O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo recentemente se posicionou acerca da divergência jurisprudencial no que diz respeito à aplicação das modificações introduzidas pela lei 13.465/17, em especial quanto ao prazo final da prerrogativa da purgação da mora pelo devedor, nos casos de garantia em alienação fiduciária, através do julgamento do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 2166423-86.2018.8.26.0000.
Em síntese, o Tribunal decidiu que a alteração introduzida pela lei 13.465/17 ao art. 39, II da lei 9.514 de 97 tem aplicação restrita aos contratos celebrados sob sua vigência, não incidindo sobre os contratos firmados antes da sua entrada em vigor.
Antes do advento da lei 13.465/17 o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vinha relativizando a questão e possibilitando a purgação da mora até a assinatura do auto de arrematação com base no decreto lei 70/66, em especial ao art. 34:
Art 34. É lícito ao devedor, a qualquer momento, até a assinatura do auto de arrematação, purgar o débito, totalizado de acôrdo com o artigo 33, e acrescido ainda dos seguintes encargos:
I - se a purgação se efetuar conforme o parágrafo primeiro do artigo 31, o débito será acrescido das penalidades previstas no contrato de hipoteca, até 10% (dez por cento) do valor do mesmo débito, e da remuneração do agente fiduciário;
II - daí em diante, o débito, para os efeitos de purgação, abrangerá ainda os juros de mora e a correção monetária incidente até o momento da purgação.
Tal aplicação encontrava amparo na antiga redação da própria lei 9.514 de 97, onde de forma genérica possibilitava a aplicação dos arts. 29 a 41 do decreto lei 70/66, a saber:
Art. 39. Às operações de crédito compreendidas no sistema de financiamento imobiliário, a que se refere esta Lei:
II - aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-lei nº 70, de 21 de novembro de 1966.
Veja que o legislador não especificou que somente se aplicaria tais artigos nos casos exclusivos aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca, o que restou sanado pela alteração dada pela lei 13.465 de 2017, a saber:
Art. 39. Às operações de crédito compreendidas no sistema de financiamento imobiliário, a que se refere esta Lei:(Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017) a saber:
II - aplicam-se as disposições dos arts. 29 a 41 do Decreto-Lei nº 70, de 21 de novembro de 1966, exclusivamente aos procedimentos de execução de créditos garantidos por hipoteca. (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)
Em que pese o recentemente entendimento adotado pela corte, precisamos diferenciar o conceito de purgação da mora e apresentarmos a sua aplicação em duas possibilidades, as quais são distintas.
O Art. 26 e parágrafos da Lei 9.514 de 97 consigna que:
Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.
Neste ponto, o art. 26 possibilita o pagamento, ou a purgação da mora, das parcelas vencidas e encargos de modo que o devedor possa regularizar o contrato.
Caso não haja o pagamento, nos moldes do dispositivo acima, a propriedade se consolidará em favor da credora, conforme prevê o §7º do mesmo dispositivo, a saber:
§ 7o Decorrido o prazo de que trata o § 1o sem a purgação da mora, o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos e, se for o caso, do laudêmio.
Desta forma, temos o primeiro conceito de purgação da mora, consoante o art. 26 e parágrafos da lei 9.514 de 97, qual seja, regularizar o contrato com o pagamento das parcelas vencidas e encargos, frisa-se, antes da consolidação da propriedade.
É sabido que após a consolidação da propriedade o devedor poderia exercer o direito de preferência, nos moldes do §2º B do art. 27, alteração esta trazida pela lei 13.465 de 2017, a saber:
§ 2o - B. Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas de que trata o § 2o deste artigo, aos valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito de consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário, e às despesas inerentes ao procedimento de cobrança e leilão, incumbindo, também, ao devedor fiduciante o pagamento dos encargos tributários e despesas exigíveis para a nova aquisição do imóvel, de que trata este parágrafo, inclusive custas e emolumentos.
Em continuação:
§ 3º Para os fins do disposto neste artigo, entende-se por:
I - dívida: o saldo devedor da operação de alienação fiduciária, na data do leilão, nele incluídos os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais;
II - despesas: a soma das importâncias correspondentes aos encargos e custas de intimação e as necessárias à realização do público leilão, nestas compreendidas as relativas aos anúncios e à comissão do leiloeiro.
Acontece que os conceitos de exercício de direito de preferência, possibilitado pela lei 13.465 de 2017, e a purgação da mora prevista no decreto lei 70/66, se assemelham, a grosso modo, diferenciando tão somente em relação a comissão do leiloeiro e demais despesas.
Tal assertiva se torna evidente posto que o próprio acórdão do IRDR 2166423-86.2018.8.26.0000, trouxe em seu bojo o segundo conceito de purgação da mora, com base em decisões do Superior Tribunal de Justiça, a saber:
Nesse aspecto, considerando que a purgação pressupõe o pagamento integral do débito, inclusive dos encargos legais e contratuais. (...) Ministra Nancy Andrighi (REsp 1433031/DF, DJE 18/06/14)
Na prática, o conceito de purgar a mora após a consolidação de propriedade e exercer o direito de preferência se confundem, porém, evidente que as Instituições Financeiras suportarão um prejuízo maior caso o julgador entenda pela possibilidade da purgação da mora, levando em consideração que após a consolidação a credora já realizou o pagamento do imposto referente a transferência do imóvel.
Distinguir as possibilidades de purgação da mora se faz extremamente necessário, considerando que os devedores cada vez mais estão por procurar o Judiciário e se valerem do IRDR em questão para suspender a retomada das garantias em contrato de alienação fiduciária, seja ela na via extrajudicial ou judicial.
Na verdade, os devedores procuram distorcer o instituto da alienação fiduciária induzindo os juízes em erro, posto que visam mesmo após a consolidação da propriedade realizarem o pagamento somente das parcelas vencidas e não do débito como um todo, o que não pode ser aceito, considerando todo o prejuízo suportado pela credora.
Ainda, demonstrar que na prática, após a consolidação da propriedade, purgação da mora e direito de preferência são institutos semelhantes, possibilita aos credores retomarem seus créditos de forma célere conforme escopo da própria legislação aplicável, qual seja: 9.514 de 97.
Conclui-se que mesmo nos contratos firmados antes das modificações introduzidas pela lei 13.465/17 os devedores deverão realizar a purgação da mora com o pagamento integral do débito.
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*Andrew Henrique Domingues Gonçalves é sócio da Sato, Lima e Cabral Advogados Associados.