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O acordo de não persecução penal: possibilidade vinculada à observância da Constituição Federal

O sistema penal brasileiro passa a contar com um importante instrumento redutor do poder punitivo, capaz de auxiliar na maior celeridade, pelo afastamento do processo para as infrações de médio potencial ofensivo.

23/1/2020

Importante inovação trazida ao sistema brasileiro pela lei 13.964/19, é a medida despenalizadora do acordo de não persecução penal. Vale destacar que esta medida não integrava a proposta anticrime, remetida pelo atual Ministro da Justiça ao Congresso Nacional, mas foi incluída no trabalho parlamentar de unificação de propostas legislativas em trâmite no parlamento.

Nesse aspecto, elogiável o trabalho desenvolvido pelo Congresso Nacional, pois, ao passo que a proposta anticrime do Ministério da Justiça era centrada fundamentalmente na continuidade do processo de prisionalização, em clara contraposição aos movimentos internacionais de redução do poder punitivo e substituição das medidas punitivas por outras de natureza restaurativa e conciliatória; fez o parlamento a inserção de regra redutora do poder punitivo que, embora esteja sujeita a críticas e avaliações, evidente que sempre no sentido da melhora do instituto e dos mecanismos de resolução racional dos conflitos sociais, interpretada em acordo com a Constituição Federal, talvez possa ser apontadas como um dos poucos implementos, senão único, nos últimos 20 anos de restabelecimento da marcha da legislação penal no sentido da redução do cárcere.

A ideia já integrava a resolução 181/17, do Conselho Nacional do Ministério Público, que permitia a celebração de acordo de não-persecução penal, para crimes de menor gravidade. Isso se dá sob forte influência do modelo presente no direito alemão, com objetivo de conceder maior racionalidade ao sistema penal e conduzir a respostas mais rápidas, para as questões consideradas menos graves, possibilitando maior apuração dos fatos, nos processos cuja acusação seja de delitos mais graves, inclusive porque, na Alemanha, este mecanismo surgiu da iniciativa de membros do Ministério Público, independente do detalhamento legislativo, tendo constitucionalidade reconhecida pela Corte Constitucional Alemã.

No Brasil a Resolução em questão foi objeto de questionamento por duas ações Diretas de Inconstitucionalidade, as de número 5793 e 5790, as quais debatem a impossibilidade de inovação legislativa ser produzida por meio de Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público. Além disso, sobrevieram decisões impedindo a aplicação de qualquer medida disciplinar por deixar o membro do Ministério Público de observar a questão do acordo de não persecução penal, o que, por evidente retirou efetividade da resolução 181/17-CNMP.

Agora, por força do novo artigo 28-A do Código de Processo Penal há superação do debate sobre a invasão legislativa presente na resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, ao estar o acordo de não persecução penal estruturado em lei em sentido formal, com a seguinte redação:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

Os elementos trazidos no caput do dispositivo disciplinador do acordo de não persecução criminal são muito  importantes, pois conjuntamente: a) deve haver confissão formal e circunstanciada da infração penal; b) não pode haver emprego de violência ou grave ameaça na prática do ilícito penal; c) a pena mínima deve ser inferior a 4 (quatro) anos.

Assim sendo, o primeiro requisito é que o acusado na sua oitiva formal confesse a prática da infração penal, declinando os elementos circunstanciados de sua participação nela, sendo muito importante observar que a celebração do acordo de não persecução penal prescinde que a pessoa aponte coatores ou partícipes ou que colabore com as investigações, sendo suficiente a confissão de sua participação, declinando as circunstância nas quais sua participação ocorreu, de sorte que, ainda que a infração penal tenha ocorrido com concurso de agentes e o acusado opte por não declinar os nomes dos coatores, isso não é fator impeditivo da celebração do acordo de não persecução penal.

Nesse sentido, muito importante que não se confunda, uma coisa é delação, ou se prefira, colaboração premiada, outra é a confissão circunstanciada, pela qual a pessoa somente tem a obrigação de tratar de sua participação específica na infração penal, podendo deixar de declinar a atuação de qualquer outra pessoa ou simplesmente optar por omitir a indicação dos demais agentes do delito.

Reestabelecendo o eixo central do sistema, dentro dos ditames internacionalmente reconhecidos, desde as “Regras de Tóquio”, lançadas no VIII Congresso das Nações Unidas, foi proclamada a separação entre infrações penais com e sem emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, centralizando novamente o sistema na importância da vida e dos bens jurídicos a ela relacionados.

