Era inverno de 2009 quando este autor, no quinto período do curso de ciências jurídicas, teve seu primeiro contato com a teoria de recursos, quando seu brilhante professor, de forma muito sutil, definiu recursos como remédio processual, instituído em lei, que visa à reforma, invalidação, esclarecimento ou integração de uma decisão judicial.
Tudo ficou, então, mais fácil. Foi o belo despertar de um jovem à ciência dos conceitos e dos significados.
Ora, um conceito de recursos que já apresenta, com muita didática, alguns de seus princípios e os possíveis efeitos, certamente foi esculpido com a mesma inspiração com que Cesare Vivante presenteou-nos com o conceito de títulos de crédito. Recordemo-nos, aqui, do problema de linguagem no direito, da falta de acordo semântico entre juristas que provoca embates desnecessários e intermináveis sobre conceitos básicos, e da abstração como característica da lei, que impede que os conceitos sejam definidos com exaurimento pelas normas legais.
Naquele mesmo tempo aprendeu este autor que os recursos têm previsão de cabimento restrita, em estrita legalidade, e que o direito de recurso decorre dos princípios do devido processo legal, do direito de ação e do duplo grau de jurisdição.
Talvez fosse aquele o tempo em que havia alguma ortodoxia na teoria do processo civil.
Pois bem.
Na quase sempre tormentosa pesquisa de precedentes em matéria recursal nos tribunais superiores, deparei-me com o curioso impasse decorrente “violação inédita à lei”, para fins de Recurso Especial.
É previsão constitucional e legal que a cognição de Recurso Especial, quando interposto ante ocorrência de violação à lei federal, pressuponha ao exaurimento da instância ordinária e da cognição da violação – conceituada por prequestionamento.
Ocorre que, muitas vezes, a violação à lei federal ocorre quando do cabo da instância ordinária, o que, por lógico, impede que a questão tenha sido anteriormente tratada.
Como, então, resolver o problema do prequestionamento nestes casos?
Os Embargos de Declaração para prequestionamento, mesmo na hipótese virtual do artigo 1.025 do CPC, têm por requisito lógico que a questão tenha sido suscitada anteriormente e não foi apreciada quando da decisão embargada – se assim não for, o artigo 1.022 do CPC é letra inútil.
No caso de violação inédita à lei federal, o cabimento de embargos de declaração para prequestionamento não têm fundamento legal, pois não há omissão.
Bingo!
O Superior Tribunal de Justiça resolveu o impasse, e criou, então, mas um de seus precedentes antilegalistas na já conhecida “jurisprudência defensiva”: somente será conhecido o Recurso Especial se a violação inédita, aquela que surge na própria decisão recorrida, for atacada, no tribunal local, com oposição de Embargos de Declaração para prequestionamento.
Para quem quiser ver para crer, algumas ementas da Corte:
ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. CONFISSÃO DE DÍVIDA. REQUISITOS PARA CARACTERIZAÇÃO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO/PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. 1. A configuração do prequestionamento pressupõe debate e decisão prévios pelo colegiado, ou seja, emissão de juízo sobre o tema. Se o Tribunal de origem não adotou entendimento explícito a respeito do fato jurígeno veiculado nas razões recursais, inviabilizada fica a análise sobre a violação dos preceitos evocados pelo recorrente. 2. Verifica-se que a Corte de origem não analisou, ainda que implicitamente, os arts. 3º e 41 caput da lei n. 8.666/93. Desse modo, impõe-se o não conhecimento do recurso especial por ausência de prequestionamento, entendido como o indispensável exame da questão pela decisão atacada, apto a viabilizar a pretensão recursal. 3. Se a recorrente entendesse existir alguma eiva no acórdão impugnado, ainda que a questão federal tenha surgido somente no julgamento perante o Tribunal a quo, deveria ter oposto embargos declaratórios, a fim de que fosse suprida a exigência do prequestionamento e viabilizado o conhecimento do recurso em relação aos referidos dispositivos legais. Caso persistisse tal omissão, seria imprescindível a alegação de violação do art. 535 do Código de Processo Civil por ocasião da interposição do recurso especial, com fundamento na alínea a do inciso III do art. 105 da Constituição Federal, sob pena de incidir no intransponível óbice da ausência de prequestionamento. Incide no caso, mutatis mutandis, o disposto nas Súmulas 282 e 356 do STF 4. O Tribunal de origem, soberano na análise das circunstâncias fáticas e probatórias da causa, ao negar provimento à apelação, entendeu que o documento apresentado pela agravante não pode ser considerado confissão de dívida nos moldes da previsão contida no art. 104, II, do Código Civil. Portanto, modificar o acórdão recorrido, como pretende a recorrente, no sentido de que o documento apresentado configura confissão de dívida, demandaria o reexame de todo o contexto fático-probatório dos autos, o que é defeso a esta Corte em vista do óbice da Súmula 7/STJ. Agravo regimental improvido.(STJ - AgRg no AREsp: 417815 SP 2013/0349607-5, relator: ministro HUMBERTO MARTINS, data de julgamento: 3/12/13, T2 - SEGUNDA TURMA, data de publicação: DJe 10/12/13)
