No apagar das luzes de 2019, a lei 13.964, publicada no último dia 24, trouxe alterações substanciais para o processo penal brasileiro, incluindo a já esperada regulamentação da cadeia de custódia da prova.
A lei entrará em vigor após contados 30 (trinta) dias da publicação, o que demanda um esforço hercúleo de todos os profissionais que militam na esfera criminal, não apenas pela abrangência das alterações, mas também pelos reflexos diretos ou indiretos na atuação defensiva.
Pela dicção da lei, a cadeia de custódia consiste no “conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte” (art. 158-A, caput), compreendendo, igualmente, o rastreamento do vestígio, inclusive mediante o seu processamento, traduzido no “exame pericial em si; manipulação do vestígio de acordo com a metodologia adequada às suas características biológicas, físicas e químicas, a fim de se obter o resultado desejado, que deverá ser formalizado em laudo produzido por perito” (art. 158-B, VIII).
Tais dispositivos já sinalizam a importância ainda maior de um exame cauteloso das investigações policiais ou aquelas capitaneadas pelo Ministério Público, que naturalmente precedem às denúncias, porquanto, a rigor, as acusações consistem em uma reprodução do material previamente coletado, sem que haja, por vezes, a devida observância do art. 41 do Código de Processo Penal.
É dizer, o instituto da cadeia de custódia no ordenamento brasileiro é uma garantia ao acusado de que os elementos que instruem a acusação foram obtidos em observância aos procedimentos legais, e, uma vez verificada a sua quebra, isto é, a inobservância por parte do detentor da prova acerca do procedimento e cuidado devidos – seja no aspecto da correspondência entre a prova colhida e aquela trazida ao feito (“mesmidade”), ou mesmo na perspectiva do significado que a prova possui segundo as afirmativas de uma parte (desconfiança) –, acarreta a falta de confiabilidade do elemento probatório e, por consequência, sua ilicitude, impedindo a sua valoração no processo (In: MENEZES, Isabela Aparecida de; BORRI, Luiz Antônio; SOARES, Rafael Júnior. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal brasileiro. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 277-300, jan.-abr. 2018).
A propósito, a reação defensiva em casos de indicativos mínimos da quebra da cadeia de custódia na fase preliminar – quer pelo teor da denúncia, quer pela duvidosa legitimidade do procedimento previamente realizado –, pode ser implacada antes mesmo da apresentação da resposta à acusação (art. 396-A, CPP), já que o direito ao processamento dos vestígios recai, igualmente, à Defesa, inclusive por meio de exame pericial, na linha do que regulamenta a nova ordem processual.
Afinal, “mais do que investigar para embasar narrativas acusatórias, o órgão acusador tem o dever de expor, à Defesa, os elementos probatórios por ela descobertos”, sem perder de vista que, quanto à defesa efetiva, “é pertinente salientar que um dos seus consectários é o direito ao tempo e, principalmente, aos meios necessários para a preparação da defesa técnica” (In: EDINGER, Carlos. Cadeia de custódia, rastreabilidade probatória. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 120, ano 24, p. 237-257. São Paulo: RT, 2016).
Na seara das interceptações telefônicas, apenas a título de ilustração, a prova produzida durante a medida não pode servir, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (HC 160.662/RJ), apenas aos interesses do órgão acusador, sendo imprescindível a preservação da sua integralidade, sem a qual se mostra inviabilizado o exercício da ampla defesa, tendo em vista a impossibilidade da efetiva refutação da tese acusatória, dada a perda da unidade da prova. Ou seja, mostra-se lesiva ao direito à prova, corolário da ampla defesa e do contraditório – constitucionalmente garantidos –, a ausência da salvaguarda da integralidade do material colhido na investigação, repercutindo no próprio dever de garantia da paridade de armas das partes adversas.
Logo, apresenta ser mais profícuo, tendo em perspectiva as garantias do acusado, apresentar defesa após a regularização e delimitação da prova legitimamente manuseada, mediante verdadeira filtragem para efetuar o controle de confiabilidade da prova, permitindo ao acusado conhecer integralmente tudo que foi produzido em seu desfavor, com igualdade de meios e oportunidades àqueles conferidos à acusação.
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*Douglas de Barros Ibarra Papa é advogado em Cuiabá-MT, Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e Professor Universitário (UNIC e UFMT).