Nesse sentido, o segundo requisito para o acordo de não persecução penal é ser a infração sem emprego de violência ou grave ameaça a pessoa, deixando manifesto que a utilização dos meios agressivos para a prática do delito o torna mais grave e, portanto, impedem a utilização dos mecanismos despenalizadores existentes no sistema.

A lei 13.964/19 inovou em relação a pena a ser considerada, pois a disciplina anterior, surgida da lei 9714/98 considerava a pena máxima para estabelecer a incidência de penas ou medidas alternativas, enquanto a nova lei trabalhou, em relação ao acordo de não persecução penal, com a pena mínima, exigindo que ela seja inferior a 04 anos, consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto,  o que representa grande parte dos tipos penais criminalizadores existente no Brasil, de sorte que  não é exagerado afirmar se estar diante de uma das maiores alterações do modelo de persecução criminal da história brasileira recente, pois um percentual sensível dos tipos penais existentes passam a permitir a celebração do acordo de não persecução penal, desde, claro sejam observadas as premissas anteriores da confissão circunstanciada e não emprego de violência ou grave ameaça à pessoa.

Essa medida produz impacto em toda estrutura de funcionamento da justiça penal, pois deve haver condições próprias para a efetividade do instituto, estando os sujeitos do processo preparados adequadamente para sua operacionalização, o que envolve mudança de posturas, tanto do órgão ministerial, quantos dos defensores.

Não se pode deixar de registrar que ao estruturar o acordo de não persecução criminal a legislação utiliza a frase “o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal”, conduzindo à falsa perspectiva de que pode ser negado o acordo, caso satisfeitos os requisitos presentes em lei, a depender da vontade do agente ministerial.

Realmente não parece ser possível a linha interpretativa declinada acima, pois dentro da racionalidade sistemática do direito penal brasileiro, há muito está estruturado o conceito de que a regra que fixa requisitos para o acusado, uma vez ele os satisfazendo, passa a estabelecer a titularidade de um direito subjetivo, não se encontrando fundamentos para que em relação ao acordo de não persecução penal seja diferente, até porque, a interpretação distinta importaria em ferimento à exigência do mínimo de logicidade do sistema.

Destarte, satisfeitos os requisitos legais pela pessoa, tem ela direito a que lhe seja proposto o acordo de não persecução penal, sendo que a omissão na proposição e a continuidade de medidas processuais contra ela, pode, em tese, caracterizar a hipótese do artigo 30 da lei 13.869/19 (abuso de autoridade).

Ademais, e sem prejuízo do anterior, pode o investigado requerer a remessa ao órgão superior do Ministério Público, para que formule a proposta.

Além dos requisitos gerais do caput, o artigo 28-A traz em seus incisos requisitos específicos, a começar pela exigência de reparação do dano ou restituição da coisa à vítima. Evidente que a fim de impedir que esta regra bloqueie a aplicação do instituto às pessoas carentes de recursos financeiros, tornando-o simples mecanismo de seletividade econômica no sistema punitivo, é que a demonstração da impossibilidade da reparação do dano não impede a celebração do acordo de não persecução penal.

Também se promove uma antecipação da perda dos bens provenientes do crime, pois para a celebração do acordo de não persecução penal, a pessoa deve renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime.

Não se deve descuidar, em atenção ao princípio do contraditório constitucionalmente contemplado que, pode a pessoa validamente questionar a indicação de bens realizada pelo Ministério Público e demonstrar que a origem, de algum ou de todos eles, foi lícita, fazendo com que a não renúncia a estes bens não lhe retire o direito ao acordo de não persecução penal, caso contrário se constituiria em medida de confisco expressamente vedada pela Carta Maior, igualmente estaria a se se impor perda de bens sem o devido processo legal.

Dessa forma, a única interpretação possível, em conformidade à Constituição Federal, é a que estabelece ser a indicação de bens pelo Ministério Público preliminar, podendo contar com imediata concordância da pessoa investigada ou não, e na hipótese dela discordar, pode demonstrar a licitude em sua aquisição, situação em que a não renúncia aos bens não impede a aplicação do acordo de não persecução penal.

Como punição alternativa, a pessoa deverá prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas, por período correspondente à pena mínima cominada ao delito imputado, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução e pagar prestação pecuniária, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

A lei estabelece uma alternatividade entre a prestação pecuniária (inciso IV) e outra condição indicada pelo Ministério Público (inciso V). A hipótese do inciso V do artigo 28-A do Código de Processo Penal é de clara inconstitucionalidade, por afronta direta ao princípio da legalidade penal em seu aspecto de taxatividade, de sorte que a previsão de  “cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada”  é inaplicável, ficando as penas alternativas adstritas as previsões dos incisos III e IV, ou seja, prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária.

