Em 2015, durante um voo entre as cidades americanas de Minneapolis, em Minesotta, e Los Angeles, na Califórnia, Monique Lozoya discutiu com Oded Wolff, aparentemente por um motivo banal: ela não estava conseguindo descansar, pois o passageiro da poltrona detrás, Wolff, a incomodava, empurrando com os joelhos, repetidamente, o assento à sua frente, exatamente aquele onde estava acomodada Lozoya. A discussão acirrou-se de uma tal maneira, que Lozoya, "realmente assustada e nervosa, empurrou-o com a palma da mão aberta, que fez contato com o rosto de Wolff.”
Ela acabou sendo processada pela agressão, mas, durante o julgamento, surgiu uma questão a respeito da competência para o processo no caso de crime praticado durante um voo. Pelo Direito americano, um julgamento criminal deve ser realizado no local em que o crime foi praticado. Assim, se não é possível saber o local exato do delito, não haveria possibilidade de um processo criminal.
Nada obstante, Lozoya acabou sendo condenada no Distrito Central da Califórnia por agressão simples. A questão é que, quando ela atingiu Wolff, o avião ainda não havia atingido o espaço aéreo daquele Estado americano, e os seus advogados, então, recorreram da condenação.
Uma Corte formada por três juízes, sem adentrar exatamente o mérito da condenação, anulou a sentença, entendendo que o Distrito Central da Califórnia não era o juízo competente para processar o caso, e sim aquele em que o avião estivesse sobrevoando o respectivo espaço aéreo no momento exato em que ocorrera o crime. Para isso, portanto, disseram eles, a Promotoria deveria ter calculado a trajetória, o tempo e a velocidade média do voo, para depois cruzar essas informações com as testemunhas. Somente com estes dados, seria possível, então, a definição correta de onde ocorrera o delito e, consequentemente, o foro competente.
Sem solução legal ou jurisprudencial para o caso, a Justiça americana transferiu a questão jurídica para o Congresso, pois, para suprir esta lacuna, seria necessária a intervenção do Poder Legislativo, como é óbvio em uma República (formalmente) democrática.1
Aliás, no Brasil, muitas vezes, o próprio Poder Judiciário supre as lacunas legislativas, num ativismo judicial absurdo e usurpador de competência. É o que se vê, repito, muitas e muitas vezes. Quando gostamos da decisão, aplaudimos o ativismo; quando não, reprovamo-lo.
Pois bem.
Se este mesmo fato tivesse ocorrido durante um voo no espaço aéreo brasileiro, os Juízes e Tribunais não teriam qualquer dificuldade em decidir acerca da competência, senão vejamos.
A infração penal cometida teria sido a contravenção penal prevista no art. 21 da Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/41): vias de fato, já que não houve, pela notícia, lesão corporal, tampouco injúria real. Vias de fato é uma infração penal de menor potencial ofensivo, conforme define o art. 61 da lei 9.099/95, logo a competência para o processo e julgamento caberia ao Juizado Especial Criminal, nos termos do art. 98, I, da Constituição Federal, observando-se o procedimento comum sumariíssimo (art. 394, III, CPP).
Considerando-se que a contravenção penal se consumou (art. 70, CPP) a bordo de uma aeronave de propriedade privada2 (neste caso, não importaria qual a respectiva bandeira, pois a aeronave sobrevoava o espaço aéreo correspondente ao território brasileiro), o foro competente seria aquele da Comarca em cujo território se verificou o pouso após a prática da infração penal. Caso, a aeronave não pousasse em nosso território, a competência firmar-se-ia na Comarca de onde ela houvesse partido, nos termos do art. 90 do Código de Processo Penal.
E qual seria a Justiça competente, a Justiça Comum Federal ou a Justiça Comum Estadual?
Como se sabe, nos termos do art. 109, IX da Constituição Federal, compete à Justiça Comum Federal processar e julgar “os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar.” Mas, a própria Constituição, no art. 109, IV, excluiu da competência da Justiça Comum Federal o processo e julgamento das contravenções penais, preceito que foi reproduzido pelo Enunciado 38 da súmula do Superior Tribunal de Justiça. Assim, o foro competente seria o Juizado Especial Criminal Estadual.
E, por fim:
Se a aeronave pertencesse a um Estado estrangeiro (de natureza oficial, portanto), ou estivesse a serviço de governo estrangeiro, qual seria a competência, se fosse o caso de aplicação da lei penal brasileira (extraterritorialidade), nos termos do art. 7º., do Código Penal?
Neste caso, a solução seria outra, pois se considera que a aeronave oficial estrangeira (ou a serviço de outro governo), ainda que esteja sobrevoando o nosso espaço aéreo (ou mesmo nele, em pouso) é uma extensão do território do respectivo País: o chamado território por extensão ou flutuante (art. 5º., do Código Penal).
Portanto, teria sido uma infração penal praticada fora do nosso território, aplicando-se, então, a regra prevista no art. 88 do Código de Processo Penal, sendo competente o juízo da Capital do Estado onde houvesse por último residido o suposto autor do fato e, se este nunca tivesse residido no Brasil, o juízo da Capital da República.
Evidentemente, ressalva-se sempre a competência da Justiça Militar da União, expressamente prevista no art. 124 da Constituição Federal.
Esta não é uma questão meramente acadêmica, muito pelo contrário. Ainda nos Estados Unidos, o ator Brad Pitt chegou a ser investigado pela Polícia de Los Angeles por supostamente abusar verbal e fisicamente dos filhos, fato que teria ocorrido no dia 14 de setembro de 2016, quando o ator estaria bêbado em um jatinho particular com a família e teria perdido o controle e começado a gritar.3
No Brasil, um conhecido ator teve um ataque de fúria durante um voo de São Paulo para Nova York, fato ocorrido no dia 1º. de julho de 2001. Segundo foi noticiado, ele estaria alcoolizado, tornando-se agressivo, tendo xingado e cuspido os comissários e passageiros, precisando ser imobilizado. A situação ficou tão fora de controle que o avião fez uma escala forçada em Belém para que o ator fosse medicado e retirado do voo.4
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1 Clique aqui, acessado em 30 de dezembro de 2019.
2 O caso ocorreu a bordo do voo 2321, da Delta.
3 Clique aqui, acessado em 30 de dezembro de 2019.
4 Clique aqui, acessado em 30 de dezembro de 2019.
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*Rômulo de Andrade Moreira é procurador de Justiça e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.