal de Justiça de Rondônia assentou que o Município de Porto Velho, que criou a taxa objeto do litígio, é dotado de aparato fiscal necessário ao exercício do poder de polícia. 8. Configurada a existência de instrumentos necessários e do efetivo exercício do poder de polícia. 9. É constitucional taxa de renovação de funcionamento e localização municipal, desde que efetivo o exercício do poder de polícia, demonstrado pela existência de órgão e estrutura competentes para o respectivo exercício, tal como verificado na espécie quanto ao Município de Porto Velho/RO 10. Recurso extraordinário ao qual se nega provimento.

(STF, RE 588.322/RO, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, 16/06/2010, DJe-164, Divulg 02/09/2010, Public 03/09/2010 – grifo nosso)

Sendo assim e considerando que, em razão das disposições da lei 13.874/19, para que o município possa cobrar taxas decorrentes do exercício do poder de polícia em relação a contribuintes que exerçam atividades de baixo risco, seja no ano inicial desse exercício, seja nos períodos posteriores em que ocorrer novamente o fato gerador dessas taxas, é necessário que haja, na estrutura do Poder Executivo Municipal, servidores com competência para realizar a fiscalização daqueles particulares, seja de ofício ou a partir de uma denúncia (conforme previsto no §2º do art. 3º da mesma lei).

Caso a administração municipal não conte com servidores competentes para o exercício dessa fiscalização do cumprimento, pelo particular, das regras prescritas pela legislação municipal que visam a proteção do bem estar de toda a sociedade, esse município não poderá exercer a sua competência tributária para instituir e cobrar qualquer taxa desse tipo não só das pessoas naturais e jurídicas que exerçam atividade econômica de baixo risco, mas de todo e qualquer particular que exerça, em seu território, uma atividade que estaria sujeita a esse poder de polícia (inclusive de médio ou alto risco), haja vista que esse poder não poderá ser exercido por falta de servidores competentes para tanto.

Por fim, a lei 13.874/19 também prescreveu nova regra em relação ao horário em que as pessoas naturais e jurídicas podem exercer suas atividades econômicas. Sabe-se que, de forma geral, as legislações municipais costumam prever que a licença para que um particular exerça determinada atividade econômica no município será concedida apenas para um horário padrão, que geralmente corresponde ao período da manhã e da tarde de dias úteis3. Caso o particular exerça uma atividade cuja natureza exija o funcionamento em horário noturno ou em finais de semana e em feriados, precisará solicitar à administração municipal a emissão de alvará especial que represente licença para funcionamento nesses horários atípicos, o que provavelmente estará previsto na legislação municipal como hipótese para a cobrança de uma nova taxa decorrente do exercício do poder de polícia municipal.

Contudo, o inciso II do art. 3º daquela nova lei prescreve que as pessoas naturais e jurídicas passam a ter o direito de “II – desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais (...)”. Nota-se, aqui, uma contradição entre os enunciados dessa nova lei: ao mesmo tempo em que o §3º do seu art. 1º expressamente retira a aplicação das disposições do art. 3º a questões do direito tributário, no inciso II acima transcrito impede expressamente que haja qualquer tipo de cobrança relacionada a licença para exercício de atividade econômica em horário diferente do horário padrão de funcionamento dos estabelecimentos localizados em determinado município. Ou seja, ainda que o município continue tendo a competência para exercer o seu poder de polícia e fiscalizar a possibilidade de aqueles estabelecimentos funcionarem em horário especial, esse enunciado legal prescreve expressa limitação para a cobrança de qualquer taxa em decorrência do exercício daquele poder.

Ainda que se possa questionar a constitucionalidade do enunciado desse inciso II do art. 3º da lei 13.874/19, haja vista que lei ordinária, mesmo tendo caráter nacional, não é competente para tratar sobre limites ao exercício da competência tributária referentes à cobrança de taxas pelos entes federados, optamos por, neste momento, considerar o pressuposto de validade desse enunciado legal, que atualmente está plenamente válido e vigente no ordenamento jurídico brasileiro. Seguimos, para tanto, os ensinamentos do professor Paulo de Barros Carvalho:

“Se partimos do postulado segundo o qual o sistema é formado pelo conjunto das normas válidas, a validade passou a ser critério indispensável para pensar-se o sistema de direito positivo. (...)

A validade não deve ser tida como predicado monádico, como propriedade ou como atributo que qualifica a norma jurídica. Tem status de relação: é o vínculo que se estabelece entre a proposição normativa, considerada na sua inteireza lógico-semântica e o sistema do direito posto, de tal sorte que ao dizermos que u'a norma 'n' é válida, estaremos expressando que ela pertence ao sistema 'S'. (...)".4

Pressupondo, então, a validade dessa norma jurídica, é necessário ressaltar duas questões importantes contidas no enunciado desse inciso II do art. 3º: primeiramente, a possibilidade de funcionamento em qualquer horário ou dia da semana sem submissão a cobrança ou encargo adicional não se limita apenas a atividades econômicas de baixo risco, sendo extensiva a toda e qualquer atividade econômica que possa vir a ser realizada no território municipal, incluindo as de médio e alto risco.

O segundo ponto daquele enunciado a ser ressaltado é que o exercício do poder de polícia para conferir licença para o funcionamento em horário especial continua sendo indispensável, haja vista que as próprias alíneas “a” e “b” do inciso II do art. 3º daquela lei preveem expressamente a necessidade de se observar questões de poluição sonora, perturbação do sossego público e direito de vizinhança, questões essas que podem ser analisadas pelo Poder Público Municipal no interesse da população. Ou seja, se a administração aunicipal verificar que o funcionamento de determinado estabelecimento em horário noturno ou aos finais de semana perturbará o sossego ou trará qualquer outro tipo de prejuízo à população daquele local, poderá impedir esse estabelecimento de exercer sua atividade em horário fora do padrão, negando a concessão do respectivo alvará.

Portanto, na nossa opinião, a lei 13.874/19 não retirou a competência dos municípios para exercerem o seu poder de polícia administrativa para cuidar assuntos de interesse local e promover o adequado ordenamento do seu território, conforme previsto no art. 30, incisos I e VIII da Constituição Federal, e nem mesmo a sua competência para instituir e cobrar taxa para custear o exercício desse poder, atribuída pelo art. 145, inciso II do texto constitucional.

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1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16 ed. atual. por Marcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 158, destaques do Autor.

2 CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS. Nota Técnica n.º 09/19 (atualizada). Brasília/DF: 2019, p. 5. Disponível em: <Clique aqui>. Acesso em 14 jan 2020.

3 A competência dos Municípios para definir o horário padrão de funcionamento dos estabelecimentos que exercem atividades econômicas em seus respectivos territórios já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal e consta nos enunciados das súmulas n.º 419 (“Os municípios têm competência para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas”) e 645 (“É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”) e, ainda, na súmula vinculante n.º 38 (“É competente o Município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”).

4 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 8 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 95-96.

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*Francielli Honorato Alves é mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), licenciada em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), graduanda em Ciências Contábeis pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuarias e Financeiras (FIPECAFI), advogada, professora do Curso de Especialização em Direito Tributário do IBET e consultora jurídica da Fiorilli Software.

 

 

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