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Ordem das condutas e relação jurídica

Relação jurídica é o efeito da incidência da norma sobre determinado fato certo, o que resulta em certa ordem de condutas individuais em torno de determinado objeto.

17/12/2019

A União PODE desapropriar o imóvel de João e DEVE pagar justa indenização em dinheiro a João.

João DEVE receber justa indenização em dinheiro da União e DEVE entregar o imóvel à União.

A epígrafe contém quatro orações de conteúdo jurídico que observam, cada uma delas, certa ordem: sujeito 1, conduta normativa (pode ou deve), conduta objeto (desapropriar, pagar, receber e entregar), objeto (imóvel e dinheiro) e sujeito 2. Quando as orações são combinadas entre si surge a relação jurídica. Essa breve síntese permite concluir que existem duas ordens de condutas: (i) a individual praticada pelo sujeito em direção ao outro; e a (ii) relacional que resulta da combinação entre as condutas individuais. A segunda ordem é denominada relação jurídica, formada a partir da interação e combinação entre as ordens individuais.

Esse contexto conceitual impõe prévio exame e compreensão dos elementos da Ordem da Conduta Individual (sujeito 1, conduta normativa, conduta objeto, objeto jurídico e sujeito 2) para posterior estudo da Ordem da Relação Jurídica (combinação entre condutas normativas: deve e pode).

1. A Ordem da Conduta Individual. A Figura 1 representa e exemplifica a Ordem da Conduta Individual. A incidência da norma sobre fato certo é examinada a partir da interpretação, o que resulta na relação jurídica. Esta, por sua vez, se manifesta como sujeitos titulares de condutas normativas (deve ou pode) que recaem sobre condutas objeto (ação ou omissão) em torno de determinado objeto.

Exemplos: José deve pagar a dívida, a União pode desapropriar o imóvel ou João deve não matar animais silvestres.

Figura 1. Ordem da Conduta Individual e formação da relação jurídica

Ponto muito importante é a compreensão da conduta normativa e do conceito de uniformidade: conduta que exclui a oposta. Deve não matar exclui a conduta matar.

Os verbos “dever” e “poder” definem condutas uniformes ou não-uniformes. Quem deve algo, deve prestar certa conduta uniforme. Quem pode algo, tem poder para fazer ou não fazer algo. A função da conduta normativa na oração jurídica é precisamente estabelecer conduta única ou conduta facultativa (opostas).

O emprego dos verbos “dever” e “poder” nas orações jurídicas é muito interessante. Estão sempre presentes nos textos das normas jurídicas em geral. Tais verbos e substantivos equivalentes exprimem padrão lógico do raciocínio, nem sempre percebido. A Constituição Federal é um bom exemplo. A Tabela 1 apresenta a frequência de algumas palavras no texto constitucional.

A raiz “pode” é referida 522 vezes, sempre com o sentido de faculdade e liberdade. Mais adiante, será explicado como o sentido original de liberdade assume o significado de poder, enquanto aptidão para obter de outro sujeito determinado comportamento.

Tabela 1. Frequência de palavras no texto da Constituição Federal

Tipos de condutas

 

Palavras

 

Variações da palavra

 

Quantidade de palavras

 

Total

 

 

Condutas livres

(Pode A ou ~A)

 

Pode

poderá (218), poderão (92), podem (14)

522

 

 

 

571

Liberdade

liberdade

19

Livre

livre

30

 

Condutas uniformes

(Deve A)

Deve

Deverá (34) deverão (16), devendo (18) devem (3),

104

 

 

 

246

Proibi

proibição (9), proibida (6)

17

Vedar

Vedação (12) vedações(11) vedado    (27) vedada    (75)

125

 A raiz “deve” é referida 104 vezes, sempre com o sentido de conduta única possível e ativa. Por exemplo, o prefeito deverá prestar contas (CF, art. 31, §2º). A conduta de dever omissiva é referida em regra através das palavras com raiz “proibi” ou “vedar”. No plano lógico, deve fazer ou deve não fazer são sentenças que possuem em comum a uniformidade da conduta impositiva e uniforme. Por exemplo, a expressão “deve não matar” é conduta uniforme omissiva.

