Migalhas de Peso

Fashion law e a imitação servil

Aventuro-me a ressuscitar antigo texto de minha dissertação de mestrado do ano de 1970, para apreciação dos doutos.

23/12/2019

A propósito do Fashion Law, tão badalado atualmente, li com muita atenção o texto “Fashion Law: Direito da moda no Brasil no âmbito dos tribunais”, de Pietra Daneluzzi Quinelato, publicado no 160 da Revista da ABPI e que transcreve a decisão do caso Village versus Hermés.

Essa decisão causou espanto nos meios acadêmicos, por admitir que uma simples bolsa tivesse sido considerada obra de arte. Porém, não só violação de direito autoral mas, também, imitação servil.

A propósito do tema, aventuro-me a ressuscitar antigo texto de minha dissertação de mestrado do ano de 1970, para apreciação dos doutos. Seguem excertos de dito texto:

Gozando a obra de arte aplicada da proteção autoral, poderá ela ser industrializada mediante autorização do autor ou cessão de seus direitos patrimoniais, de modo que o industrial atua na qualidade de simples licenciado ou de titular a título derivado dos direitos de autor.

Além da tutela do direito autoral e da exclusividade conferida pelo registro de desenho industrial, poderá o empresário amparar-se nas normas de repressão à concorrência desleal, quando não possua outro titulo que lhe garanta exclusividade sobre a forma dos produtos de sua indústria. Não só o inciso III do art. 195 define como crime de concorrência desleal o emprego de meio fraudulento, hábil ao desvio da clientela, como o art. 209 enseja indenização por perdas e danos por atos tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios ou criar confusão no mercado. Assim, os chamados atos confusórios encontram reparação no âmbito penal e civil, em decorrência das normas de repressão à concorrência desleal.

Entre os atos confusórios, inclui a doutrina a imitação servil, a qual, por este ângulo, somente incidira sobre a forma externa do produto. Nessa hipótese, mesmo que um desenho tenha sido objeto de registro, cujo prazo de vigência já se tenha encerrado, não será lícita a cópia servil que enseje confusão, visto terem os concorrentes uma obrigação de diferenciação. A fim de evitar confusão, devem os concorrentes, ao fabricar desenho de domínio público, introduzir pequenas modificações, desde que estas não impliquem a diminuição da utilidade do produto.

A utilidade do produto, entretanto, deve ser entendida em sentido amplo, inclusive sob o ângulo estético. É nesse sentido que Casella (“Imitazione servile, confuzione e fundibilità”) se refere à utilidade estética do produto, chegando às seguintes conclusões: a) que a utilidade de uma forma consiste no atendimento não só das exigências técnicas, mas também estéticas; b) que a utilidade que se realiza na forma do produto é livremente desfrutável, sempre que seja impossível variar a forma sem prejuízo de sua utilidade; c) quando a variação, mesmo que parcial, é possível sem prejuízo das qualidades do produto e de sua utilidade (técnica e estética), surge uma obrigação de não imitação, devendo a modificação ir até o ponto que seja suficiente para evitar a possibilidade de confusão.

O fundamento de tal proteção repousa no fato de que não se deve confundir a tutela dos modelos com a tutela contra a concorrência desleal, podendo esta subsistir mesmo na ausência da primeira.

A questão que se coloca, entretanto, é se a imitação servil deva ser reprimida mesmo quando não ocorra a hipótese de confundibilidade. Os autores favoráveis à proibição da imitação servil a fundamentam na tutela do fruto do trabalho do empresário e do aviamento.

Segundo Isay1, a imitação servil é aquela na qual são copiadas fielmente, na forma e nas dimensões, mesmo aquelas partes da máquina cujas formas e dimensões são indiferentes para o funcionamento técnico da máquina, sendo reproduzidas com exatidão as formas e dimensões da máquina produzida pelo primeiro fabricante mesmo quando poderiam variar largamente. Rotondi concentra a proteção contra a imitação servil no protótipo, do qual deriva a possibilidade de produção massificada, considerando ilegítima sua apropriação, por objetivar resultado do trabalho alheio e implicar “lesão do aviamento objetivo do estabelecimento”.

Rotondi se refere à combinação de elementos variados para a obtenção de formas orgânicas e complexas, fruto de experiências realizadas com fadigas e despesas pelo empresário, dando mais realce ao elemento técnico que à forma externa do produto.      O problema se coloca, portanto, sob o ângulo do parasitismo econômico, da chamada concorrência parasitária, servindo-se do fruto da atividade de pesquisa do empresário, da criatividade do concorrente, de que é um exemplo o aproveitamento do segredo industrial.

