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A excessiva competência do “Juiz das garantias”

Se a intenção era ampliar a isenção do julgador de instrução e mérito, não nos parece correto excluir de sua competência a análise da pertinência e legalidade das medidas cautelares que precederam a denúncia.

21/1/2020

Uma das mais relevantes e polêmica novidade processual introduzida em nossa legislação adjetiva pela recente lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, conhecida popularmente como pacote anticrime, trata justamente da figura do “Juiz das garantias”.

A relevância do novo instituto se extrai de sua própria gênese, criado supostamente para ampliar o espectro de garantias do jurisdicionado envolvido em qualquer espécie de persecução penal, a nova lei estabelece que um juiz seja o responsável pela verificação da razoabilidade e legalidade dos eventuais incidentes inerentes à investigação criminal e, outro, posteriormente, fique incumbindo de analisar o mérito das acusações dela proveniente. 

Desse modo, o juiz que participou da investigação, fase na qual, via de regra, são deferidas as medidas cautelares invasivas e de exceção, como a prisão preventiva, a busca e a apreensão de bens e valores, a quebra de sigilos telefônicos e telemáticos e etc., não poderá julgar o mérito da acusação criminal. 

Evidentemente a ideia é louvável, porquanto, em tese, evita a contaminação do juiz que efetivamente irá julgar o mérito da acusação, uma vez que este não poderá ter participado de nenhuma das intercorrências verificadas durante a investigação. Ao menos esse foi o escopo largamente propalado pelos idealizadores da nova regra, promulgada sem a respectiva exposição de motivos.

A despeito da nobre finalidade, paradoxalmente, o novo artigo 3-B, inciso XIV, Código de Processo Penal, estabeleceu que compete especialmente ao Juiz das Garantias “decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do artigo 399 deste Código”. No mesmo sentido, dispõe o artigo 3-C, caput, do mesmo Codex, que a competência do juiz de garantias “cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art.399 desse código”. 

Como se vê, esses dispositivos, salvo melhor juízo, estenderam demasiadamente a competência do “Juiz das Garantias”.

Sim, porque, da forma concebida, o mesmo Juiz que ordenou a busca domiciliar, a apreensão de bens, a prisão cautelar, a interceptação telefônica e etc. ficará incumbido de receber a denúncia, o que implica, inexoravelmente, em julgar a pertinência e a legalidade das medidas cautelares eventualmente deferidas por ele mesmo, na fase de investigação.

Com todo respeito aos senhores congressistas, nos parece um verdadeiro contra senso com os divulgados objetivos da novidade legal.

Com efeito, a pertinência da acusação e a legalidade das provas produzidas na fase de investigação devem ser verificadas logo após o oferecimento da denúncia pelo juiz da causa (art. 395 do CPP), que, se convencido da ausência de vícios e da presença da justa causa da ação penal, ordena a citação do acusado.

Citado, o acusado pode e deve alegar em resposta à acusação (art. 396-A do CPP) todas as matérias de interesse à sua defesa, inclusive, evidentemente, a ilegalidade das eventuais medidas cautelares que precederam o oferecimento da denúncia. 

Após a resposta à acusação, presentes os taxativos requisitos legais, dentre eles, destacamos, a ausência de justa causa da ação Penal, o Juiz natural da causa, poderá (julgar) absolver sumariamente o acusado (art. 397 do CPP). 

Portanto, se a finalidade é deixar o Juiz que vai julgar o mérito da acusação absolutamente distante da investigação, para que não fique contaminado com nenhuma intercorrência dessa fase da persecução penal, não nos parece sequer razoável deixar que o “Juiz das Garantias” aprecie o cabimento e a legalidade da denúncia, muito menos que o faça após a apresentação da resposta à acusação.

Se o propósito foi o de ampliar o espectro de garantias, afastando completamente o juiz da instrução e mérito dos incidentes da investigação, a competência do “Juiz das Garantias” deveria se ultimar com o oferecimento da denúncia.

Parece evidente e até natural, que o “Juiz das garantias” não reconheça nenhuma ilegalidade nas eventuais medidas cautelares que ele mesmo deferiu. 

Por outro lado, se a intenção era ampliar a isenção do julgador de instrução e mérito, não nos parece correto excluir de sua competência a análise da pertinência e legalidade das medidas cautelares que precederam a denúncia. 

Da forma concebida, a novidade legal que atribuiu competência especial para o “Juiz das Garantias” decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, ao invés de ampliar o espectro de garantias, vai mitigá-lo significativamente, já que esse juízo, evidentemente, deve prestigiar suas próprias decisões proferidas nas medidas cautelares intentadas na fase da investigação.

Além disso, após a denúncia ser recebida definitivamente pelo “Juiz das Garantias”, o que como já dito, implica na rejeição das eventuais arguições de ilegalidades apresentadas na resposta à acusação, nos parece também razoável, ao menos supor, que o Juiz responsável pelo julgamento do mérito da causa, ao invés de isento, ficaria sugestionado pelas decisões anteriores de seu colega.

Importante acrescentar, ainda, que salvo melhor juízo, o disposto no novo Art. 3-C, §2º, do CPP: “As decisões proferidas pelo Juiz das Garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de dez dias.”, não basta a garantir efetivamente a almejada isenção do julgador responsável pela apreciação do mérito da denúncia.

O citado dispositivo, em relação à análise da legalidade dos incidentes próprios da fase investigativa, limitou a competência do juiz de instrução e mérito, que deverá apenas reexaminar a necessidade da manutenção das medidas cautelares em curso, o que, implicitamente, o exclui da aferição da legalidade e cabimento das demais cautelares eventualmente deferidas pelo “Juiz das garantias”.

Por todas essas razões, parece evidente que o objetivo de ampliar as garantias do jurisdicionado e a imparcialidade do julgador seria melhor e efetivamente atendido se fosse adotada a sistemática há muito tempo utilizada pelo Departamento de Inquéritos Policiais de São Paulo – DIPO.

No DIPO, citado inclusive como exemplo da comprovada viabilidade do Juiz das Garantias, compete ao juiz responsável pela investigação a apreciação de todos os incidentes pertinentes a essa fase da persecução penal. No entanto, oferecida a denúncia, exaure-se completamente sua competência e os autos são remetidos ao juiz natural da causa, conforme as regras de distribuição.

Nesse formato, devolve-se ao juiz natural da causa a competência para analisar todas as matérias suscitadas pela defesa, inclusive e principalmente, as arguições de nulidade das cautelares que precederam a acusação. 

No modelo paulista, portanto, o juiz natural da causa, responsável pelo julgamento do mérito da acusação, embora não tenha participado da fase da investigação, pode, desde a fase do artigo 396 do CPP, reapreciar o cabimento e a legalidade de todas as provas antecedentes à denúncia. Esse nos parece um sistema mais adequado.

Portanto, sem nenhuma intenção de mitigar a importância da nova norma processual, criada com o nobre objetivo de ampliar o espectro de garantias do jurisdicionado e a imparcialidade do julgador, excluindo-o de participar da fase da investigação como meio de evitar sua contaminação, modestamente, sugerimos alterar os artigos 3-B, inciso XIV e 3-C, caput, ambos do Código de Processo Penal, fixando-se que após o oferecimento da denúncia, fica exaurida a competência do “Juiz das Garantias”.

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*Pedro Luiz Cunha Alves de Oliveira é sócio advogado do escritório Alves de Oliveira e Salles Vanni Advogados Associados.

*Sergio Rosenthal é advogado criminalista.

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