Os limites da prestação pecuniária são os gerais do artigo 45 do Código Penal, em seu parágrafo 1º, nem inferior a 1 (um) salário mínimo, nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos.

Há vedação expressa da celebração do acordo de não persecução penal em quatro hipóteses, quais sejam: 1) cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais; 2) ser o investigado reincidente ou estarem presentes elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais anteriores; 3) ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; 4) ser crime praticado no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

Essas vedações são justificáveis dentro da estruturação sistemática da legislação penal, pois, a prevalência da transação penal em relação ao acordo de não persecução penal decorre de ser a transação penal instituto despenalizador mais benéfico, com menos requisitos e menores consequências, por incidir nas infrações de pequeno potencial ofensivo, dentro da disciplina da Lei dos Juizados Especiais, de sorte que a sobreposição do acordo de não persecução, às regras despenalizadoras dos Juizados Especiais, representaria odiosa imposição da medida mais gravosa ao investigado, desconsiderando marcos legislativos importantes que estruturam as infrações de menor potencial ofensivo.

Nesse sentido é possível verificar que hoje o sistema atua com infrações de pequeno potencial ofensivo, sendo elas as sem emprego de violência ou grave ameaça a pessoa, com pena máxima de até 02 (anos); de médio potencial ofensivo, quando diante de infrações sem emprego de violência ou grave ameaça a pessoa e pena mínima inferior a quatro anos e crimes de grave potencial ofensivo, quando ocorrer emprego de violência ou grave ameaça a pessoa ou a pena mínima for a partir de quatro anos.

A reincidência, ao passo que na opinião do autor, não poderia servir para agravar a pena, por representar emprego de bis in iden, pode ser utilizada como meio de verificação da adequação da pena ou medida alternativa a determinada pessoa, neste sentido, não havendo problema na vedação do acordo de não persecução penal, caso a pessoa seja reincidente. Igualmente a habitualidade e reiteração delitiva justificam a não concessão do benefício, porém estas não podem ser embasadas em simples afirmações retóricas ou dados genéricos, devendo contar com indícios probatórios dotados de idoneidade, para serem consideradas.

A vedação do instituto da não persecução penal a quem, no prazo de 05 anos anteriores ao cometimento da infração, já foi beneficiado com acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo, prende-se a uma aceitável presença de indícios de que as medidas despenalizadoras não sejam suficientes para punição do agente.

Por fim, o sistema claramente tem se estruturado no sentido de vedar os benefícios despenalizadores, quando praticada infração no âmbito doméstico ou familiar ou contra a mulher por razões de gênero, sendo que impedir o acordo de não persecução penal nestas hipótese, caminha no sentido linear do que já vem sendo construído pela legislação e pela jurisprudência, para tentar equacionar a grave situação do ataque ainda sofrido reiteradamente às mulheres na sociedade brasileira.

O acordo de não persecução penal deve ser homologado pelo juiz em audiência própria, na qual serão verificados seus termos e adequação a lei e sua razoabilidade, em relação a infração previamente imputada.

Dessa forma, o Brasil ingressa, no sistema da oportunidade regrada, em que o órgão acusatório pode deixar de oferecer a inicial criminal, contra alguém sobre quem recaiam indícios de autoria e materialidade da prática de infração penal, porém, não tem liberdade plena nesta decisão, pois são fixados requisitos legais estritos, para que possa deixar de dar início ao processo criminal.

Por outro lado, a validade constitucional do acordo de não persecução penal depende de que, estando preenchidos os requisitos, a sua proposição seja um direito subjetivo do investigado, de sorte que ao Ministério Público compete avaliar as condições e propor dentro do rol estabelecido em lei as condições, lembrando que a prevista no inciso V do artigo 28-A é de toda ofensiva ao princípio da legalidade penal, de sorte que inaplicável, como também o é, a não admissão de que possa o investigado exercer contraditório em relação a bens apontados como provenientes do ilícito penal, na medida em que deve se desenvolver na legislação infraconstitucional interpretação conforme ao texto maior e este veda o confisco, a perda de bens sem processo e evidente proclama o contraditório e ampla defesa.

A partir da exegese do acordo de não persecução penal em conformidade à Constituição Federal, o sistema penal brasileiro passa a contar com um importante instrumento redutor do poder punitivo, capaz de auxiliar na maior celeridade, pelo afastamento do processo para as infrações de médio potencial ofensivo.

___________

*Adel El Tasse é advogado em Curitiba/PR. Procurador Federal. Professor de Direito Penal, em diversos cursos de graduação e pós-graduação. Professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Professor no Curso CERS. Mestre em Direito Penal. Coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais. Coordenador do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais.

 

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