A Constituição Federal assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Essa norma dá suporte para relação jurídica onde o sujeito pode fazer ou não fazer qualquer coisa, salvo quando a lei estabeleça algum dever.

A conduta normativa apresenta outra importante particularidade em relação ao conceito de ilícito (Figura 2).

A conduta ilícita observa os seguintes padrões: (i) na conduta normativa uniforme (exemplo, deve não matar), o ilícito será a conduta oposta (exemplo, matar); (ii) na conduta normativa não uniforme (exemplo, pode cantar ou não cantar), o ilícito será a conduta que nega a não-uniformidade (exemplo, deve cantar).

Figura 2. Ordem da Conduta Individual: atos lícito e ilícito

Quando se diz “Não matar”, tem-se conduta uniforme que pode ser descrita como dever. Quem deve, só pode adotar uma conduta (deve não matar) porque a contrária (matar) é ilícita. O sistema é binário: se A, não pode ser não-A.

No âmbito da conduta não uniforme, o sujeito 1 (José) pode cantar ou não cantar na praça. Ele é livre para adotar a conduta B (cantar), bem como a conduta contrária (não cantar). A fórmula binária é a seguinte: se B, pode ser não-B. Se alguém tentar impor conduta uniforme incorrerá em ilícito.

Essa estrutura conceitual é diferente da usual, que classifica as normas e condutas em permitidas, obrigatórias e proibidas. A razão é dupla. Condutas obrigatórias (deve fazer) e proibidas (deve não fazer) são espécies (condutas objeto) da conduta uniforme. Não é possível romper essa ordem e sequência do raciocínio porque o critério de uniformidade precede o critério da manifestação da conduta (ação ou omissão). Condutas livres admitem a oposição, o que rompe com a ideia de conduta uniforme. Esses detalhes lógicos e o respeito a ordem sequencial da oração (conduta normativa » conduta objeto » objeto) permitem melhor perfeição ao raciocínio jurídico.

Essa estrutura lógica da conduta normativa (pode ou deve) seguida da conduta objeto (fazer ou não fazer) foi apresentada até aqui no plano da ordem individual, ou seja, a análise alcança apenas um sujeito como titular. O que acontece quando se examina a relação dessas condutas entre dois sujeitos? Essa interação é denominada ordem da relação jurídica ou simplesmente relação jurídica.

A utilização da palavra “ordem” tem a finalidade de valorizar a sequência dos elementos dentro da oração (Ordem da Conduta Individual) e das orações entre si (Ordem da Relação Jurídica). No próximo tópico, a ordem relacional entre as orações será examinada.

1. A Ordem da Relação jurídica. A relação jurídica tem origem na combinação entre as ordens individuais de condutas. Quando se diz que “a União PODE desapropriar o imóvel de João” outra oração complementar é necessária para caracterizar a relação entre os sujeitos. Esta oração complementar consiste no dever de João entregar o imóvel após o pagamento ou depósito do preço justo da indenização. A relação jurídica começa como poder e termina como dever.

Quando são combinadas entre si as condutas normativas individuas surgem quatro tipos de relações jurídicas (deve-deve; pode-pode; deve-pode; e pode-deve). A Figura 3 demonstra esses quatro tipos de relações jurídicas, qualificando-as como: a) imperativa; b) livre; c) facultativa; d) potestativa. Em síntese, essas relações decorrem da combinação lógica de condutas uniformes e não uniformes entre dois sujeitos.

