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Juiz das garantias - Um arremedo do juiz de instrução

O desenho dessa inovação no sistema processual brasileiro, com certeza, não atingirá aos fins almejados e acaba se transformando num enfraquecimento, ainda maior, na busca da verdade real.

7/1/2020

Com a recente entrada em vigor da lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, ainda em período de vacatio legis por 30 dias, que alterou diversos dispositivos da legislação penal e processual penal, criou-se a figura ímpar do juiz das garantias.

Com efeito, o juiz das garantias está disciplinado no novel texto legal nos seguintes termos, verbis:

“Juiz das Garantias

‘Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.’

‘Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:

I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;

II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código;

III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;

IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;

VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;

VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;

IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

XI - decidir sobre os requerimentos de:

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;

c) busca e apreensão domiciliar;

d) acesso a informações sigilosas;

e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;

XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;

XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental;

XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;

XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;

XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;

XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.

§ 1º (VETADO).

§ 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.’

‘Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.

§ 1º Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.

§ 2º As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.

§ 3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.

§ 4º Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.’

‘Art. 3º-D. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo.

Parágrafo único. Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo.’

‘Art. 3º-E. O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal.’

‘Art. 3º-F. O juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.”

Assim, facilmente se percebe que a inusitada criação do juiz das garantias, com viés eminentemente brasileiro, nem de longe se confunde com o juiz de instrução, que existe em diversas legislações processuais, mundo afora e que funciona adequadamente bem, em praticamente todos os países da Europa.

De fato, nos países que adotam o sistema do juiz de instrução, após a instauração do procedimento investigatório, que é presidido pelo representante do parquet, ao final o mistério público, formula a acusação ou se posiciona pelo arquivamento do procedimento.

Uma vez formulada a acusação, o juiz de instrução notifica, entre outros, o arguido (indiciado) para se pronunciar, podendo essas pessoas requerem o prosseguimento com a abertura do juízo de instrução, cujo procedimento se desenvolve de forma semelhante ao que ocorre com regular procedimento do processo penal brasileiro, podendo as partes contestarem a acusação, requerem provas (oitiva de testemunhas, provas periciais, documentais, interrogatório do arguido, etc.), sendo que no final, o juiz da instrução ao invés de proferir uma decisão condenatória ou absolutória, simplesmente pronuncia ou não pronuncia o arguido (admite ou não a acusação), de forma bastante semelhante do que acontece no Brasil, nos processos de competência do tribunal do júri, quando o juiz pronuncia ou impronuncia o réu.

Aliás, é esse juiz que, via de regra, decide as medidas mais invasivas de prova (escuta ambiental, quebra de sigilo telefônico, agente infiltrado, etc.) e de segregação da liberdade cautelar (prisão preventiva, liberdade provisória com ou sem fiança, medidas alternativas à prisão, etc.) do arguido.

Pronunciado o arguido, o processo é encaminhado ao juiz que irá proceder ao julgamento, que mais uma vez notifica o arguido, entre outros, para se manifestarem sobre a pronúncia, que é irrecorrível, podendo nessa nova fase, serem produzidas todas as provas pertinentes e por ocasião da audiência (que também é de instrução e julgamento), Assim, depois de produzidas as provas no referido ato processual, é dada a palavra ao ministério público, ao arguido, entre outros e uma vez findo os debates é proferida a respectiva sentença, agora sim, julgando o mérito da acusação formulada, com a absolvição ou condenação do imputado.

Com efeito, a simples observação do desenvolvimento do processo perante o juiz de instrução, conforme acima sintetizado, já se percebe ictu oculi, que pela lei que criou no sistema pátrio o juiz de garantias, em nenhuma hipótese se assemelha com o juiz de instrução, havendo, portanto, um espaço abissal entre um e outro, já que o curioso juiz das garantias, apenas se limita as hipóteses referentes ao prisão provisória do réu na fase procedimental, bem como a decisão sobre os meios de prova que dependem de decisão judicial.

Desse modo, diferentemente dos países que adotam o sistema do juiz de instrução, o juiz das garantias do Brasil, não procederá ao interrogatório do acusado, não ouvirá testemunhas, etc, muito embora seja esse magistrado que irá decidir sobre o recebimento ou não da denúncia e uma vez proferido o decisum de delibação da acusação os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do ministério público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.