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 407.396 - DF (2013/0337474-9) RELATOR : MINISTRO NEFI CORDEIRO AGRAVANTE : CLARISMUNDO ROMUALDO MARQUES AGRAVANTE : EMÍDIO FERREIRA CAMPOS ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO AGRAVADO : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL DECISÃO Trata-se de agravo que objetiva o destrancamento de recurso especial inadmitido com fundamento no óbice da Súmula 7/STJ. Sustentam os recorrentes que não se pretende o revolvimento de provas, mas a regular aplicação dos dispositivos normativos que entendem violados. Afirmam, em síntese, que houve equívoco na capitulação jurídica do delito, sendo possível a correção, pelo magistrado, quando do recebimento da exordial. Requerem, assim, a desclassificação da conduta narrada na denúncia para o tipo previsto no art. 171, § 3º, do CP. O Ministério Público Federal manifestou-se pelo não provimento do agravo (fls. 216/222). É o relatório. DECIDO. De início, verifico que a tese suscitada no presente recurso - possibilidade de desclassificação da conduta narrada na denúncia por ocasião do recebimento da exordial, a fim de que sejam excluídas as imputações previstas nos arts. 297, § 3º, II, e art. 313-A, ambos do CP, restando aos recorrentes apenas a imputação prevista no art. 171, § 3º do CP, - não foi objeto de debate pelo acórdão atacado, não tendo havido oposição de embargos de declaração com vistas ao prequestionamento. É firme o entendimento nesta Corte no sentido de ser indispensável ao conhecimento do recurso especial, que tenham sido debatidas, no acórdão combatido, as questões trazidas no pedido recursal. Ademais, ainda que a suposta violação de lei federal tenha surgido no julgamento do acórdão recorrido, é necessária a oposição de embargos de declaração para que o Tribunal de origem manifeste-se sobre a questão, sob pena de não se ter por satisfeito o requisito do prequestionamento. (...) Ante o exposto, nego provimento ao agravo em recurso especial. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 11 de outubro de 2017. MINISTRO NEFI CORDEIRO relator (STJ - AREsp: 407396 DF 2013/0337474-9, relator: ministro NEFI CORDEIRO, Data de Publicação: DJ 20/10/2017)
Está a exigir-se a oposição de Embargos de Declaração fora das hipóteses legais, dado que, se a violação é inédita, não há omissão! Uma panaceia das piores.
De um lado, a oposição dos aclaratórios ao cabo da instância ordinária, para fins de prequestionamento do que não foi suscitado anteriormente poderá causar imposição de multa do artigo 1.026, §2º do CPC – breve digressão necessária: mesmo que a jurisprudência do STJ, consolidada no enunciado 98 de sua Súmula, indique que os Embargos de Declaração para pré-questionamento não tenham, caráter protelatório, é ilógico concluir-se que não os aclaratórios não pressuponham omissão quanto ao tema a ser levado à instância extraordinária.
Doutro lado, a ausência de oposição dos aclaratórios ante violação inédita à lei poderá causar o não conhecimento do Recurso Especial.
Não é necessária larga digressão para concluir que a ciência da teoria dos recursos no processo civil está, segundo a atuação dos tribunais, a se tornar análise, com olhar normativista (o funcionalismo e pós-positivismo não cabem na jurisprudência das súmulas, orientações jurisprudenciais, enunciados e outras coisas mais), do sofisma do precedentalismo.
Também não é necessária intelecção metafísica das ciências do processo para concluir que a criação jurisprudencial não pode atingir matéria de legalidade restrita, como é a previsão dos recursos – mais ainda no caso dos Embargos de Declaração, que é recurso de cognição vinculada.
Como dito noutra oportunidade, não há níveis seguros para o criacionismo jurisprudencial, e a criação de recurso sem fundamento legal, com notável imposição, é a “icing on the cake” do abuso do poder jurisdicional.
Precisamos tangenciar, dialogar com os tribunais, para que tenha fim este conflito de interesses que se trava entre a advocacia e o judiciário, já que tais conflitos se travam quando o interesse do jurisdicionado é que está em jogo!
Talvez nos falte um senso de colaboração, ou de organização espontânea, de que tratava o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda ao comparar nossa sociedade com as de tradição calvinista já há quase um século.
Enquanto isto não ocorre, nos resta tratar o processo civil com rigor científico que lhe é peculiar e natural, para que os precedentes não se tornem regra absoluta e façam destruir, dia a dia, a ciência do processo civil. Que nasçam nestas terras outros Chiovendas e Carneluttis, e que os julgadores os ouçam!
____________
*Mário Henrique da Luz do Prado é advogado.