Figura 3. Ordem da Relação Jurídica. Combinação entre condutas individuais

A relação jurídica imperativa impõe aos dois sujeitos da relação jurídica condutas de dever. A obrigação tributária é um exemplo típico. O sujeito 1 deve pagar o tributo e o sujeito 2 deve receber o tributo. Nesse tipo de relação jurídica só existe dever. Os entes públicos (sujeito 2) não possuem a faculdade de receber ou não o crédito. A conduta aqui é uniforme: deve receber o crédito. O direito surge como efeito do dever em duas hipóteses: perante o sujeito 1 como direito de consignar o tributo; e o direito de cobrar o tributo, para o sujeito 2.

Na relação jurídica livre, ambos os sujeitos são titulares de condutas não uniformes, ou seja, ambos podem fazer ou não fazer algo. Essa relação exprime a condição natural da vida em sociedade. O sujeito 1 pode vender ou não vender certo automóvel e o sujeito 2 pode comprar ou não comprar esse automóvel. Nenhum sujeito pode impor ao outro conduta uniforme, sob pena de incorrer em ilícito. O estado natural de liberdade do homem tem nessa relação jurídica a sua expressão normativa. Essa faculdade dos sujeitos para fazer ou não fazer algo é definida usualmente como direito.

Na relação jurídica facultativa, o sujeito 1 tem dever perante o sujeito 2 e deve entregar certa conduta, enquanto o sujeito 2 tem a faculdade de receber ou não essa conduta. Por exemplo, o sujeito 1 deve pagar certa dívida. O sujeito 2 pode receber o pagamento, mas também pode não receber o pagamento por ato de perdão da dívida. Em ambos as hipóteses, o sujeito 2 exerce direito ou faculdade que a lei lhe assegura de alguma forma. Pode-se dizer que o sujeito 2 tem a liberdade de escolha, na perspectiva individual, e na perspectiva relacional, o poder de obter do sujeito 2 determinada conduta em relação ao objeto.

Na relação jurídica potestativa, o sujeito 1 tem poder de exigir do sujeito 2 certa conduta uniforme, enquanto o sujeito 2 tem o dever de se submeter a conduta imposta pelo sujeito 1. O exemplo típico é a desapropriação. O sujeito 1 pode desapropriar ou não determinado imóvel. O sujeito 2 deve acatar a opção do sujeito 1. Essa relação é tipicamente potestativa: o sujeito 1 tem poder para obter do sujeito 2 determinada conduta. A conduta discricionária do sujeito 1 em relação ao sujeito 2 se manifesta como relação de poder porque o sujeito 2 deve se submeter à conduta potestativa do sujeito 1.

Nessa estrutura conceitual, o direito tem dois significados. Na perspectiva individual, a liberdade do sujeito para o exercício da conduta não uniforme (pode A ou ~A). Na perspectiva relacional, o poder de um sujeito para exigir de outro sujeito determinada conduta uniforme (dever) em torno de certo objeto.

O dever também tem dois significados. Na perspectiva individual, a conduta uniforme e imperativa do titular (deve A ou deve ~A). Na perspectiva relacional, a submissão do titular do dever em torno de certo objeto ao poder do outro sujeito.

Relação jurídica é o efeito da incidência da norma sobre determinado fato certo, o que resulta em certa ordem de condutas individuais em torno de determinado objeto. Nessa breve definição, dois aspectos sequenciais merecem destaque. O primeiro aspecto é a relação entre norma e fato certo, que se manifesta como interpretação da incidência da primeira sobre o segundo. O segundo aspecto é o efeito da interpretação com aptidão para criar em determinados sujeitos a titularidade de condutas uniformes ou não dirigidas para certa ação ou omissão em torno de objeto determinado.

Essa ordem conceitual entre norma, fatos, condutas individuais e relacionais manifesta padrão matemático, o que tem por finalidade simplificar a compreensão do real e potencializar e aperfeiçoar o raciocínio jurídico.

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*Luiz Walter Coelho Filho é advogado, sócio fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Advogados S/C.

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