Destarte, observa-se que a intensão do legislador, foi afastar completamente o juiz da instrução e julgamento, dos autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias, os quais ficarão acautelados na secretaria desse juízo.

Ocorre, entretanto, que apesar dessa estranha previsão legal, que tenta evitar que o juiz da instrução e julgamento tenha contato com todos os elementos de prova produzidos na fase do juiz das garantias, a própria lei assegurou às partes o “amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.”

Ora, se as partes tem amplo acesso a integralidade do procedimento (com certeza farão uso deles na parte que lhes possa interessar), o que significa dizer que poderão extrair cópias e darem a elas o destino que entenderem devidos, inclusive, juntando aos autos que tramitam junto ao juiz da instrução e julgamento, com muito mais razão, o referido juiz, que vai proferir uma decisão de mérito condenando ou absolvendo o réu, deve ter irrestrito acesso a todo acervo probatório constante dos autos referentes ao Juiz da Instrução, pois é de capital importância, notadamente no que se refere a valoração da prova, se for o caso, cotejar os depoimentos prestados em ambas as fases processuais, entre si e com os demais meios de provas produzidos, a fim de emprestar maior ou menor credibilidade ao conteúdo da prova, buscando, dentro do possível a verdade real, como forma de uma melhor distribuição da justiça, seja para condenar seja para absolver.

Importante ressaltar, que em se tratando de matéria penal, especialmente na fase de instrução e julgamento, o juiz não pode e não deve ficar à mercê do conteúdo da prova trazido pelas partes, pois cabe a ele, dentro de sua evidente e necessária imparcialidade, esgotar todas as dúvidas existentes, de modo a propiciar a realização da verdadeira justiça, principalmente quando essa prova já foi produzida e consta dos autos do juiz das garantias. De fato, seria um verdadeiro absurdo que o juiz proferisse uma sentença condenatória ou absolutória, sem poder examinar todos os elementos de convicção em sua minúcias, o que poderia propiciar um absurdo erro judiciário. Necessário acrescentar, por obvio, que não pode o magistrado fundamentar a condenação ou absolvição de um acusado, com base em provas produzidas exclusivamente na fase inquisitorial, ao arrepio dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

Destarte, parece a toda evidencia, que a forma como foi estabelecido o juiz das garantias, deixou muito a desejar sobre o que efetivamente se pretendia, havendo, tão somente, o distanciamento do juiz que vai proferir a sentença de mérito, de decidir, na fase inicial do procedimento, sobre a produção de determinadas provas e depois, uma inoportuna e curiosa tentativa de impedir o acesso pelo juiz que vai julgar a ação penal à integralidade dos elementos de convicção já produzidos na fase procedimental.

No que se refere a organização judiciaria do juiz das garantias, a solução parece ser bastante simples e não demanda maiores despesas, bastando que se recorra a ideia do “juiz tabelar”, de modo que o juiz das garantias de determinada vara criminal, terá como Juiz de Instrução e julgamento o magistrado da vara criminal seguinte e assim por diante, assegurando-se, nessa conformidade, que o magistrado que funcionou como juiz das garantias, não julgará a referida ação penal, pois remeterá os autos a vara criminal seguinte, cujo respectivo magistrado funcionará como juiz de instrução e julgamento naquelas ações oriundas do juiz das garantias da vara criminal anterior.

Finalmente, merece destacar que muitas das questões, entre as quais as que foram aqui tratadas em apertada síntese, com a passar do tempo a doutrina e a jurisprudência, colocarão o novo instituto de direito processual penal no seu devido lugar, de modo a assegurar a necessária segurança jurídica das questões, que, evidentemente, precisam ser estabilizadas e que interferem no due process of law, não se devendo perder de vista a máxima pas de nullité sans grief.

Assim, o desenho dessa inovação no sistema processual brasileiro, com certeza, não atingirá aos fins almejados e acaba se transformando num enfraquecimento, ainda maior, na busca da verdade real, pois absolutamente inconcebível, que seja sonegado do magistrado que irá prolatar a sentença de mérito, não tenha conhecimento de todos os indícios e demais elementos de provas que contam da integralidade da persecução penal.

________

*Fábio Uchôa Montenegro foi juiz de Direito titular do 1º Tribunal do Júri da Capital/1ª Vara Criminal.

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