A imitação, nessa hipótese, cria um desiquilibro na concorrência, ficando o imitador em posição vantajosa em relação ao imitado, já que o imitador, tirando proveito do investimento em pesquisas do imitado, pode opor a este um produto idêntico de menor custo.

Figuras diversas, portanto, a imitação servil e a forma distintiva, que tem por objeto o interesse do empresário na diferenciação. Esta é a conhecida no direito alemão como Ausstattung, que é definida como toda forma concreta apreensível com os sentidos, que, nos ambientes comerciais diretamente interessados, tenha conseguido o valor de um sinal distintivo de um empresário ou idôneo a identificar um produto. Tem um significado amplo que o da marca, por compreender, inclusive, sinais não registráveis como marca. Seu único requisito é a capacidade distintiva.2  

A Ausstattung tutela uma situação de fato, contrapondo-se à marca registrada, que configura uma situação jurídica formal. Os sinais não registrados ou não registráveis protegem-se como Ausstattung, que se inclui no âmbito da disciplina da concorrência desleal. Tem-se, assim, duas situações contrapostas: a proteção que decorre do registro e a que decorre do uso, dependendo esta de um situação concreta de confundibilidade perante o público consumidor.

Costuma-se comparar a posição do titular da forma não registrada a uma situação possessória, decorrendo o direito de uma relação de fato entre o sujeito e o sinal, estando seu âmbito circunscrito ao território em que o sinal é conhecido.

Bonasi-Benucci inclui no rol das formas distintivas não registradas uma série de elementos que vão desde a marca como considerada tradicionalmente, incluindo a cor e a forma do produto, os sons, os slogans, as formas de objetos só indiretamente referidos ao produto ou ao serviço (como as faturas comerciais, as listas de preços, veículos, o aspecto do estabelecimento etc.), desde que concorra o elemento da capacidade distintiva.  Seu valor não é autônomo e a tutela tem por objeto o interesse do empresário em diferenciar-se.

Gama Cerqueira, referindo-se aos atos de concorrência desleal tendentes a criar confusão entre estabelecimentos, produtos e artigos, considera que “as invenções, modelos de utilidade, desenhos e modelos industriais não patenteados não podem ser protegidos com base no princípio da repressão da concorrência desleal, por pertencerem ao domínio público”.

Tullio Ascarelli, referindo-se à confusão entre produtos, faz menção à imitação servil. Descreve Ascarelli que alguns sustentam que a imitação servil constitui, por si mesma, um ato de concorrência desleal, por contrariar os princípios de correção profissional; e que outros sustentam que a imitação servil só pode ser reprimida se constituir um meio de confusão entre os produtos e, portanto, se ocorrer tal possibilidade de confusão, citando vários julgados italianos nesse sentido.

Entende Ascarelli ser essa última tese a mais bem fundada, visto referir-se a lei italiana a meios aptos a criar confusão com os produtos ou a atividade de um concorrente. Acrescenta ser pacífico que da disciplina da concorrência desleal não derivam direitos absolutos sobre determinadas criações intelectuais, como seria a forma de um produto. “Tais direitos só derivam da disciplina dos bens imateriais legalmente reconhecidos, de modo que, fora do âmbito da tutela dos modelos, a forma não pode ser protegida em si mesma, podendo unicamente proibir-se sua utilização como instrumento de confusão entre produtos diferenciáveis.” Como se verifica, adota Ascarelli a mesma posição de Gama Cerqueira, por considerar que, aderindo-se à primeira tese, se viria reconhecer por tempo indeterminado uma proteção sobre o aspecto formal de um produto, análoga à prevista pela disciplina dos modelos, que, como se sabe, dependem da expedição de um título que vigora por tempo determinado. Por isso, nega a possibilidade de se aplicarem os princípios da concorrência desleal  à imitação servil, exceto quando ocorra possibilidade de confusão, a qual constitui a fonte da deslealdade.

É interessante referir uma decisão do Tribunal de Milão, de 6 de maio de 19653, que negou a aplicação do art. 2.598, n.1, do CC italiano em caso de imitação servil, por entender não ser aplicável, para atribuir a um empresário o direito de se servir com exclusividade, sem limite de tempo, da forma de um produto que tenha sido, ou poderia ter sido, objeto de um modelo de utilidade ou ornamental, dado que tal forma, após o término da vigência da patente ou a partir do momento em que foi divulgada sem ter sido patenteada, torna-se de domínio público. Considerou, ainda, que por meio do CC só podem encontrar tutela as formas que, não sendo dotadas de particularidades, no tocante à utilidade ou à estética, sejam usadas para defender o aviamento com o único fim de diferenciar os produtos dos da concorrência, forma que, assim, devem consistir em elementos acidentais e exteriores relativamente ao produto. O produto em questão era uma poltrona conhecida como “Barcellona”, considerada célebre no campo do industrial design. Com relação a ela, assim de manifestou o Tribunal de Milão: “La poltrona Barcellona, prodotto dalla knoll, constituiva, almeno quando venne diseggnata dall'architetto Mies van der Rohe, um progresso nel campo dell'evoluzione estética, ed anche sotto l'aspetto pratico, in quanto era um prodotto di quello stile razionale che tendeva a fondere il conseguimento dello scopo estético com quello dei fine prático. Tale poltrona no contiene alcun elemento individualizante che sai estrínseco rispetto ai conceti de forma ornamental e di forma utilitaria in essa attuati”. Referida decisão exclui da concorrência desleal a imitação servil, tanto mais que na espécie tinham sido efetuadas variantes nas linhas e nas dimensões.

Em uma decisão anterior do Tribunal de Milão, de 5 de fevereiro de 1953, em caso de concorrência desleal por imitação servil da “Vespa” por parte da “Lambretta” fora excluída a imitação servil, apesar de algumas semelhanças, por terem sido encontradas diferenças suficientes para distinguir os dois veículos e excluir qualquer confusão entre as atividades das empresas concorrentes. No que se refere à questão da imitação da “linha”, o tribunal observou que a imitação da linha não é ilícita por si mesma, a não ser que crie confundibilidade entre os produtos.

Já a Corte d'Apello de Nápoles, em 28 de dezembro de 1965, considerou existente a concorrência desleal por imitação servil de um brinquedo, no caso cães de matéria plástica (“Pluto” e  “Filippo”), pondo em relevo a possibilidade de confusão da clientela formada por crianças e destacando que tal possibilidade de confusão constitui a medida necessária e suficiente para que o ato de imitação servil seja reprimido, desde que a empresa imitadora, utilizando a solução original de um problema técnico que representa o resultado de fatigante e custosa elaboração, praticou atos idôneos para produzir o desvio da clientela.

É conhecida, a respeito de imitação servil, a posição de Rotondi. A imitação servil (Sklavischer Nachbau), em sentido técnico, consiste na reprodução mecânica de produto alheio, independentemente da violação de um direito de patente. Assim, quando o produto está patenteado, sua reprodução constitui ato ilícito de contrafação de patente, e não de concorrência desleal. Rotondi considera que devem ser excluídas do conceito de imitação servil não só a contrafação de patentes, mas também a imitação de características externas do produto, que constitui também ato de concorrência desleal, mas no sentido de confusão entre produtos concorrentes. Diz Rotondi: “Ma il problema del quale intendiamo occuparsi qui é quello di vedere se, independentemente dalla confusione dei prodotti, l'imitazione vada repressa in se e per se, come forma di sfruttamento del lavoro altrui direto alia realizzazione di um prodotto anche non coperto da un diritto di privativa”. Encara Rotondi o dispêndio de esforços, capitais, materiais e tempo para se chegar à produção de um protótipo, que pode ser não patenteável. Exemplifica com um novo automóvel que possa não constituir uma invenção patenteável, ou ser protegido como um novo modelo. Mesmo o modelo poderia cobrir somente elementos singulares (a carroçaria ou acessórios isolados), “non già tutto l'insieme, che pure ha una inconfondibile e organiza unità, e reppresenta faticosa e costosa conquista dell'ingegno e del lavoro”.

Aquele que, sem os custos necessários à obtenção de um protótipo, reproduz aquele feito por um concorrente encontra-se em condições de excepcional vantagem em relação a este. Tal imitação pode ser feita sem causar confusão entre os produtos, “mas nem por isso é menos danosa, porque o consumidor, mediante dois produtos substancialmente idêntidos, mesmo que advertido da divers’, idade de origens, preferirá aquele mais vantajoso”, que será o imitado, não gravado pelas despesas iniciais.

Contesta Rotondi a posição de Piola Caselli, no sentido de que tal conceito de imitação servil criaria novos monopólios, além das patentes, que impediriam o livre progresso da atividade industrial. Considera Rotondi haver, nesse caso, lesão do aviamento por reprodução do resultado do trabalho alheio e aproveitamento das despesas do concorrente. Acrescenta que tal posição não frustra ou milita a possibilidade de livre progresso industrial, “perchè la pedissequa riproduzione dell'opera altrui”, senza conscienza e senza intelligenza, non e mais tata uma forma di progresso”. Rotondi inclui tais atos na chamada concorrência parasitária, ou seja, o aproveitamento parasitário do trabalho alheio.

É certo que a profundidade da posição de Rotondi não foi ainda reconhecida e geralmente os autores a contestam. A título de exemplo, pode-se referir a Jorge Fernando Castro Patrício Paúl4, que entende que adotar a tese defendida por Rotondi implicaria a criação de um direito privativo por tempo indeterminado, substituindo a tutela da concessão de patentes de invenção ou de modelos, o que acabaria por transformar o instituto da concorrência desleal “num perigoso instrumento de ampliação do regime jurídico dos direitos privativos”.

No Brasil, o art. 209 da Lei de Propriedade Industrial de 1996 faz menção a outros atos de concorrência desleal, “tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais ou industriais ou entre os produtos e artigos postos no comércio”. À primeira vista, só se poderia incluir no citado dispositivo a imitação servil quando possibilitasse a confusão entre produtos. No entanto, poderia a imitação servil ser incluída entre os atos tendentes a prejudicar os negócios alheios. É bastante conhecida a posição de Remo Franceschelli, que, repudiando a teoria dos direitos sobre bens imateriais, considera como único fundamento do direito industrial a concorrência. Nesse ponto de vista se justificaria tanto a tutela das patentes quanto da imitação servil.

O que nos parece não ter sido levado na devida conta é que Rotondi se refere sempre ao protótipo e a “tutto l'insieme, che pure ha inconfondibile e organica unità”. Não se referiu Rotondi a uma abstração, como é a invenção, cujos limites têm de ser especificados nos pontos característicos de uma patente e em desenhos esquemáticos. Referiu-se a um protótipo e a um conjunto inconfundível, dotado de unidade orgânica. Vai, de uma para outro, uma distância tão grande quanto, numa obra de arquitetura, vai do projeto básico para o projeto de detalhamento. Um é abstrato, o outro correspondente a um verdadeiro protótipo. Diversa deve ser a natureza da proteção. A invenção, considerada como abstração, seja de caráter artístico ou técnico, tem a proteção do direito de autor em sentido amplo, seja qual for a forma legislativa adotada. O detalhamento, se bem que não voe às alturas da criação de caráter abstrato, representa muito tempo perdido, às vezes noites de insônia, experiências fraudadas, até que se chegue àquela combinação de elementos constitutivos que experimentalmente se demonstrou ser a mais idônea para alcançar os fins a que o produto se destina. Não se justifica seja livremente aproveitada pelo concorrente.

Tal é a necessidade de se encontrar uma proteção para esse “molde”  ou  “protótipo” que a maioria das legislações dos diversos países protege a gravação de um disco (fonograma) como se fora um direito de autor. Não porque constitua efetivamente uma criação artística, mas porque, ao menos nesse ramo, tornou-se evidente a necessidade de proteger-se o trabalho do empresário contra o indevido aproveitamento por terceiros. Da mesma forma, a lei italiana protege o projeto de engenharia, mesmo que não contenha uma invenção em sentido abstrato. Assim, também são protegidos os programas de computador (software). Na ausência de uma proteção específica para o protótipo contra sua reprodução mecânica, mesmo com o sério inconveniente de tal proteção não poder ser delimitada no tempo, nada mais justo se socorra o empresário das normas de repressão à concorrência desleal, mesmo que para isso tenha de interpretá-las de forma mais elástica, desde que se leve em conta seu significado mais alto de proteção do aviamento, como ideia organizadora, de caráter criativo, que dá unidade ao estabelecimento. Não se está, dessa maneira, criando uma nova forma de monopólio, já que a imitação servil não é considerada em relação ao produto isoladamente, mas em relação a ele como elemento imaterial integrante do estabelecimento.

(Cf. meu DIREITO DE AUTOR NO DESIGN, Ed. Saraiva, 2ª ed., 2012).

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1 Cit. ROTONDI, Mario. L’imitazione servile come atto di sleale concorrenza.

2 “In altre parole l’obbligo di evitare la confusione tra merci non é automaticamente escluso per il fatto che il segno usurpato non era resgistrable come marchio” (Bonasi-Benucci, Tutela della forma nel diritto industriale)

3 Rassegna Prop. Ind., 1965, v. 231.

4 Fernando Castro Patrício Paúl, Concorrência Desleal, Coimbra, 1965.

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*Newton Silveira é sócio do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados - Advogados.

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